Da agenda do vô:
Marina virou-se hoje para mim e disse, a respeito de “O leãozinho”, de Caetano Veloso: “Eu adoro essa música”.
Como se fosse caetanete veterana, escandiu o verbo. Disse “adooooro”.
Foi total novidade pra mim – não que ela gostasse da canção, claro. Disso eu já sabia: o Palavra Cantada gravou, ela ouve bastante a versão da dupla, ouve também a gravação original do compositor. Total novidade foi o uso do verbo adorar.
Mas já tem alguns dias, me disse a Cláudia. E a mãe, que chegou do trabalho algum tempo depois, confirmou: ela tem usado muito o verbo recém-incorporado ao vocabulário. (Há um P.S. sobre o verbo adorar.)
***
Pouquíssimas vezes tinha ficado tantos dias sem ver Marina. Na terça da semana passada, 31 de março, eu tinha tido um acesso de manha, um ataque de birra. Em seus dois anos e 15 dias de vida, Marina jamais teve algo semelhante. Mal tínhamos acabado de chegar à casa dela, era hora de ela lavar as mãos, e ela fez uma pequenina birra. Me deu um troço que não sei explicar, dei meia volta, peguei minha bolsa e vim-me embora.
Na quinta cedo ela viajou com pai e mãe pra passar a Semana Santa na praia. E então só fomos revê-la ontem, terça. Fomos pegá-la na saída da escola, e ficamos duas horas grudados nela. Como é pessoa gentil, madura, generosa, não demonstrou a menor mágoa pela atitude infantil do avô. Na verdade, nem mencionou o assunto.
Divertiu-se à beça com a avó. Morre de rir de tudo o que a avó fala, faz.
Quando saímos, deu beijo estalado na bochecha da avó e na careca do avô.
Hoje voltei lá, para minorar a saudade acumulada. Esteve total gracinha o tempo todo (com uma exceção mínima de um minuto de manha que conto depois).
Na hora do jantar (em geral eu a visito em torno da hora do jantar, brincando com ela um tempo antes e um tempo depois), quis que eu servisse, em vez da Cláudia. Não me saí muito mal, mas a Cláudia assumiu a tarefa depois de algum tempo.
Estávamos, Cláudia e eu, cantando uma música pra ela, depois outra, outra, surgiu “O leãozinho”. Foi quando ela fez a afirmação: “Eu adoro essa música.”
Depois de um tempinho de brincadeiras, hora de ver DVD. Pedimos pra ela escolher, como sempre, e ela quis um DVD específico da Peppa.
Há uma rotina estabelecida com alguma severidade pelos pais: depois de um tempinho brincando pós-jantar, ela tem direito a uns 15 minutos de DVD, para ir quietando o facho, diminuindo o ritmo. Aí começa o ritual de escovar os dentes, tomar banho – preparativos para a mamadeira e o início do sono.
Como as historinhas da Peppa são bem curtas, o combinado são quatro histórias por noite.
Quis ver no colo do avô.
Ao fim da primeira, disse que queria mais. Eu disse: claro, nós vamos ver quatro, é o combinado, ainda faltam três.
Ao fim da segunda, disse que queria mais. Eu disse: claro, nós vamos ver quatro, é o combinado, ainda faltam duas.
Ao fim da terceira, etc, igual aos anteriores.
Ao fim da quarta, falei: agora acabou, é o combinado.
Aí ela chorou um pouquinho, um choro meio sem vontade. Tenho certeza de que, quando termina o tempo combinado de DVD, Marina chora não tanto porque quer ver mais. Ela gostaria, sim, de ver mais – mas chora principalmente porque sabe que é o papel dela dar uma reclamadinha nessa hora. Deve pensar assim: eles esperam que eu dê uma reclamadinha; se eu não reclamar, vão ficar frustrados. E então dá uma choradinha.
Daí a pouco a mãe chegou do trabalho. Marina já estava brincando novamente, foi lá mostrar pra mãe os brinquedinhos que segurava na hora.
Contei pra mãe sobre o “adoro essa música”, e então Fernanda confirmou, disse que é um dos dois novos bordões de Marina. Agora volta e meia ela diz que adora isso ou aquilo, e diz que “acha que”. Fernanda me perguntou se ainda não ouvi ela dizer “acho que”. Não, ainda não ouvi. Claro, estou curiosíssimo para ouvir.
Ela se despediu do avô com um beijo estalado na careca.
Chegando em casa, contei para a avó sobre os dois novos bordões. A avó, que é do tipo que não perde a possibilidade de uma piada, foi drástica: – “Vixe, já começou a achar, é? Aí fodeu.”
Meu Deus do céu e também da terra. Aos dois anos e 20 dias, minha neta já adora e já acha que.
8 de abril de 2015
A foto é de Carlos Bêla.
Um P.S.: Foi por falta de atenção, de melhor observação, que não notei ao escrever esta anotação que é muito nítido de onde vem o uso do verbo adorar. Peppa Pig! A Peppa usa demais o verbo adorar.
Isso não diminui a gracinha que é ouvir Marina dizer “Eu adoro essa música”. Só indica que o avô, por mais atento que se considere, deixou de prestar atenção a uma coisa óbvia.
Adorei e acho que o texto acima comprova que a alma nem sempre é feita de amarguras. As crianças tem muito a nos ensinar, é só segui-las.
Gosto muito de ler,leãozào.