Os jornalões e a minha aldeia

Poucos meses atrás, a Folha publicou uma fotaça ocupando todas as seis colunas da primeira página do pedaço do bairro em que moro há uma montanha de anos – 47, para ser preciso. Nesta semana o Estado fez a mesma coisa

É uma sensação muito estranha, muito esquisita, ver dois dos três maiores jornais do país ficarem expondo ao mundo meu pedacinho de chão, minha aldeiazinha, o lugar em que escolhi viver, o lugar do qual só vou sair – como gosto de dizer, apesar de a Mary não gostar disso – para virar cinza, from dust to dust, na Vila Alpina.

A foto que saiu na primeira do Estadão do domingo, 3 de junho, mostra, à esquerda, na parte inferior, a esquina da minha rua, a Iperoig, com a rua em que mora a minha filha, a João Ramalho.  O prédio alto em construção na esquina das duas, em primeiro plano, à direita, ocupa o lugar em que, por décadas e décadas, funcionou a Pizzaria Paulino, uma tradição de Perdizes. O prédio gigantescão à esquerda fica na esquina da Bartira com a pequenina travessa Pelágio Lobo.

A Pelágio Lobo foi exatamente a rua que apareceu em duas fotos no alto da primeira página da Folha em agosto de 2023 – e aquilo me surpreendeu muito, porque, quatro anos antes, eu havia feito um álbum de fotos e um post no Facebook exatamente sobre as casinhas da Pelágio Lobo que estavam vindo abaixo. Aí, claro, escrevi um texto aqui, com o título óbvio de “Eu furei a Folha, meu!

São Paulo tem 48 mil vias públicas, segundo dados da Prefeitura citados pela revista Superinteresante em 2016.

Por que raios os dois jornalões ficam pegando no meu pé, digo, botando as ruas pertinho da minha casa nas suas capas?

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A pergunta é retórica. Boba. Até porque não é mistério algum, muito antes ao contrário.

Os dois jornalões usaram fotos do pedacinho de chão em que vivo, a minha aldeia, a minha Iasnaia Poliana, para mostrar o processo acelerado de verticalização de alguns bairros de São Paulo, como, em especial, Perdizes.

“Nova onda de verticalização muda a cara de Perdizes 50 anos depois.” Este era o título da reportagem da Folha, na capa do caderno Cotidiano, no dia 7 de agosto de 2023. A linha fina embaixo do título – o olhinho, como se diz no jargão jornalístico – explicava: “Futuras estações de metrô e revisão do Plano Diretor remodelaram bairro paulistano como nos anos 70”.

O Estadão do dia 3 de junho agora, 2024, trazia uma grande reportagem sobre o fato de que as vendas de imóveis estão batendo recorde em São Paulo. A chamada da capa dizia: “Proliferação de obras em bairros como Mooca e Perdizes (foto) revela vigor do mercado imobiliário em São Paulo: em março, pela primeira vez, segundo pesquisa da Brain Inteligência Estratégica, total de imóveis vendidos na capital paulista superou 100 mil unidades em 12 meses, 25% a mais que em igual período de 2023”.

Perdizes, portanto, é um exemplo da proliferação de obras na maior cidade do país. Poderiam ter botado lá uma foto da Moóca. Ou de Pinheiros, o bairro gostoso, agradável, em que minha filha viveu desde que nasceu até os 14 anos, quando veio morar comigo e com a Mary aqui na Iperoig. Ou de Moema, aquela coisa horrorosa, onde morei por alguns poucos meses, depois de sair da João Moura com uma malinha de roupa para me aventurar no segundo casamento.

Poderiam ter usado foto de qualquer bairro desta Paulicéia Desvairada – mas fizeram questão de colocar uma do meu pedacinho de chão.

É uma perseguição! É uma coisa pessoal contra mim!

(Hê hê…)

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A gente nem sabe direito como e por que os sueltos começam – imagine se dá para saber para onde eles vão…

Acho que eu queria fazer uma declaração de amor a Perdizes, minha Iasnaia Poliana.

Os caminhos da vida são imprevisíveis. Cheguei a São Paulo aos 18 anos de idade. Dos 18 aos 37, passei por oito diferentes endereços, se é que minhas contas estão certas. O certo é que, depois de alguns meses no apartamento da Regina em Moema – meu oitavo endereço na cidade –, nos mudamos, os três, ela, eu e Inês, para Perdizes, de onde eu não saí nunca mais. Quietei em Perdizes – 11 anos de um lado da Sumaré, 36 do outro. Enquanto isso, Regina passou por Pinheiros, outro pedaço de Pinheiros, Trancoso, Portugal, Pompéia – até o fim louco, absurdo, sem sentido, logo depois da decolagem em Congonhas. Inês, vixe, sei lá eu – não saberia reconstituir as andanças dela. Só sei que elas incluíram Inglaterra, Índia, depois Alemanha, onde se aquietou como eu em Perdizes. Aparentemente, está afastada a idéia de que as andanças incluam uma volta a este país aqui, tão maravilhoso e ao mesmo tempo tão miserável, em termos materiais e nos outros também, meu Deus do céu e também da Terra.

Bem. Se a Inês está lá em Munique, a 10 mil quilômetros daqui, as minhas outras três meninas passam muito bem, graças a Deus, do lado de cá e do lado de lá da Sumaré. E, felizmente, o movimento é intenso de um lado para o outro – elas do lado de lá vêem pra cá com alguma frequência, nós lado de cá vamos pra lá.

Claro que a destruição das casas e a construção de prédios imensos nos terrenos antes ocupados por elas assustam, incomodam – mas, diacho, fazer o quê?

Quem mandou fazer deste lugar tão privilegiado a sua Iasnaia Poliana?

Ahnnn… O eventual leitor que chegou até aqui (se é que algum eventual leitor chegou até aqui…) fica um tanto intrigado, e não cai a ficha sobre esse nome aí? Iasnaia Poliana era a Perdizes daquele sujeito que sentenciou que “se você quer ser universal, fale de sua aldeia”.

8/6/2024

A foto do alto da capa do Estado – e deste post  – é de Felipe Rau.

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