A festa na casa da Kate e da Katleen

Acompanhe essa história improvável, adornada de impropérios e que de fato aconteceu, mas ATENÇÃO, tire as crianças da sala, esse conto é apenas para leitores maiores de 150 anos e acompanhado dos pais.

La vai.

Naquela semana não tinha esperança de que haveria ondas, fiquei pensando o que fazer no final de semana que se aproximava.

*Infelizmente o nome do meu parceiro desse episódio precisou ser substituído, pois hoje ele é casado, tem filhos e nenhuma família merece saber esse relato sobre um ente querido.

Em reunião na CSD (Cúpula dos Surfistas Desenganados), mais conhecida como a escadinha da Rua Costa Aguiar, meu amigo “Joe” esfregando as mãos, falou:

– “Sábado tem festa na casa da Kate e da Katleen!”

– “O único problema é que será perto do Ibirapuera e não tem como chegar lá.”

– “Como não, are you nut? vamos com meu carro.”

– “Pô, você topa?”

– “Eu não as conheço, mas se eu puder ir, claro que vou.”

Pela feliz expressão dele e essas duas com esses nomes, minha criativa cabecinha já começou a imaginar coisas.

Confesso que talvez eu tenha ido um pouco longe demais.

Imaginei aquelas mansões em volta do parque, com piscina, mulheres saindo do bolo, garçonetes de topless com pompom no biquini, cocaína servida em bandejas de prata, mulheres nuas lutando na lama, gente transando sobre a pia da cozinha, suruba com anões e chinesas ruivas e assim por diante…

– “Então combinado, my friend, sábado te pego às 22hs está bom?”

– “Ele falou: não, oito e meia tá bom.”

Já fiquei desconfiado que algo estava saindo dos meus planos.

Sabadão me preparei ouvindo um som e imaginando qual seria o cardápio.

Grigliata Mista Con Tagliolini Neri Alle Erbe, composto por camarões, lulas, polvo e peixe fresco grelhados com tagliolini negro ao azeite e ervas.

E como sobremesa:

Meringa Ai Frutti Di Bosco, composta por sorvete de fiordelatte adornado com suspiros, figos e coberto com calda de frutas vermelhas.

Só pode ser isso!! vamos ver se eu acerto.

Peguei meu Fusca, lavadinho e tranquilamente sem carta, fui buscar o dono dos convites.

Ele todo feliz da vida, que longe do pai, imediatamente acendeu seu cigarrinho Marlboro, que elegantemente guardava na meia e vivia amassado. Um lorde.

Encaixei na gaveta meu toca fitas Sony TC-26 envenenado com um cabeçote de ferrite.

Romântico incorrigível, coloquei a fita do Blue Oyster Cult ao vivo e abri o volume para entrar no clima.

Chegando lá perto e procurando sentir a vibração do local, estacionei meu carrão de linhas arrojadas e comecei a adotar os protocolos de quem tinha um toca fitas de gaveta.

Eu retirei o toca fitas e o coloquei numa caixa de aço presa ao chassi do carro, dentro armei 3 ratoeiras, soltei 2 escorpiões e na tampa deixei com 3 cadeados e uma granada com metade do pino puxado.

Era o basicão para a época, depois a coisa deu uma piorada.

Para quem não conhece a história do Brasil, saiba que a reciclagem foi inventada assim.

A Galeria Pajé vendia os toca fitas contrabandeados do Paraguay. Ooops, contrabandeado está muito agressivo para os dias de mimimi de hoje.
Eles entravam ilegalmente pela fronteira desprovidos de qualquer tributação.

Você comprava e em tempo recorde era roubado, aí quem roubou revendia na Galeria.

Era um ciclo e até davam garantia “dos usados” salvando certas clausulas.

Só não garantimos sobre futuros roubos. Afinal não temos como controlar o ímpeto dos nossos fornecedores.

Isso rolou até essa cadeia ser quebrada por lojas de acessórios que também entraram no ramo e mantinham uma área meio cinzenta de aparelhos usados.

