Por que, raios, essa subserviência à Rússia e à China?

É uma questão de lógica, e não é complexa. Ao contrário, é até bastante simples, básica. Invasor é invasor, invadido é invadido.

Argumentar que “a decisão da guerra foi tomada por dois países”, que Volodymyr Zelensky, o do país invadido, é “tão responsável” pela guerra quanto russo Vladimir Putin, o invasor, é um atentado contra a lógica.

Dizer isso é exatamente como afirmar que os brasileiros que lutavam contra a ditadura eram tão responsáveis pela tortura quanto o coronel Brilhante Ustra ou o delegado Sérgio Paranhos Fleury.

É exatamente como dizer que o escravo é tão responsável pela escravidão quanto os traficantes de escravos.

Que a mulher agredida é tão responsável pelo estupro quanto o macho agressor.

Ou que os ianomâmis são tão culpados pela degradação da floresta e pela poluição dos rios por mercúrio quanto os garimpeiros e grileiros.

Argumentar que “a decisão da guerra foi tomada por dois países” é uma agressão à lógica tão grande quanto dizer que a Terra é plana, ou que a cloroquina é o melhor tratamento contra a pandemia de covid 19, ou que as urnas eletrônicas estão sujeitas a fraudes.

Essa questão da falta de lógica é a que mais me deixa espantado, aturdido com o posicionamento assumido por Luiz Inácio Lula da Silva

na questão da invasão do território da Ucrânia. A posição pró-Rússia vem de longe, desde antes de ele assumir a Presidência – mas houve um exacerbamento nas últimas semanas, com uma nítida opção preferencial pelo alinhamento aos regimes autoritários de Rússia e China, e caneladas duras contra Estados Unidos e União Européia.

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Um rápido e necessário registro:

* Ainda em 2022, antes das eleições, Lula fez declarações colocando Rússia e Ucrânia como co-responsáveis pela guerra.

* Bem recentemente, ele chegou a sugerir que a Ucrânia abrisse mão da Criméia a fim de negociar a paz!

* Poucos dias atrás, o ex-chanceler Celso Amorim, sempre muito próximo ao presidente da República, fez visita à Rússia e manteve conversa com Vladimir Putin; não houve qualquer movimento em direção à Ucrânia.

* Nesta segunda-feira, 17/4, o chanceler russo Sergei Lavrov esteve em visita a Brasília; reuniu-se com o colega brasileiro Mauro Vieira no Itamaraty e foi recebido pelo presidente da República na residência oficial. Não se fala em convite ao chanceler ucraniano para vir ao Brasil. Detalhinho interessante 1) a Presidência da República não divulgou fotos do encontro do auto-lançado candidato a mediador pela paz com o simpático, afável e sempre preocupado com a verdade dos fatos Lavrov; e 2) Depois do Brasil, o simpático, afável e sempre preocupado com a verdade dos fatos Lavrov irá visitar Venezuela, Nicarágua e Cuba, esses paraísos da democracia.

* Na semana anterior, Lula fez a esperada, anunciada, trombeteada visita oficial à China. Uma visita que tem todo o sentido, é defensável sobre todos os pontos de vista. Só que ele aproveitou para gestos de clara agressão aos Estados Unidos e à União Européia: escolheu visitar, entre tantos fornecedores chineses, justamente a Huawei, a empresa suspeita de espionagem pelos EUA; declarou que “ninguém vai impedir aproximação com a China”, e ainda disse apoiar “fortemente” a China na sua alegação de que Taiwan pertence a ela.

* Não satisfeito, aproveitou a passagem pelos Emirados Árabes na viagem de volta e saiu-se com essa cabeçada à la Zidane: “A Europa e os Estados Unidos terminam dando a contribuição para a continuidade desta guerra”.

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Esse conjunto de eventos, gestos e declarações deixa três perguntas:

* Por que tudo isso? Para quê?

* O que o Brasil ganha com isso?

* O que ele, Lula, ganha com isso?

