O alinhamento de Lula

Quando Lula visitou a China pela primeira vez, em 2004, vivíamos em um mundo unipolar, hegemonizado de forma absoluta pelos Estados Unidos. Os valores da democracia ocidental tinham se afirmado como vitoriosos diante da hecatombe do chamado “socialismo real”. Os americanos eram então nosso principal parceiro comercial. Apenas 5% das exportações brasileiras destinavam-se ao mercado chinês.

A recente visita de Lula ao país de Xi Jinping se deu em uma ordem internacional completamente diferente. A guerra da Ucrânia escancarou a bipolaridade de hoje, com o mundo dividido entre o bloco ocidental, constituído pelos Estados Unidos e as democracias européias, e o bloco eurasiano, constituído pelo eixo China-Rússia. A nova guerra fria se dá em vários campos e tem forte componente no plano econômico.

Nesse novo quadro, o comércio deslocou-se do Atlântico para o Pacífico, com a China representando 25% de nossas exportações. Só o mercado chinês absorve 34% das exportações do agronegócio brasileiro.

A importância estratégica da China é, portanto, autoexplicativa, reforçada pela necessidade do Brasil reorientar sua infraestrutura para facilitar o acesso ao Pacífico. Essa mudança também é de interesse dos chineses, que podem ser os grandes investidores para a sua concretização.

Vivemos também diante de uma nova agenda mundial, com as questões energéticas cada vez mais presentes, a mudança para uma economia verde e a proteção ao meio-ambiente.

O Brasil, país de valores e vocação ocidentais, só tem a lucrar com essa agenda, podendo ter um papel importante por seu potencial de produtor de energia limpa e seu ativo ambiental.

Nessa realidade tão complexa esperava-se que Lula, em sua nova viagem à China, exercesse um pragmatismo responsável, fundamental para saber navegar entre a China e os Estados Unidos, sendo pouco inteligente entrar em bola dividida com as duas potências mundiais.

Lula tem o dever de fazer o Brasil ser ouvido nas questões que nos afetam. O problema tem sido quando o presidente se manifesta de forma errática ou contraditória.

Em fevereiro, na saída da visita a Joe Biden nos EUA, ele assinou uma nota onde lamentou “a violação da integridade territorial da Ucrânia pela Rússia e a anexação de partes de seu território como violações flagrantes do direito internacional”.

Agora, ao final da viagem à China, segundo a métrica do presidente a Ucrânia, país invadido, é tão responsável pela guerra como o país agressor, a Rússia. De forma simplória, nosso presidente encontrou a fórmula mágica para o fim do conflito. Bastaria os Estados Unidos e a União Européia deixarem de fornecer armas para a Ucrânia. Imaginem uma Ucrânia desarmada. Teria de ceder a todas as exigências da Rússia. A começar por entregar parte de seu território e concordar com a instalação de um governo fantoche, comandado por Vladimir Putin.

O duro repúdio dos Estados Unidos e da União Européia deu a devida dimensão do quão desastrosas foram as declarações de Lula. Em vez de desempenhar um papel positivo na construção de uma solução para o conflito, nosso presidente perdeu qualquer condição de diálogo com um dos lados.

A exacerbação do seu ativismo diplomático é a negação da doutrina diplomática brasileira de se pautar pela moderação e de evitar tomar partido nos conflitos entre países. Mais grave: criou, desnecessariamente, atritos com dois parceiros estratégicos com os quais temos identificação na defesa da ordem democrática mundial.

Difícil crer que Lula fez tais afirmações por ingenuidade. Ao afrontar os Estados Unidos forneceu munição para Donald Trump acusar Joe Biden de ter jogado o Brasil nos braços de Putin e Xi Jin Ping. A oposição bolsonarista, que anda à cata de uma bandeira para chamar de sua, também agradece ao alinhamento automático de Lula conforme se viu no discurso do senador Rogério Marinho na segunda-feira.

Os outros mandatos de Lula foram marcados por um antiamericanismo pueril. Em nome da causa “anti-imperialista” perfilou-se ao lado regimes autocráticos, como Cuba, Venezuela e Nicarágua. Talvez o mesmo sentimento explique seu viés ideológico nas relações diplomáticas.

No governo Bolsonaro, as relações com a China foram bloqueadas por uma visão ideológica canhestra, impeditiva da construção de um bom ambiente com o nosso principal parceiro comercial. Para corrigir a rota não precisamos cair no desvio oposto de atrofiar as relações com quem temos historicamente afinidades culturais e valores comuns.

O Brasil não tem de escolher entre a defesa da ordem mundial democrática e as relações comerciais com a China. Já entendemos faz tempo que é possível combinar os valores universais da comunidade internacional – como democracia, sustentabilidade e direitos humanos – com nossos interesses econômicos e comerciais.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 19/4/2023. 

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