Eu furei a Folha, meu!

A Pelágio Lobo era pouquíssimo, mas pouquíssimo, pouquíssimo conhecida. Posso garantir que muitas das raríssimas pessoas que já haviam notado a existência dela não tinham a menor idéia de seu nome. É uma ruazinha de nada, uma travessinha de apenas uma quadra, pouco mais de cem metros.

Era, no entanto, simpaticíssima, lindinha. Plana como a Avenida Paulista – uma absoluta raridade em Perdizes, bairro da Zona Oeste de São Paulo surgido sobre vale profundo e morros altos. Fica entre as Ruas Caiubi e a Bartira, essas, sim, de certa importância, bastante movimento, por fazerem a ligação entre as Avenidas Sumaré e Pompéia, entre os bairros mais centrais e a região da Pompéia e da Lapa.

Caiubi é o nome do indígena tupiniquim irmão do cacique Tibiriçá. Bartira, o nome da princesa filha de Tibiriçá, que o português João Ramalho cortejou e com quem se casou. Rua João Ramalho, Rua Caiubi, Rua Bartira, Rua Iperoig, Rua Apiacás, Rua Apinajés, Rua Aimberê, Rua Cayowáa – esse trecho de Perdizes é cheio de ruas com nomes de tribos indígenas ou que fazem referência a indígenas.

Aconteceu de darem àquela travessinha de apenas uma quadra perto da João Ramalho e da Iperoig, entre a Bartira e a Caiubi, o nome de Pelágio Lobo. Não tenho a mínima idéia de quem foi Pelágio Lobo, mas passo muito pela ruazinha que recebeu seu nome: ela está a duas meia-quadras da minha casa.

Dias atrás a até então desconhecida Pelágio Lobo apareceu em duas gigantescas fotos no alto da primeira página da Folha de S. Paulo. Em jargão jornalístico, a gente diria fotos em seis colunas. Em seis colunas, na capa da Folha!

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Se este aqui fosse um texto em estilo jornalístico, a informação de que a Pelágio Lobo saiu na primeira da Folha teria que estar no lead – o primeiro parágrafo, a abertura. Quem, o quê, onde, como, quando, por quê. Mais ou menos assim:

A Rua Pelágio Lobo, pequena e pouco conhecida travessa de apenas uma quadra em Perdizes, Zona Oeste de São Paulo, foi estampada em duas fotos na primeira página da edição de segunda-feira, 7 de agosto, da Folha de S. Paulo, como exemplo da verticalização acelerada por que passa aquele bairro classe média da capital paulista e blá-blá-blá e assim assado e tal e coisa.

Como este aqui não tem nadinda, neca de pitibiribas de texto jornalístico, como é (ou pretende ser) um suelto, agora eu vou contar, sueltamente, que dei de cara com a Pelágio Lobo na capa da Folha longe pra cacete de casa, e portanto da própria Pelágio Lobo.

Foi numa banca da agradabilíssima Praça da Espanha (foto abaixo), no Bigorrilho, entre a Mercês e o Batel, zona central de Curitiba, para onde carreguei a bola de ferro que tenho amarrada à minha canela para visitar a Eneida e o meu irmão Geraldo, que comemorava seu aniversário, o primeiro  no deslumbrante apartamento de cobertura ali pertinho.

Um suelto é um suelto é um suelto, mas não vou exagerar na soltidude e ficar falando muito da viagem. Só é necessário registrar: entrei na banca da Praça da Espanha – a poucos metros do Farol do Saber e bem próximo à Pata, o gostoso bar com cadeiras cobertas com pele de bicho em que a Elza, Mary e eu tomamos uma cervejinha no final da tarde da quinta-feira – com grande curiosidade em saber o que tinha lá dentro, se apenas balas, doces, guloseimas, brinquedos, ou também aquelas “cosas muy antiguas, ya superadas por la técnica de hoy”, como diz o belíssimo tango de Piazzolla-Ferrer, que são as revistas e os jornais.

E não é que a banca se revelou excelente, com exemplares das principais publicações da grande imprensa brasileira, mais diversos jornais paranaenses? Tinha o Estadão, mas um exemplar daquele Estadão havia sido entregue na portaria do nosso prédio na Rua Iperoig, então peguei uma Folha.

E aí, absolutamente surpreso, meio atordoado, quase chocado, vi as fotos da Pelágio Lobo – duas fotos aéreas, muito provavelmente feitas de drones, bem do alto, plongée total, a primeira de 2019, a segunda de agorinha mesmo, 2023.

Na primeira, só casas. Na segunda, prédios em construção. (

(A foto da matéria, na capa do caderno Cotidiano, mostra um prédio em construção na esquina de João Ramalho com a Iperoig, a minha rua.)

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Meu, é uma sensação muito estranha, esquisita, inesperada, ver o lugar em que você mora no alto da primeira página de um dos três maiores jornais do país!

Manhê, ói eu aí!

