O Rambo e Alaíde Costa

Duas ações da publicidade brasileira nos últimos dias chamam a atenção. As duas se utilizam da imagem de artistas. Uma, massiva, fortíssima, milionária, na TV e nos jornais, traz o ator e o apresentador Marcos Mion ao lado de Sylvester Rambo Rocky Stallone, juntos e ao vivo. A outra, extremamente sutil, estranha, fala de Alaíde Costa, essa jóia da música popular brasileira tão esplêndida quanto pouco badalada.

A campanha publicitária que uniu Mion e Rocky, o lutador, é do Banco Itaú, e um filmete em que os dois sobem uma escadaria – numa cena que pretende fazer o espectador se lembrar do primeiro dos filmes da série com o boxeador interpretado por Stallone, lançado em 1976, foi apresentado no Jornal Nacional da segunda-feira, 2 de outubro. Durava, sei lá, intermináveis 60 segundos, talvez até mais, algo gigantesco na TV – e todo mundo está cansado de saber que o horário nobre da Rede Globo é o mais caro da televisão brasileira.

Mas um minuto inteiro no Jornal Nacional é pouco para uma campanha publicitária do Itaú, e então os grandes jornais da terça-feira, 3 de outubro, vieram envolvidos em quatro páginas com fotos de Mion e o Rambo – desta vez sem sua metralhadora de matar vietcongs e comunistas em geral. Em vez de apontar a metralhadora, Rambo, assim como Mion, aponta o dedo para o leitor do jornal.  “Aonde você quer chegar?”, os dois perguntam.

Sei lá. Eu quero é me esconder desse dedo em riste do Stallone. Da mão desse cara sai soco ou tiro na cara.

***

Se a campanha do Itaú é tipo cheguei, blockbuster, arrasa-quarteirão, um berro de tenor, a que usa Alaíde Costa é o oposto – é suave, doce como a voz da própria artista, como o som da bossa nova.

Foram duas páginas inteiras no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo do domingo, 1º de outubro. Duas grandes fotos dela, linda, gloriosa, aos 87 anos, e um texto que começa assim:

“Erramos.

E dessa vez (sic) não foi em uma só frase ou matéria. Não foi um erro que aconteceu em um só dias, semana, mês ou ano. EW nem uma falha cometida por uma única pessoa. Este erro (sic) é de todos nós. A Bossa Nova passou quase setenta anos sabendo de cor quem eram seus pais, mas nunca compartilhou a história de uma das suas mães: Alaíde Costa.

Aliás, você conhece Alaíde Costa? Se não conhece, vamos apresentar a você: Alaíde Costa é uma das maiores cantoras brasileiras.”

Tirando os equívocos de Português (o certo seria “esta vez” e “esse erro”), um texto informativo, correto, interessante.

Estranhamente, sem assinatura. É muito esquisito, porque textos sobre artes, filmes, discos, artistas, costumam sempre, sempre ser assinados; os nomes dos jornalistas que escrevem sobre cultura costumam ser bem conhecidos, exatamente por isso. (Sei bem disso: eu ficava muito orgulhoso quando o Jornal da Tarde publicava meu nome em textos sobre discos e/ou shows.)

Mas isso é o de menos. O que chama a atenção é que, no alto da primeira das duas páginas, logo acima do grande título “Errata de 70 anos”, está lá: “Informe Publicitário”.

Foi o meu amigo Valdir Sanches que chamou minha atenção para a coisa. Repórter sempre atento, mesmo tantos anos depois de se aposentar, Valdir achou esquisito aquilo – por que diabos duas páginas de matéria com Alaíde Costa na Folha de domingo com o aviso de que é informe publicitário?

De maneira extremamente sutil, com letras miúdas, informa-se, ao pé da segunda das duas páginas:

“Johnnie Walker celebra quem dá passos que levam além.”

E, embaixo, como manda a legislação sobre propagandas de bebida, aparece: “Aprecie com moderação”.

Será que é para apreciar Alaíde Costa com moderação?

Na página ímpar seguinte da Ilustríssima há uma peça publicitária, esta clara, óbvia, grandona, tonitroante como um Placido Domingo, nada a ver com a suavidade de Alaíde: “Johnnie Walker. Passos que te levam além. Keep walking.”

Nada contra as duas páginas com Alaíde Costa. Não é isso, de forma alguma. Alaíde Costa merece todo tipo de homenagem – e os publicitários que se lembraram dela estavam bem antenados, já que, depois de anos e anos fora dos spotlights, a grande cantora reapareceu agora no noticiário: ela estará no próximo domingo, dia 8, no palco do Carnegie Hall, em Nova York, juntamente com Roberto Menescal e alguns nomes que não têm nada a ver com a bossa nova (Carlinhos Brown, Seu Jorge), no show “A Grande Noite” – para lembrar o espetáculo que lançou a BN ao mundo exatamente naquele lendário teatro, em 1962.

“Keep walking”, a frase que acompanha o Johnnie Walker há décadas, tem tudo a ver com peças publicitárias baseadas no mote “Passos que te levam além”. E lembrar, nessa campanha, que Alaíde Costa foi uma voz fundamental para a bossa nova, um movimento que levou a música brasileira além, faz sentido, tem tudo a ver.

E há também exatamente a coisas do estranhamento… Se é algo estranho, as pessoas vão falar – como eu mesmo estou aqui falando…

Mas é tudo tão sutil que a primeira reação da gente, sem dúvida, é dizer como disse o Valdir, como eu disse: “Não entendi”…

***

Agora, se até dá para ver lógica, sentido, na campanha do uísque, o mesmo não acontece com a do banco.

Por que, raios, gastar uma grana pretíssima, perdão, uma grana afrodescendentíssima com Sylvester Stallone?

Recentemente, o garoto propaganda do Itaú foi Lewis Hamilton – e aí, claro, tinha tudo a ver. Lewis Hamilton é o que há – mesmo que este ano, especificamente, não tenha vencido uma única corrida, o cara foi campeão do mundo sete vezes, pô, e tem todo o tipo perfeito para agradar: não é branco de olhos azuis, é uma pessoa de opiniões firmes, fortes, é simpático, carismático.

Mas Sylvester Stallone?

Não há nada menos moderno, menos charmoso, menos prá frente, menos progressista, menos in, menos cool do que Rocky e Rambo.

Sylvester Stallone cheira a guerra fria, diabo.

Mas é isso mesmo: a publicidade é algo mais difícil de entender do que física quântica ou sânscrito.

3/10/2023

3 Comentários para “O Rambo e Alaíde Costa”

  1. Uma peça de qualidade literária, resultando em agradável leitura… não falo de Alaíde, nem de Rambo. Mas desse texto de Sérgio Vaz, que decodificou, para mim, aquelas surpreendentes aparições nas capas dos jornais.
    Bem-vinda, Alaide, não ligo a mínima para Rambo.

  2. Não entendemos, pô!!!!
    Mas que diabo é isso??????
    O que vale é que temos Alaíde Costa.
    Xô Rambo…..
    Delícia de texto Sérgio Vaz, como sempre.

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