La Violetera, Sarita Montiel y mi madre

Duvido que alguém com menos de, digamos, 60 anos de idade… Hum, 60 talvez seja muito. Melhor começar de novo.

Garanto que ninguém com menos de 50 anos de idade – a não ser que seja um cinéfilo com memória de Rubinho Ewald Filho – sabe quem é Sarita Montiel.

Pois é. Mas eu, que já passei dos 50 e dos 60 faz tempo, acordei hoje com “La Violetera” na cabeça.

A melodia veio inteira, mas me escapava o primeiro verso, as primeiras palavras. Lembrava da segunda frase: “en Madrid aparecen las violeteras…”

Contei isso para Mary, que, nove anos mais nova que eu, jamais teve idéia de quem era Sarita Montiel ou o que era “La Violetera”. E, enquanto contava um pouco para ela, voltou a palavra “golondrinas”. Um pássaro, eu disse; um pássaro, é claro – provavelmente andorinha, porque afinal uma andorinha só  não faz verão, e eu não me esqueci de que em francês é hirondelle.  Tem um filme com Michel Serrault e Mathilde Seigner cujo título é Une Hirondelle a Fait le Printemps

Ahnn…. Está um tanto confuso.

Assim que acordei com “La Violetera” na cabeça, falei com a Mary que gostaria de fazer um suelto sobre isso, e um suelto é isso mesmo, uma coisa solta, mas também não pode ser solta demais – hay que ser suelto, pero sin perder el sentido, el entendimiento, la razón.

Não é o caso de começar de novo, mas o que eu de fato queria dizer, neste suelto, é que Sarita Montiel, La Violetera, o filme, e “La Violetera”, a canção, me fazem lembrar de minha mãe.

Minha mãe me levou para ver La Violetera. Tenho essa lembrança marcada na cabeça. Foi no Cine Tupi, mais tarde Cine Jacques – e é engraçado, porque também tenho a lembrança de que foi ao Cine Tupi que minha mãe me levou para ver Sissi, o primeiro da trilogia com Romy Schneider. Vi todos os três Sissi  à medida em que foram sendo lançados, e mamãe adorava aquilo, mas não tenho certeza se ela também me levou para ver Sissi, a Imperatriz e Sissi e Seu Destino, e nem sei se eles também passaram no Cine Tupi.

Tenho certeza é de que minha mãe me levou ao Cine Tupi para ver tanto La Violetera quanto o primeiro da trilogia Sissi – e foi antes de eu fazer 12 anos, porque, a partir dos 12 anos, eu já ia ao cinema sozinho, e já anotava no  caderninho os filmes que via.

Sim, a partir dos 12 ia ao cinema sozinho; Belo Horizonte era uma cidade calma, tranquila e pequena, e os garotos de 12 anos podiam perfeitamente pegar o trólebus, ou mesmo o bonde, ou qualquer ônibus, e ir ao Centro, ver um filme e voltar para casa na maior.

La Violetera é de antes de eu fazer 10 anos – vi hoje que o filme é de 1958, foi lançado em Madri em abril de 1958, e então deve ter sido lançado no Brasil ou no final daquele ano ou no máximo no primeiro semestre de 1959; assim, minha mãe me levou para vê-lo quando eu estava com oito ou no máximo nove anos.

***

Sou o caçula de uma família grande, minha mãe já havia passado dos 40 quanto eu nasci, e então já não era jovem quando me levava ao cinema na simpática Belo Horizonte da segunda metade dos anos 50. Era uma senhorinha bastante formal para muitas coisas, em especial no jeito de se vestir para sair de casa, e então dá para apostar que ela estava bem vestida quando me levou ao Cine Tupi para ver La Violetera.

E dá para apostar também que ela deve ter dado uma choradinha em alguns momentos do filme.

Mamãe gostava de romances bem água-com-açúcar, daquele tipo de Elzira: A Morte Virgem, O Grande Industrial, que as gerações mais novas que as dela só conhecem da canção de Caetano Veloso. Os romances para moças de fino trato, assinadas por M. Delly. Sabia de cor algumas falas de A Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas, e, de tanto recitar algumas, fez o caçula decorar. “Em que pensas, cardeal? Em como era belo o amor em Portugal?”