Com que finalidade o candidato a Prêmio Nobel da Paz assume tão abertamente um dos dois lados da mais ampla guerra concreta que se trava na Europa desde 1945 e da guerra fria entre Estados Unidos e China?

O cara quer ser o juiz da final de Flamengo x Fluminense usando a camisa do Flamengo!

Ué? Mas ele não é um gênio político?

Um caro amigo meu, que nunca foi antilulista ou antipetista, de forma alguma, desconfia que possa ser senilidade.

Muita gente – autoridades, analistas, jornalistas – está falando em ingenuidade. The Economist usou o termo “ingênuo” – no que editorial de O Estado de S. Paulo desta terça-feira, 18/4, chamou de “benevolência” da revista britânica.

O editorial – com o título que responde a uma daquelas três questões básicas, “Brasil nada ganha e perde muito” – afirma:

“Lula entregou dedos e anéis aos chineses e russos em troca de um punhado de acordos comerciais pouco relevantes, e sem levar nem mesmo um protocolar apoio à pretensão brasileira de integrar permanentemente o Conselho de Segurança da ONU. Lula quer se apresentar como um dos grandes estadistas do mundo. Se depender do que se viu na viagem à China, será visto apenas como peão no Grande Jogo chinês – ou, para usar as palavras benevolentes da revista Economist, como ‘ingênuo’.”

Também em editorial, O Globo diz que a ‘neutralidade’ de Lula é falsa, revela apoio tácito à Rússia e seus movimentos em relação à guerra no Leste europeu são “erros de ordem factual, moral e diplomática”.

São erros de lógica também, mas está perfeita a análise do jornal. Erros de ordem factual, moral e diplomática.

E por que isso? O que explicaria isso?

“Ingênuo ou megalômano?” Este é o título do artigo de Merval Pereira no Globo desta terça.

Em seu artigo, o acadêmico não responde à própria pergunta que faz no título. Mas faz um interessante raciocínio: “O curioso é que o governo brasileiro sob Lula é parceiro reconhecido internacionalmente em temas caros a ele: combate à pobreza e meio ambiente.”

É bem verdade. Lula tem (ou ao menos tinha, antes da sua cruzada pró-Rússia e pró-China) amplo respeito na comunidade internacional. Sua eleição foi saudada calorosamente e com imenso alívio – por bem mais de meio mundo. Imenso alívio: o Brasil havia conseguido se livrar do sujeito de extrema direita, defensor de ditaduras, cópia mal-ajambrada do demônio laranja que havia assustado o mundo em seus quatro anos como presidente dos Estados Unidos.

Lula tinha a simpatia de bem mais de meio mundo. Tinha a faca e o queijo na mão para fazer uma política externa altiva, independente, neutra – como é a tradição da diplomacia brasileira, interrompida exatamente nos quatro anos do que foi derrotado (por pouco) nas urnas em novembro.

Mas aí ele prefere jogar o queijo no lixo e botar a faca entre os dentes! E sair na defesa do alinhamento com um regime autocrático e com outro abertamente ditatorial.

Por que isso? Para que isso?

Merval Pereira fala em seu artigo de “um antiamericanismo infantil na esquerda brasileira, que não distingue um governo democrata, como o de Biden, de um republicano radical, como o de Trump.”

Ainda no sábado, 15/4, Mario Sabino, no portal Metrópoles, deu o seguinte título a um artigo forte, incisivo: “A adesão de Lula ao eixo Pequim-Moscou é ideológica, não pragmática”.

Ideologia? Como assim? A rigor, Lula nunca foi marxista-leninista, comunista. E não há regime mais direitista do que a do ex-funcionário da KGB que pretende ser o novo czar de todas as Rússias.

Mas Mario Sabino exibe seus argumentos. Por exemplo:

“O multilateralismo que chineses e russos vendem em contraposição aos Estados Unidos e ao Ocidente é uma falácia que está sendo comprada pelo presidente da República e pelo PT, em nome do Brasil. Não se trata apenas de substituir o dólar como moeda de troca internacional, algo muito conveniente também para driblar sanções econômicas como as impostas à Rússia. Trata-se de substituir democracia por tirania. Não se trata de ‘equilibrar a geopolítica mundial’ ou ‘mudar a governança mundial’ juntamente com a China — e a Rússia —, mas de criar um desequilíbrio global em favor de ditaduras.”