Tem um pouco disso, sim…

Seu cantinho no mundo, sua aldeia, o pedacinho de chão em que você vive está ali, escrachado, exposto ao mundo, na capa do jornal!

Fui quase correndo até o banco da praça em que estavam a Mary e o Geraldo pra mostrar aquela coisa fantástica para eles. Mostrei para o Geraldo com o dedo a um centímetro da foto dizendo: – “Meu prédio está aqui!!!”

Mas o que me deixava embasbacado, abobado, excitado, não era só o fato de a capa da Folha trazer em destaque o pedacinho de chão em que vivo, fotografado em 2019 e agora.

É que eu havia fotografado todas aquelas casinhas mostradas na primeira das duas fotos da capa da Folha.

Em 2019, fotografei e fiz um álbum no Facebook, com o título de “Vão sumir” .

Abaixo do título, botei o olhinho, a linha fina: “Cerca de 12 casas nas Ruas Pelágio Lobo e Campevas, em Perdizes, estão desaparecendo. É normal, é natural – mas é triste pra cacete.”

Com uma chamada para um texto aqui deste 50 Anos de Textos. Um texto bem livre leve solto – quase um suelto. Começava assim:

“Pertinho da minha casa há uma ruazinha especialmente charmosa, bonita, gracinha. Tem uma única quadra, e é planinha, planinha, o que é uma absoluta raridade neste meu bairro, construído em cima de morros altos – Perdizes tem mais ruas íngremes do que San Francisco, só que sem a vista da baía. Deveria figurar no Guinness.”

O post é de setembro de 2019.

Pois é. Eu furei a Folha.

Exatos quatro anos antes da Folha (que eu sempre adorei chamar de a Bolha, ou a Falha, mas que hoje, tenho que reconhecer, está um jornal bem melhor do que O Estado), eu escrevi sobre o avanço da verticalização do bairro de Perdizes – tomando como exemplo a derrubada das casinhas maravilhosas, deliciosas, da Rua Pelágio Lobo.

Eu furei a Folha, meu!

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Tá certo que não foi lá assim propriamente um grande esforço de reportagem.

Foi só andar uns 200 metros e fazer umas fotinhas.

Como se O Estado noticiasse um incêndio na Avenida Engenheiro Caetano Álvares. Ou a Folha falasse de um acidente de trânsito na Barão de Limeira.

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Voltei de Curitiba, a fria, onde Jânio Quadros comia moscas, na terça, dia seguinte à Folha publicar a matéria – muito, muito, muito boa – sobre o surto de verticalização de Perdizes. (“Curitiba, a fria, onde Jãnio Quadros comia moscas” é o lead, a abertura de um texto histórico publicado na Revista da Civilização Brasileira, no final dos anos 60, exatamente a época em que lá dei de parar por algum tempo, não sei se por sorte ou por castigo – e, bem, creditar esses versos ao seu autor creio que é algo parecido como chover no molhado, certo, Mestre Passos Gil Moreira?)

Pois voltei de Curitiba e fiquei pensando em escrever este suelto – e na quarta, 9/8, 78 anos e quatro dias após a bomba de Hiroshima e o nascimento do meu irmão Geraldo, dei uma voltinha em torno da Pelágio Lobo e por ela mesma.

Alguns anos antes de as casinhas da direita da rua (direita em relação ao meu prédio; o lado mais a Leste, o lado da Campevas) serem todas derrubadas, várias das casinhas da esquerda (o lado mais a Oeste, o lado da Iperoig) já haviam cedido lugar a um grande prédio de uns 25 andares.

Hoje, agosto de 2023, sobrevivem na Pelágio Lobo, heroicamente, seis casas e um predinho de dois andares. Fiz fotos deles todos; aí vão algumas.

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Pelágio Álvares Lobo foi advogado, jornalista, cronista e historiador, conta o Portal da Memória da OAB. Nascido em Campinas, em 1888, formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo. Dirigiu o jornal Cidade de Campinas até 1915; paralelamente, passou a advogar junto ao pai. “Inscrito na Ordem desde sua criação, em 1932, ocupou o cargo de segundo-secretário entre 1935 e 1946. Em seguida, assumiu como primeiro-secretário durante várias gestões, até que, em 1951, já com a saúde fragilizada, elegeu-se vice-presidente do Tribunal de Ética Profissional.”

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Agora, agorinha, neste exato momento, pensando nas casinhas que sobrevivem na Pelágio Lobo, veio à minha cabeça a canção que Peter, Paul and Mary gravaram no álbum que marcou seu reencontro depois de alguns anos separados, em 1978, e teve o título óbvio de Reunion: “Carry on, my sweet survivor, carry on, my lonely friend”,

Acho que vou ali me sentar perto da Marynha na sala e ouvir “My Sweet Survivor”.

9/8/2023

Um comentário para “Eu furei a Folha, meu!”

  1. Muito bom, textual, atual, e se com fotografias então… Como diria em boa filosofia as evidências detrás de nossa opinião

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