Preocupações mundanas

Eu não sabia que Lula ia fazer um pitstop nos Emirates no seu retorno da China. Quando descobri, pensei o inevitável: será que algum tonto pode voltar recheado de presentes de ouro e diamantes? 

Minha preocupação pode não ter fundamento, assim espero. Mas aviões da FAB não são à prova de defeitos dessa ordem, como vimos há não muito tempo. Carregam de tudo e mais um pouco. Vai que alguém da comitiva — e são muitos os convivas — cai na tentação de levar na bagagem alguma coisa inesquecível para si e memorável para a amada ou o amado?
E o que pode ser duplamente inesquecível e memorável vindo das Arábias? Deixo a pergunta no ar. E rogo que nenhum conviva tenha sucumbido à tentação de trazer um desses ítens do exibicionismo árabe ancestral em sua mochila.
Mas tenho outra preocupação, mais importante. Nos dois países que visitou na semana passada, a China e os Emirates, Luiz Inácio deu fartas provas de que está perfeitamente alinhado com o pensamento de seu antecessor na cadeira presidencial. 
Como assim? Pois é. Nunca pensei que um governo de esquerda popular pudesse abraçar com tanto ardor a idéia de um governo de ultradireita neonazista e desmiolado. Mas aí está. Para os dois, a culpa da guerra da Rússia contra a Ucrânia é do agredido e não do agressor. Vai daí, o agredido tem que entregar seu território ao agressor se quiser ter paz. Ou leva mais chumbo.
Nunca vi coisa igual. Então, o sujeito está em casa com a família vendo televisão e comendo pipoca, quando o vizinho invade a sala atirando porque não gostou de vê-lo conversando outro dia com o vizinho do outro lado, e, por consequência, quer tomar a casa dele depois de matar metade da família e roubar as crianças. 

Custa crer que alguém tome a defesa do invasor, mas é o que estão fazendo os chineses e os árabes, que agora contam com o apoio de um outsider que não tem nem nunca teve nada a ver com a história de dois vizinhos vivendo às turras há séculos. 

O fim da guerra fria é uma ficção. E este é um episódio dantesco dessa mesma ficção. Depois da falência do império soviético, a Rússia não quer perder totalmente a hegemonia que teve sobre a Europa Central e Oriental durante séculos de governos czaristas despóticos e expansionistas. Nostálgicos, ex-agentes da ex-KGB hoje no poder e com apoio popular querem reviver um passado que se foi. 

O palácio de Versalhes fica na França, não fica na Rússia. Que pena! Os russos não se conformam. Séculos atrás fizeram uma réplica em São Petersburgo, que está lá até hoje. Mas quiseram uma em Moscou também. O povo de São Petersburgo zombava dos moscovitas, então um lugarejo sujo e insignificante. A riqueza e a cultura estavam em São Petersburgo. Os moscovitas nunca se conformaram.

A história da Rússia é cheia desse não me conformo, um sentimento com o tempo transmutado para rancor e ódio. Na cabeça deles, a vizinha Ucrânia não podia estar de namoricos com a Europa Ocidental ali do lado, muito menos com a OTAN, arquirrival do Pacto de Varsóvia, há muito extinto, mas o que isso importa se podem chorar mais um pouco sobre o leite derramado? 

É por causa desse “não me conformo” secular dos russos que a Ucrânia vê na Europa Ocidental um parceiro comercial seguro e na OTAN uma garantia de território ainda mais segura. Finlândia e Suécia já tomaram a providência. E outros estão na fila. 

Os russos estão se isolando do mundo. Por quê? Porque querem, ué. Estão sentados num paiol nuclear com capacidade de mandar o mundo pelos ares dezenas de vezes. Querer é poder. E poder é querer. Mas é um destino isolacionista que a China não quer para eles, e agora também o Brasil. A China por motivos comerciais e geopolíticos, o Brasil ninguém sabe por quê. 

O que se sabe, e se viu, foi o Itamaraty rebolando para desfazer o mal-estar na Casa Branca e na Europa, produzindo um texto escrito para Luiz Inácio ler em público (ante o presidente visitante da Romênia) desdizendo o que dissera. 

O que foi de muita valia para o Luiz Inácio candidato mantém-se para o Luiz Inácio presidente: em boca fechada não entra mosca. Nem sai bobagem. Se quiser mediar um conflito, esse é um conselho milenar que ainda hoje dá frutos. Mediador não fala nem dá opinião. Mediador não esculhamba o agredido nem faz fosquinha para o agressor. Mediador só pede calma e paz, cessar-fogo, aperto de mão e tapinha nas costas. 

Nelson Merlin é jornalista aposentado.

20/4/2023

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