Será?

Melhor acreditar que Lula é apenas megalomaníaco e ingênuo. Ou senil. E torcer para que caia a ficha. Que alguma boa e corajosa alma diga ao Grande Líder dos Povos que a canoa é furada.

Parece até que essa alma boa e corajosa apareceu: na tarde desta terça-feira, 18/4, Lula deu uma leve recuadinha. Leu a seguinte frase, em um discurso escrito: “Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito.”

Em um caso típico de wishful thinking, de quem está torcendo para que aquilo que se deseja se torne realidade, os jornais da quarta-feira, 19/4, deram com destaque que “Lula muda tom e condena invasão russa da Ucrânia”.

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Brasil nada ganha e perde muito

Editorial, O Estado de S. Paulo, 18/4/2023

Para evitar um novo mandato de Jair Bolsonaro, que seria terrível para o País, milhões de eleitores votaram em Lula da Silva mesmo sem concordar com os dogmas retrógrados do PT. Mas Lula da Silva e o PT não parecem dispostos a fazer nenhuma concessão a esses eleitores – ao contrário, o chefão petista poucas vezes foi tão fiel à ideologia carcomida que reduz tudo à luta de classes.

Não pode ser outra a explicação para o comportamento de Lula em sua recente viagem à China, ocasião em que transformou o Brasil em sabujo dos interesses chineses só e exclusivamente para se distanciar dos Estados Unidos, o velho vilão da esquerda brasileira.

No afã de parecer independente dos americanos, Lula esteve a um passo de alinhar o Brasil à Rússia na guerra criminosa de Vladimir Putin contra a Ucrânia. Não se sabe exatamente o que o Brasil ganhou com esses gestos tresloucados de Lula, mas sabe-se o que está perdendo: sua tradicional imagem de país equilibrado, neutro em relação aos principais conflitos, mas defensor intransigente dos direitos humanos – como, aliás, está expresso no artigo 4.º da nossa Constituição. Isso sem falar em ruídos desnecessários com parceiros relevantes, como Estados Unidos e Europa.

Na viagem à China, Lula se destacou por sinalizar o alinhamento do Brasil a uma ordem internacional baseada no autoritarismo e na força em oposição a uma ordem baseada no direito internacional e na valorização dos direitos humanos, do pluralismo político e das liberdades civis. Tudo a pretexto dos “interesses econômicos”.

De fato, as transferências tecnológicas da China são do interesse do Brasil. Para simbolizá-lo, Lula poderia visitar um dos muitos fornecedores chineses. Mas selecionou a dedo a Huawei, epicentro de um entrevero no Ocidente por suspeita de espionagem, e lá bradou que “ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”.

Lula também resolveu bajular os chineses ao defender a substituição do dólar pela moeda chinesa nas transações internacionais, sugerindo que a prevalência do dólar é mais um sinal do imperialismo americano. Em um par de frases, deixou claro que, obnubilado pela ideologia, desconhece que o mundo prefere negociar com uma moeda emitida pelo banco central autônomo da maior democracia do mundo, cujos pesos e contrapesos impedem que o câmbio e o fluxo de capitais sejam controlados por um autocrata, como é na China.

Mas um dos pontos altos do vexame da viagem de Lula foi o momento em que, ao falar da guerra na Ucrânia, voltou a equiparar o agressor, a Rússia, ao agredido, a Ucrânia, e a condenar os EUA e a Europa por ajudarem os ucranianos a restaurarem sua soberania. As declarações de Lula não produziram nada a não ser indignação e indiferença e não melhoraram um centímetro a posição do Brasil na pretensão de integrar o time de mediadores do conflito. Hoje, aliás, o Brasil, graças à loquacidade irresponsável de Lula, é cada vez mais visto como não confiável, por sua aparente simpatia por russos e chineses. Em visita ao Brasil, o chanceler russo, Serguei Lavrov, não deixou por menos: “As visões do Brasil e Rússia são únicas”, numa referência à Ucrânia. Não foi desmentido pelo governo brasileiro – e nem poderia, porque Lula disse textualmente que a Ucrânia é tão culpada pela guerra quanto o país que a invadiu.