Voltando ao tema. Desço de costas do carro depois da saga do toca fitas e quando me viro, vejo o “Joe” com umas sandálias esquisitas de plástico e uma meia listrada.

Eu quase morri.

– “Kct! você veio com os chinelos da sua irmã?”

– “Eu não tenho irmã, são minhas, é Melissa, você não conhece?”

– “Conheço, mas em mulheres.”

– “Está tá na moda.”

– “Quem te disse isso, o Silvinho cabelereiro?”

– “Jezuis, vamos voltar e você troca isso.”

– “Fica tranquilo…”

– “Tranquilo! Como eu vou entrar nessa festa acompanhado de alguém calçando essa abelha cintilante?”

Logicamente fiquei preocupado com minha reputação.

Eu que usava topete, costeletas, cavanhaque, na balada só tomava caracu com ovo de codorna e se tiver uma lata de espinafre, pode bater junto. Passava o dia nadando e fazendo barras no museu.

Tudo isso sem perder o charme, mantinha a unha do dedinho comprida.

Três meses de cultivo era o ideal. Depois era só desbastar no esmeril.

Permitia eu acessar meu canal auditivo sem danificar o labirinto.

Quando uma garota mexia nos cabelos conversando comigo, eu “charmosamente” rebatia dando uma mexida no ouvido com aquela unha lapidada.

Como puderam perceber, eu era irresistível!

A gente nessa idade acredita que tem que ser bem fortão para se dar bem com a mulherada.

Mais adiante descobri que bastava eu ter força para abrir um vidro de palmito e sacar um cartão de crédito na hora certa, que eu podia facilmente encontrar “um grande amor”.

Marchamos até a festa, procurando musica alta e fogos, poderia ser um elegante pop britânico como Style Councel ou The Blow Monkeys, que já estava de bom tamanho.

Acabamos entrando em uma vila residencial. Avisto um sobrado com meia dúzia de pessoas. Era lá, foi mais um abalo após as Melissas.

As irmãs eram as coisas mais educadas, dóceis e inocentes que eu já havia encontrado. Não fumavam, não bebiam, não jogavam truco, não falavam palavrões, nunca estiveram em paginas duplas de revistas e nem passavam doenças. Ôxi!

Estudavam no Lycée Pasteur, falavam francês fluentemente, eu até arrisquei um dialogo, afinal cursei dois anos de francês na escola, mas minha média anual somando tudo, inclusive minha simpatia, era nota 2.

Fizeram questão de apresentar os pais e os avós. Depois ficamos com os amigos delas da vila, mais uma ou duas amigas da escola escolhidas a dedo. Só gente de pedigree.

A noite foi caindo e os convidados também. Acabamos em cinco pessoas, nós, as duas e mais uma amiguinha delas oriental.

Num certo momento entre uma coxinha e uma empadinha notei que o cardápio não era o imaginado, mas nem tudo está perdido, talvez adivinhe as bebidas.

Enquanto pensava elas falaram: – “Vamos ouvir um som?”

O pai delas apareceu, olhou e disse:

-“Ué vocês não estão bebendo nada, aceitam beber alguma coisa?”

Opa, acho que agora é que vai esquentar e vão servir os drinks para aquecer os ossos.

Aguardei ele soletrar a lista que estava brotando na minha cabeça.

Spirytus Stawski, Everclear, Absinto Hapsburg Gold Label Premium Reserve,

Rum River Antoine Royale Grenadian, Uísque Quadruplicado Bruichladdich X4,

Fernet e Steinhaeger de saideira.

Mas infelizmente ele disse:

–“Não bebemos refrigerante, mas tem suco de uva, de abacaxi e tomate.”

Minha lista bateu na trave.

Enfim, não aconteceu nada do que idealizei e eu nem me atrevi a buscar meu pacote de fitas K7s no carro.

Aguardei para ver o som que viria com um suquinho de tomate temperado nas mãos.

