A eleição espanhola encerra várias dúvidas e uma certeza. A começar pela leitura dos seus resultados. O conservador Partido Popular de Alberto Feijó pode se julgar vitorioso por ter sido o mais votado, embora abaixo das projeções das pesquisas. Mas o atual primeiro-ministro Pedro Sánchez\, de centro-esquerda e dado como carta fora do baralho, ganhou sobrevida.
Abertas as urnas, o quadro é de incerteza. Não está descartada a convocação de nova eleição ou até mesmo a possibilidade de Sánchez liderar um governo de coalizão. O PP está na situação de ganhar e não levar, pois dificilmente conseguirá fazer as alianças necessárias para formar um novo governo.
A frase de Magalhães Pinto de que política é como nuvem, muda a toda hora, cai como uma luva para a Espanha. Todas as projeções eram de que as urnas levariam a extrema-direita de volta ao poder, posição da qual estava alijada desde o fim do franquismo, há 48 anos. A onda reacionária e saudosista que varre a Europa tinha chegado ao país de Cervantes nas eleições regionais realizadas há dois meses. Nelas, os grandes vitoriosos foram os conservadores em aliança com o ultra direitista Vox. Pedro Sánchez saiu das disputas locais combalido, quase na situação de um pato manco. Sua era parecia ter chegado ao fim.
Sua estratégia de antecipar a eleição nacional, prevista para dezembro, provou ser acertada. Não só porque ganhou sobrevida. Nas regiões em que chegou ao poder, a extrema-direita mostrou suas garras, promovendo retrocessos civilizatórios e disseminando intolerância. Assim, a eleição nacional do domingo foi marcada pelo voto anti extrema-direita. Vem daí a única certeza revelada pelas urnas: o grande derrotado foi o Vox, de matriz franquista, que perdeu dezenove cadeiras no Parlamento. Um tombo e tanto em relação às eleições de 2019.
O desempenho do Partido Popular, aquém do projetado pelas pesquisas, pode ser atribuído ao seu acasalamento com a extrema-direita, da qual não se diferenciou. Daí decorrem também suas dificuldades de atrair novas alianças para formar maioria e se erigir no governo.
Enquanto o Vox impunha como condição para participar do governo o aprofundamento da censura, restrições à comunidade LGBT e perseguição a imigrantes, o Partido Popular guardou silêncio, como se concordasse, tacitamente, com tais retrocessos. Foi punido pelas urnas. Ficou longe das 182 cadeiras que imaginava ganhar. Se fizer o caminho de volta para a centro-direita, apartando-se do extremismo do Vox, a disputa política na Espanha voltará a ser sadia. A conferir.
Nas ruas espanholas ecoa agora o brado “No pasarán”, numa alusão ao franquismo que, como vozes fúnebres do além, tentam fazer a Espanha mergulhar numa nova noite de escuridão. Em 1939 eles passaram e a Espanha só voltou a ver a luz do dia em 1975, quando fez sua transição democrática graças ao Pacto de Moncloa, responsável pela pacificação do país.
No curto prazo, a Europa respira aliviada com a derrota da extrema-direita espanhola. O Vox, como seus similares em outros países europeus, é uma força eurocética, negacionista do aquecimento global, anti-imigrantes e intolerante nos valores e costumes.
A Espanha dos tempos do franquismo era um país atrasado. Tornou-se a quarta economia da União Européia pelo caminho da integração, da tolerância, da democracia ininterrupta, na qual centro-direita e centro-esquerda se alternaram no poder, mantendo os pilares de uma sociedade moderna e aberta.
É cedo, muito cedo, para vaticinar o desaparecimento da extrema-direita como força política e que no futuro a disputa política se dará de forma saudável entre os dois partidos do espectro democrático. O Vox não é um fenômeno isolado.
A ressureição do franquismo tem similaridades com a ascensão do neonazista Alternativa para a Alemanha, hoje a terceira força do país. Na Itália o Fratelli d’Itália, da primeira-ministra Giorgia Meloni é um partido de extrema-direita, saudosista de Mussolini e, desde o ano passado, governa o país. Em Israel a extrema-direita do ministro Netanyahu promove uma reforma que ameaça os pilares da única democracia estável do Oriente Médio.
A onda da extrema-direita está longe de se esgotar. Seus ventos varrem também nosso continente. Cinquenta anos após a morte de Allende e do golpe de Augusto Pinochet, as viúvas do pinochetismo saíram do armário, reverenciando o ditador que mergulhou o país num mar de sangue. A extrema-direita faz uma releitura do trágico 11 de setembro de 1973, se apropriando da agenda do golpe e conseguindo impor a idéia de que o problema foi Salvador Allende e não Pinochet. Cerca de 36% dos chilenos acham que o ditador salvou o país do marxismo e apenas 42% que o general-ditador destruiu a democracia.
Tampouco no Brasil há sinais de que a extrema-direita se tornou irrelevante. Há menos de um ano demonstrou força nas eleições presidenciais. Não gratuitamente, Lula, neste domingo, afirmou: “Derrotamos Bolsonaro, mas não o bolsonarismo”.
Sim, o bolsonarismo, como expressão política de valores totalitários e intolerantes, não está abatido. Tem raízes na sociedade e corresponde a um fenômeno mais amplo, similar ao de outros países.
Não nos livraremos dos radicais cultivando a polarização ou praticando a intolerância de forma reversa. Faz-se necessário pacificar o país, fortalecer os vínculos que nos conformam como uma nação democrática, com a mesma comunhão de destino.
Só assim eles não passarão.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 26/7/2023.