Em outro momento particularmente irresponsável, Lula resolveu apoiar “fortemente” a China na sua querela com a democrática Taiwan. Mesmo que a declaração não mude o entendimento tradicional do Brasil, ela poderia ser evitada no momento em que a China ameaça retomar Taiwan à força, desafiando os Estados Unidos.

Como se observa, Lula entregou dedos e anéis aos chineses e russos em troca de um punhado de acordos comerciais pouco relevantes, e sem levar nem mesmo um protocolar apoio à pretensão brasileira de integrar permanentemente o Conselho de Segurança da ONU. Lula quer se apresentar como um dos grandes estadistas do mundo. Se depender do que se viu na viagem à China, será visto apenas como peão no Grande Jogo chinês – ou, para usar as palavras benevolentes da revista Economist, como “ingênuo”.

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Ingênuo ou megalômano?

Por Merval Pereira, O Globo, 18/4/2023

O presidente Lula é ingênuo ou megalomaníaco? Na revista inglesa The Economist, e em diversas abordagens de jornais dos Estados Unidos, a possibilidade de o presidente brasileiro ser ingênuo tentando ter influência nos “grandes temas políticos em que tem pouca ou nenhuma” é a mais aventada. Essa obsessão de Lula de se tornar um líder internacional sem resolver as questões internas do país que governa é antiga, talvez convencido pelo então presidente Barack Obama, que o classificou como “o cara” numa reunião internacional.

Mas Obama se arrependeria mais tarde. No último ano de seu segundo mandato, o Brasil tentou intermediar um acordo nuclear entre Irã e Estados Unidos, coadjuvado pela Turquia, mas ele foi rejeitado pelos americanos. O governo brasileiro divulgou uma carta que o presidente americano enviara a Lula querendo provar que o governo dos EUA fugia de compromissos assumidos. Só que na carta de Obama estava definido que o Irã deveria “reduzir substancialmente” seu estoque de urânio de baixo enriquecimento na transição para o acordo internacional. Como Brasil e Turquia permitiam que o Irã continuasse a enriquecer urânio por um ano antes dessa transição, o governo americano recusou o acordo, fechado mais adiante.

Em 22 de julho de 2010, em meio a uma crise causada pelas acusações do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe na OEA de que guerrilheiros das Farc tinham estabelecido bases e se escondido atrás da fronteira venezuelana, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, anunciou o rompimento das relações diplomáticas entre os dois países. O Brasil se ofereceu para intermediar um acordo, mas foi vetado pela Colômbia por não ter imparcialidade para tal. Hoje, depois de ter assumido uma posição descabida a favor da Rússia na guerra com a Ucrânia, o país perdeu completamente a capacidade de participar de um “grupo de países a favor da paz”. Não tem cabimento afirmar que a guerra existe por culpa do país invadido, a Ucrânia. O raciocínio parece baseado em pílulas de sabedoria de mesa de bar, onde Lula pretendia resolver a questão “tomando uma cervejinha”. Quando um não quer, dois não brigam, raciocina simploriamente Lula.

O curioso é que o governo brasileiro sob Lula é parceiro reconhecido internacionalmente em temas caros a ele: combate à pobreza e meio ambiente. Há um antiamericanismo infantil na esquerda brasileira, que não distingue um governo democrata, como o de Biden, de um republicano radical, como o de Trump. O acrônimo mais famoso das últimas duas décadas, Bric —criado em análise do Goldman Sachs do final de 2003 unindo as iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China – mais tarde entraria a África do Sul, passando a ser conhecido como Brics -, países que estariam no topo da economia mundial nos próximos 50 anos —, está em franca decadência há bom tempo. Pelo estudo, o Brasil seria a quinta economia do mundo, medida pelo Produto Interno Bruto. Para chegar lá em 2050, teria de crescer em média 3,6% por 50 anos. Mas tem crescido à média de 2,5% nos últimos 40. Essa performance nos tem valido a classificação de “eternos emergentes”, mais desagradável que “país do futuro”.