Uma delas chega carregando uma maleta azul clara. Eu pensei: What the hell is this?

Ela abriu e era um som 3 em 1 com Vitrola, FM, tape deck single e a tampa tinha 2 falantes cobertos por um tecido cáqui e dourado.

A outra foi buscar discos, trouxe um do Roberto Carlos com ele num helicóptero e um de novela.

Eu nunca mais apaguei aquilo da minha memória, havia um logotipo escrito

”Studio Stereo Sound Keiko”.

Depois disso, cantamos parabéns, comemos bolo e nos despedimos com a sensação de dever cumprido.

Eu me comportei super bem, procurei falar só o necessário e não contei nada do meu peculiar cotidiano. Acho que eu merecia ganhar estrelinhas pelo feito.

Acredito que aquele deve ter sido um dos aniversários mais especiais daquelas irmãs.

No fim, as sandálias foram perfeitas para o programa, mas deixei meu aviso:

– “comigo você não vai mais em nenhum lugar calçando esse troço.”

Creio que nem em 10 milhões de anos vai aparecer outro programa como foi esse.

Eu concluí que deveria rever urgente meus conceitos e expectativas.

Decidi limpar e oxigenar minha mente, de preferência, com ácido muriático.

Foi um aprendizado, hoje eu inspiro luz e expiro amor.

Acredito que a perfeição do mundo está em algum lugar. Mas que provavelmente eu ainda não passei.

Ah… quanto a unha, nunca usei, foi apenas brincadeira. E ao toca fitas? dessa vez ele não foi levado.

Amém.

Julho de 2023

9 Comentários para “A festa na casa da Kate e da Katleen”

  1. Mais um texto primoroso escrito pelo amigo Fábio. Retratou uma época que andávamos com o toca fitas de gaveta em uma mão e a namorada na outra, e viva os embalos de um sábado à noite!
    Agradeço por mais este texto e parabéns por sua memória de uma época que não volta mais! Abração

  2. Sensacional, adorei as Melissas, naquela época existia muitas festas em casa dos amigos, cumprimentar os familiares do aniversariante era o máximo.

  3. Sensacional,
    Uma bela volta ao tempo, carro para menores era o máximo .
    As festas, que na verdade sempre imaginávamos a mais hahahaha.
    O toca fitas preparado para tocar fitas de cromo e de ferro tbm era coisa de bacana.
    Coisas simples que faziam toda a diferença.
    Parabéns Fabio e continue nos presenteando com seus textos .
    Abraços

  4. Senhorrrrr, queria ver seu amigo de Melissa cintilante! Esse tipo de toca fitas era famoso! Ah, eu queria ser uma mosquinha pra te ver ouvindo Roberto Carlos… haahahah… Parabéns, amigo! Sempre uma viagem ler seus textos! Amoooo! Abs

  5. Mais uma pérola do querido primo Fábio,a relação das bebidas impecável …que fim levaram as duas irmãs?parabens bjo

  6. Fabio, que delícia de crônica . Estava sentindo falta porque precisavam ser mais frequentes, ok? Parabéns!

  7. Grande Fabio, parabéns por nos relembrar a saga de irmos buscar os toca-fitas TKRs, Sony, etc. da Galeria Pajé, que, pasmém vocês, até hoje existe, reincidente na mesa contravenção!
    Essas festinhas na casa das “minas”, realmente corriam nossa imaginação durante a semana, para depois se revelarem um desastre (mas pelo menos podia-se tomar uma Grapette “na faixa”)!

  8. Excelente texto. Pensei que era a estória do acidente em frente ao Lycee Pasteur.
    Diversão garantida sempre.
    Abraço

  9. Programinha de Índio. São as furadas que não somos imunes,. Só faltou o disco de padre Marcelo Rossi. E jogar tômbola, (bingo). Valeu , todo mundo já teve um aniversário da Kate e Katelen. , atire a primeira pedra se não teve. Parabéns Fabio

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