(Décadas depois que minha mãe morreu, levei um susto quando um personagem de Juventude, de Domingos Oliveira, de 2008, cita, brincalhão, uma fala de A Ceia dos Cardeais.)

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Meus dedos se soltaram no teclado, e esse suelto foi saindo muy sueltamente, mas dei uma paradinha para pegar uma nova cerveja e a segunda (e última da noite) dose de vodca, e aí me deu uma certa tristeza, porque pensei que tanto Sissi quanto La Violetera são histórias de mulheres que de repente, sem fazer qualquer esforço, conquistam príncipes encantados – e minha mãe, tadinha, como tantas e tantas e tantas mulheres do mundo, sonhava com a possibilidade de a vida ser um romance bem água-com-açúcar, e então conquistar seu príncipe encantado.

Tadinha. Floriano Vaz, o senhor meu pai, não tinha nada de príncipe encantado, mas Dona Maria achou que já não estava mais em idade para exigir muita coisa, e então…

Mas, diabo, isso aqui era para ser um suelto, um texto leve, leviano, suave, gostoso!

Leve, leviano, suave, gostoso como “La Violetera”, a canção, e La Violetera, o filme.

***

Como vivemos neste admirável mundo novo, em que grupos mal intencionados fazem hordas de pessoas acreditar que a Terra é plana e outros absurdos ainda mais absurdos do que esse, tipo Bolsonaro é honesto e bem preparado e é mito e é Messias – mas que também tem suas coisas boas, como o Titio Google -, ainda no café da manhã eu já ouvia no Spotify Sarita Montiel cantar “La Violetera”, a letra rolando junto.

Mas é claro! Como eu fui capaz de esquecer? “Como aves precursoras de primavera / En Madrid aparecen las violeteras / Que pregonando parecen golondrinas / Que van piando, que van piando”.

Ah, diacho, maravilha ouvir Sarita Montiel cantando “La Violetera”, mas melhor é ver a moça cantando, em carne e osso (e, olha, é boa carne, de primeiríssima), e então, depois de fazer algumas coisas obrigatórias, fui ao YouTube, e estava lá o clipe, o trecho do filme em que Sarita Montiel canta a canção no maravilhoso Teatro Apolo de Madri, e olha bravíssima para Raf Vallone sentado num camarote bem perto do palco.

Ah, meu, mas como ver aquele trechinho do filme sem tentar ver se…?

Sim, o filme está disponível, de graça que nem passeio no parque, no YouTube. A cópia não é boa, de forma alguma – mas está lá. A íntegra, com legendas em Português. Mary me acompanhou na minha viagem ao passado profundo, meio jogando no iPad, meio olhando a TV, e encantou-se por estar compreendendo o Espanhol melhor do que achava que seria capaz.

Sobre La Violetera, o filme, é claro que vou escrever para o + de 50 Anos de Filmes. Mas, diabo, sobre a emoção de rever agora o filme que minha mãe levou pra ver no Cine Tupi…

***

Suelto é para ser leve, leviano, suave. Gostoso como Sarita Montiel – mas, diabo, fica agora na minha cabeça a sensação de que não fiz tudo o que poderia ter feito pela minha mãe.

O lado racional diz que isso é absurdo, é idiotice. O coração dói um tanto – e a verdade é que, por mais que a gente faça pelos nossos pais, ainda é pouco.

Respiro fundo, tomo um golinho, e fico imaginando se minha mãe não achou tremendamente ousado – e ofensivo à moral e aos bons costumes – essa coisa de a Soledad de Sarita Montiel ser tão pouco vestal, virginal…

***

Mary chega ao escritório e me pergunta se vai indo aí. Respondo que mi suelto he quedado um tanto preso…

Não é um bom fecho de suelto – mas, diacho, é o que temos.

O fato é que gosto demais da minha mãe, tenho orgulho dela. E muitas, muitas lembranças boas dela.

22/4/2023

 

 

Um comentário para “La Violetera, Sarita Montiel y mi madre”

  1. Beleza de texto e de lembrança, pois eu também assistia todos os filmes de Sarita Montiel, Joselito e Marisol, três estrelas do cinema espanhol dos anos 50.

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