Até agora, as discussões no Brics têm sido dominadas por temas que dividem os integrantes: a representação mais ampla dos países emergentes nas organizações estabelecidas depois da Segunda Guerra Mundial e a questão do protecionismo, especialmente na agricultura. Dois deles, China e Rússia, estão entrincheirados entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. E, no tema do protecionismo, a divisão ocorre em outras linhas, porque o Brasil busca apoio aos seus produtos agrícolas, e China e Índia têm o interesse de resguardar sua agricultura familiar. A oposição aos Estados Unidos pode uni-los, mas, neste novo mundo geopolítico desenhado pela crise internacional, ainda há muitos avanços a ser feitos pelo Brics.

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‘Neutralidade’ de Lula revela apoio tácito à Rússia

Movimentos em relação ao conflito ucraniano representam erros de ordem factual, moral e diplomática

Editorial, O Globo, 17/4/2023

Os últimos movimentos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em relação à guerra na Ucrânia demonstram não a neutralidade que ele e o Itamaraty afirmam manter em relação ao conflito, mas uma posição tacitamente favorável aos interesses da Rússia. Ao assumi-la, Lula comete erros de ordem factual, moral e diplomática.

Na escala em Abu Dhabi voltando da China, Lula afirmou que “a decisão da guerra foi tomada por dois países”, repetindo o que dissera no ano passado, quando afirmou que o ucraniano Volodymyr Zelensky é “tão responsável” pela guerra quanto o russo Vladimir Putin. Os fatos desmentem Lula. A Rússia invadiu o território ucraniano de modo injustificável e, desde então, a Ucrânia viveu um êxodo de quase um quinto da população e soma perto de 150 mil mortos. Putin é acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de crimes contra a humanidade por massacres em território ucraniano. Ao pôr no mesmo patamar a agressão russa e a resistência ucraniana, Lula incorre em disparate semelhante ao de Donald Trump quando, diante da violência da extrema direita em Charlottesville em 2017, disse haver “gente ruim dos dois lados”. Não há comparação possível.

Mesmo que tenha tentado consertar dizendo que a Rússia não poderá ficar com todo o território ucraniano conquistado, sua simpatia pelo lado russo é evidente. Para começar, ele tem repetido que a Ucrânia não poderá voltar a ocupar a Crimeia, anexada em 2014. Levando em conta a evolução do conflito, é provável que tenha razão. Mas, se Lula deseja se credenciar como negociador da paz e reivindica “neutralidade”, no mínimo não deveria manifestar opinião sobre concessões (a Ucrânia reivindica soberania sobre a Crimeia e territórios ocupados).

Além disso, enviou para encontrar Putin seu assessor especial e homem de confiança Celso Amorim. Nesta segunda-feira recebeu em Brasília o chanceler russo Sergei Lavrov. Nenhum movimento similar de aproximação foi feito em direção aos ucranianos. Ao contrário, Lula rejeitou enviar-lhes munição e criticou americanos e europeus por continuarem a armá-los. Em seu apoio a cada dia menos velado à Rússia, vai além até do antecessor, Jair Bolsonaro, que visitou Putin, mas às vésperas da invasão.

Nada disso quer dizer que, como princípio, a neutralidade esteja errada. Embora o Brasil deva empenhar solidariedade à Ucrânia — regime democrático atacado por uma autocracia —, pragmatismo também é valor essencial em política externa. Não interessa ao país assumir lado no conflito subjacente, entre Estados Unidos (pró-Ucrânia) e China (pró-Rússia). No discurso, Lula tenta imitar os não alinhados da Guerra Fria. De um lado, flerta com o americano Joe Biden, outro líder de uma democracia agredida por extremistas. De outro, proclama uma moeda alternativa à hegemonia do dólar, num aceno ao chinês Xi Jinping. Mas, se comercialmente o Brasil tem muito a ganhar com a aproximação da China, nada leva com o apoio à Rússia.

