É voz corrente até entre aliados que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido o maior opositor de seu governo. Uma injustiça. Ao indiscutível peso de suas declarações reprováveis – e não foram poucas – somam-se disputas fratricidas entre partidários, multiplicação de invasões de terra lideradas pelos companheiros do MST, rechaço do PT ao arcabouço fiscal do ministro Fernando Haddad e à reforma tributária do expert Bernard Appy, quadro de ouro do petismo. O governo hoje tem um regente que varia o tom, às vezes abruptamente, e uma orquestra em permanente e decidido desafino.
Repetindo melodias conhecidas, parte do conjunto avançou com a reedição e aprimoramento de programas bem sucedidos como o Bolsa Família. E em ações como as de socorro aos ianomâmis ou as do Ministério da Saúde, com a retomada das campanhas de vacinação e dos procedimentos eletivos. Feitos que os movimentos erráticos da batuta e a cacofonia de gente do próprio governo e de apoiadores, mesmo fiéis, acabam por abafar.
O MST é um caso típico. Com ardor dos anos 1990, o grupo liderado por João Pedro Stédile invadiu 37 propriedades em 2023 – 16 entre janeiro e março e outras 11 no “Abril Vermelho”. Mais do que a metade das 62 invasões que promoveu nos quatro anos de Jair Bolsonaro. Essa foi a sensacional contribuição do companheiro Stédile a Lula, na linha inversa da necessidade do governo de ampliar o diálogo com o agronegócio, responsável por um quarto do PIB do país. Pior: em vez de reprimenda (feita só por obrigação), o MST conseguiu emplacar dirigentes nas regionais do Incra e Stédile sentou-se ao lado de Lula como convidado de honra na visita à China, país líder na importação de produtos agropecuários do Brasil.
Na economia, Lula fez o coro engrossar contra os juros e, especialmente, contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Mas se o esbravejamento uniu, as estratégias para estimular o crescimento do país não alcançam sintonia.
Haddad – não raro o único adulto na sala – tenta seduzir e convencer Lula e o PT de que não há saída possível sem regramento fiscal. Cede aqui e acolá, conversa com Deus e o diabo. Quando parece ter obtido êxito, tem de voltar atrás e reescrever a partitura com notas a mais para agradar uns e outros que só pensam na fanfarra eleitoral. Na Câmara dos Deputados, o ministro da Fazenda recebe mais elogios de gente sem ligação formal com o governo do que de seus colegas de partido.
Na reforma tributária, tema tido como maduro para apreciação do Congresso, o PT também ameaça criar ruído. Aos deputados da legenda, interessa mais alardear a taxação de grandes fortunas – o que é legítimo e já previsto – do que apoiar a necessária suspensão dos benefícios tributários para diversos segmentos. O trailer da taxação frustrada das gigantes chinesas Shopee e Shein, contrabandistas confessas, demonstra o quão difícil será mexer no vespeiro das regalias.
Ao presidente caberia arbitrar conflitos. O problema é que boa parte dos imbróglios tem sido criados pela língua solta de Lula. E os sinais emitidos por ele não são claros. Na política externa, já não há como esconder a encrenca gerada pelo próprio presidente entre as posições defendidas pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, portanto, a voz oficial do Brasil, e o ex Celso Amorim, assessor e amigo do peito de Lula. Despachou-o para a Venezuela de Nicolás Maduro e para a Rússia de Putin. Ameaça agora mandá-lo para a Ucrânia. Tudo à margem do Itamaraty.
Essa renovação afetiva a líderes autocráticos vai na contramão da aura democrática forjada em torno de Lula para atrair centristas e anti-lulistas durante o processo eleitoral. Essas forças também foram escanteadas pela ojeriza governista a tudo que é operado pela iniciativa privada, reforçando o exaurido conceito de que só o Estado presta.
Nesse palco de desarmonia, no qual o governo faz oposição ao governo, não é de se estranhar a CPMI invertida sobre o 8 de Janeiro, a ser instalada nesta semana. Nela, a oposição bolsonarista quer colar em Lula a responsabilidade pela tentativa de golpe contra o governo Lula. Parece coisa de louco. E é.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 23/4/2023.