A tradição de não alinhamento poderia ser seguida de modo mais produtivo em questões onde a voz do Brasil importa, como mudanças climáticas ou transição na Venezuela. Em vez disso, dentre quase 130 “neutros” no conflito ucraniano, o Brasil é o único que se meteu a criar um “clube da paz” e flerta abertamente com a Rússia. O perigo de provocar os americanos e europeus é evidente: Lula arrisca levar um tombo.

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A adesão de Lula ao eixo Pequim-Moscou é ideológica, não pragmática

Por Mario Sabino, Metrópoles, 15/4/2023

Alguns jornalistas brasileiros, ao comentar a visita de Lula à China, mostram que não entendem nada do que ocorre no mundo. Estamos vivendo o prenúncio do que pode ser a Terceira Guerra Mundial, mas eles culpam os Estados Unidos pelo que está ocorrendo, enquanto festejam o que seria o pragmatismo do presidente da República.

Os americanos cometeram e cometem barbaridades, mas a sua democracia revela, pune culpados e regenera-se continuamente. Chineses e russos cometeram e cometem barbaridades, mas os seus regimes autoritários, que fazem terra arrasada dos direitos humanos, escondem, punem inocentes e endurecem-se. Isso faz toda a diferença. O mundo sob hegemonia dos Estados Unidos não é paraíso, mas purgatório; o mundo sob hegemonia da China e da Rússia seria inferno.

Leio nos nossos jornais que os Estados Unidos erram ao tratar a Rússia como inimiga e a China como adversária, sob a velha lógica da Guerra Fria. Risível. É exatamente o contrário: é a Rússia que revive a lógica da Guerra Fria, porque Vladimir Putin nutre ódio irracional pelo Ocidente e quer ressuscitar o império soviético. Ele diz isso, não o Departamento de Estado americano. Ele faz isso, não Washington.

A Rússia ocupou a Crimeia, em 2014, e pretendeu apagar a Ucrânia do mapa, invadindo o vizinho em 2022, a fim de anexá-lo, em aberto desprezo a todas as leis do direito internacional. O seu exército massacra civis, sequestra crianças e arrasa cidades inteiras. É para conter os russos que os Estados Unidos ajudam os ucranianos, não para destruir a Rússia.

Vladimir Putin atacou a Ucrânia a pretexto de defender a minoria ucraniana de língua russa de “neonazistas” e porque, segundo alegou, o país poderia entrar para a Otan, uma aliança militar que ameaçaria a Rússia. De novo, é exatamente o contrário: quem utiliza neonazistas — os que integram o grupo paramilitar da Wagner —, para atacar a Ucrânia, é Moscou. E a minoria de língua russa vem fazendo questão de usar o ucraniano como língua do dia-a-dia, horrorizada que está com Vladimir Putin.

A Ucrânia queria entrar na Otan, antes de ser invadida, mas a aliança militar ocidental rechaçava a ideia, justamente para evitar um conflito com a Rússia e pelo fato de o seu estatuto impedir a aceitação de um país que esteja em guerra com outro, caso da Ucrânia, que teve a Crimeia ocupada e, desde então, mesmo antes da invasão de 2022, lutava contra russos no leste do país.

A Otan não foi criada para provocar a Rússia, mas para defender-se dela. Depois da agressão à Ucrânia, as até então neutras Finlândia e Suécia, por medo de Vladimir Putin, aderiram à aliança militar, e a própria Ucrânia poderá vir a ser aceita, uma vez terminado o conflito. Ou seja, o ditador russo conseguiu fazer com que a Otan se fortalecesse com novos integrantes e também entre os antigos, muitos do quais nutriam a ilusão de que a Rússia não representava mais grande ameaça e que a aliança militar estava destinada a se dissolver.

Sob Xi Jinping, a China já não se contenta mais em ser superpotência econômica. Quer ser superpotência militar. Está se armando rapidamente. O seu arsenal já conta com mais de 400 ogivas nucleares e o Pentágono estima que, se o ritmo de expansão continuar, Pequim deverá contar com 700 ogivas em 2027, 1.000 em 2030 e 1.500 em 2035. Hoje, os Estados Unidos têm 5.428 e a Rússia, 5.977. Ou seja, dentro em breve, dois regimes autoritários e imperialistas à moda antiga, que não veem problema em tomar à força territórios alheios, terão mais ogivas nucleares somadas do que as democracias americana, britânica e francesa juntas.

A China prepara-se para tomar Taiwan. Quando Richard Nixon retomou o diálogo com Pequim, em 1972, por meio da “diplomacia do ping-pong”, a condição era que a China buscasse absorver Taiwan pacificamente, mantendo a democracia na ilha. Foi nesses termos que o Reino Unido devolveu Hong Kong a Pequim, em 1997. Mas os chineses esmagaram o regime democrático em Hong Kong e, agora, querem ocupar Taiwan ou impor um bloqueio marítimo à ilha, para estrangular a sua economia, como se isso não fosse ato de guerra. Nesse contexto, o fato de Lula ter reiterado, em documento assinado na sua visita, o reconhecimento de que existe uma só China, da qual Taiwan é parte inseparável, serve como chancela brasileira para Pequim ir adiante nos seus planos.

O multilateralismo que chineses e russos vendem em contraposição aos Estados Unidos e ao Ocidente é uma falácia que está sendo comprada pelo presidente da República e pelo PT, em nome do Brasil. Não se trata apenas de substituir o dólar como moeda de troca internacional, algo muito conveniente também para driblar sanções econômicas como as impostas à Rússia. Trata-se de substituir democracia por tirania. Não se trata de “equilibrar a geopolítica mundial” ou “mudar a governança mundial” juntamente com a China — e a Rússia —, mas de criar um desequilíbrio global em favor de ditaduras.

A paz que Pequim e Lula dizem querer na Ucrânia é a dos cemitérios, com a rendição de Kiev e a subalternidade completa da Ucrânia a Moscou. O tal plano chinês de pacificação na Europa é uma farsa que acaba de ser inteiramente desmontada com a informação, roubada da inteligência americana e vazada em chats na internet, de que a China enviaria disfarçadamente armas à Rússia.

O Brasil tem nos chineses os seus maiores parceiros comerciais e as oportunidades no país asiático são crescentes, mas há valores que não deveriam ser objeto de intercâmbio. Nem precisariam. A adesão de Lula e do PT ao eixo Pequim-Moscou é voluntária, ideológica, da matriz esquerdista antiamericana, não movida por pragmatismos, já que os Estados Unidos, ora bolas, estariam nos deixando de mãos abanando e ainda nos veriam como quintal.

A opção petista é, no plano regional, pela formação de blocos com regimes autoritários antiamericanos, como Cuba e Venezuela. No global, é pela recusa em pertencer ao clube das nações ricas, como a OCDE, porque demandaria o cumprimento de metas opostas às do seu programa partidário populista e anacrônico. Natural, portanto, o alinhamento político a China e Rússia, que se opõem à hegemonia americana. Se há alguma circunstância nesse movimento atual de Lula e do PT, é a raiva contra Washington por causa do apoio à Lava Jato.

Na semana que vem, depois do espetáculo de capachismo em Pequim, o presidente brasileiro receberá o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, para discutir “a paz” na Ucrânia, em sequência à conversa secreta entre Celso Amorim e Vladimir Putin. Lavrov é um cínico como Molotov, o chanceler de Josef Stálin, e tornou-se pária no meio diplomático ocidental, com as suas mentiras e dissimulações. A sua vinda a Brasília só serve para fins de propaganda a Moscou. Alguns jornalistas brasileiros não entendem nada do que ocorre no mundo. Nem no Brasil.

18 e 19/4/2023

Esta é a sétima compilação da série “O maior inimigo do governo é Lula”.

Exatamente como Bolsonaro, Lula enxerga teoria conspiratória em tudo.

 

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