Ou Lula ou o horror (5)

Assim como tantas e tantas e tantas personalidades importantes dos mais diversos partidos políticos, assim como economistas, cientistas, artistas, juristas já haviam feito, neste sábado, 15/10, foi a vez de João Amoêdo, o fundador do Partido Novo, declarar o voto em Luiz Inácio Lula da Silva.

É preciso admitir que há elementos, nessa adesão, que podem causar estranheza. O Novo é um partido abertamente liberal em termos econômicos. É provavelmente o partido mais “de direita” quanto à economia. É absolutamente contra o Estado forte, gigante, interventor – em princípio, portanto, o exato oposto do que sempre pregou o PT, do que o PT representa.

Tanto que foi uma gritaria brava e imediata entre o povo do Novo. A direção publicou nota chamando a posição de Amoêdo de “lamentável e incoerente”, e lembrando que ele não faz mais parte do corpo diretivo do Partido desde março de 2020. O candidato do partido à Presidência, Felipe D’Ávila, do alto dos seus 0,5% dos votos, chamou de “traição aos valores liberais” e tuitou: “Amoêdo: pega o boné e vai embora”.

A questão é que o Partido Novo traiu os valores democráticos, ao se render ao bolsonarismo – exatamente o motivo pelo qual João Amoêdo se afastou da direção do partido, em março de 2020.

Ao declarar seu voto em Lula no segundo turno, Amoêdo pode ter se afastado de pontos programáticos do partido que fundou – mas se manteve fiel à democracia.

Seus argumentos são claros como água da fonte:

“Nestes quatro anos, regredimos institucionalmente e como sociedade. A paixão e o ódio dominaram o debate político, levando a polarização a níveis inaceitáveis. A independência dos Poderes foi comprometida. O Legislativo foi cooptado pelo orçamento secreto e as emendas parlamentares. O Supremo Tribunal Federal se tornou alvo de ataques frequentes por parte do presidente e seus aliados.

“O combate à corrupção foi extinto com a narrativa mentirosa de que ela acabou e com o desmonte da Lava-Jato. O descaso com a educação, o meio ambiente, a ciência, a cultura, a responsabilidade fiscal e, acima de tudo, o desprezo pela vida dos brasileiros completam o legado desastroso.

“Bolsonaro confirmou ser não apenas um péssimo gestor, como já prevíamos, mas também uma pessoa sem compaixão com o próximo. Ele é incapaz de dialogar, de assumir suas responsabilidades e não tem compromisso com a verdade. É um governante autocrático que se coloca acima das instituições.”

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Defender Jair Bolsonaro não é defender os valores liberais – é defender a ditadura, o gosto pela tortura, pela teocracia, pela censura à imprensa livre, pelas trevas. O gosto por tudo, absolutamente tudo o que deve ser combatido pelos democratas.

Defender Jair Bolsonaro é ir contra todos os bons valores morais.

É como diz o título de artigo de Rolf Kuntz, publicado no domingo, 9/10, no Estado de S. Paulo: “Primeiro, a democracia”.

Um dos melhores jornalistas de economia do país, com um longo, precioso, admirável currículo que torna absoluta heresia qualquer tentativa de chamá-lo de algo próximo a esquerdista, petista, marxista, anti-liberal, Rolf Kuntz bota todos os pingos nos is em seu brilhante artigo.

O normal seria colocar agora um trecho do artigo e transcrever a íntegra mais abaixo, mas, neste caso específico, mudei de idéia. Vai a íntegra já. Em seguida transcrevo a entrevista em que João Amoêdo explica por que vai votar em Lula.

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Primeiro, a democracia

Por Rolf Kuntz, O Estado de S.Paulo, 9/10/2022

Democracia é o principal valor político em jogo nesta eleição. Valores fundamentais, como a vida e as condições de sobrevivência, também estão em jogo, mas dependem, há milênios, das formas de cooperação social e da organização do poder. Programas de governo foram cobrados de alguns candidatos. Compromissos com o teto de gastos ou com alguma âncora fiscal foram apontados como essenciais. Todos esses pontos são relevantes, mas os compromissos e limites mais preciosos, no Brasil de hoje, são de outra natureza. Ao anunciar apoio a um dos candidatos, grandes economistas destacaram a defesa da democracia, dando muito menos atenção a detalhes econômicos. Nem precisaram justificar essa prioridade. O ritual democrático funcionou até agora, mesmo com o presidente insistindo no uso de meios públicos para sua campanha. Mas ninguém deveria esquecer os perigos, quando autoridades se mostram saudosas do período militar, elogiam torturadores e já convocaram multidões para pressionar o Legislativo e o Judiciário.

O presidente da República pôs em dúvida, em vários momentos, o sistema eleitoral e as instituições. Militares assumiram, até com a tolerância do Judiciário, o papel de fiscais das urnas eletrônicas. Meteram-se em política interna, destoando de seus colegas do mundo avançado, onde generais, comandando grandes forças, cuidam essencialmente de segurança externa. Só se voltam para questões internas quando convocados, no limite da Constituição, por um Poder constitucional. Muito mais do que uma âncora fiscal, é preciso garantir, agora, uma âncora institucional.

Para isso será preciso revalorizar alguns padrões fundamentais para uma democracia moderna. Um deles é a laicidade do Estado e, mais que isso, o caráter laico da rotina política. Religião e distinções de caráter religioso passaram, neste período presidencial, a integrar a fala política e os debates eleitorais. O presidente da República indicou para o Supremo Tribunal Federal (STF) um cidadão “terrivelmente evangélico”. Adicionou e até sobrepôs a religiosidade aos predicados técnicos e morais – “notável saber jurídico e reputação ilibada” – normalmente exigidos de um membro da Corte Suprema.

Nunca, antes, alguém havia sido indicado para um alto posto do Judiciário por ser filiado a um grupo religioso. De fato, ninguém havia sido avaliado com base em sua crença numa divindade, em sua preferência por algum culto ou mesmo em seu possível ateísmo ou agnosticismo. Dificilmente se admitiria, antes do mandato bolsonariano, avaliar em público a filiação religiosa de algum membro de uma corte superior.

Explorada na disputa eleitoral, a religião foi convertida em bandeira de campanha por apoiadores do presidente, enquanto púlpitos e palcos de templos evangélicos eram usados como palanques. Nada semelhante se observa no Reino Unido, onde há uma religião oficial chefiada pelo rei ou pela rainha. Mas o Reino Unido é uma democracia sólida, construída com base em valores liberais consolidados durante séculos.

A reafirmação dos padrões democráticos, no Brasil, deverá envolver a reconstrução, nos centros de poder, de uma rotina de respeito a normas básicas. Se uma âncora fiscal for instituída, as autoridades deverão respeitá-la nos programas, no dia a dia da administração e nas ações legislativas. Na área financeira, como em todas as outras, limites legais deverão ser tão importantes quanto regras de trânsito. Não há ordem de fato quando as normas são contornadas com truques ou com emendas constitucionais. Qual a serventia de um teto de gastos ou de um precatório, quando o governo pode gastar além do limite ou impor calote a um credor reconhecido pela Justiça?

Todas essas violações de limites ocorreram nos últimos anos. A grande regra foi o desprezo a regras. Propostas de emendas à Constituição foram usadas de forma rotineira, como se esse fosse o meio normal de resolver problemas políticos e administrativos. O texto constitucional, já muito emendado em gestões anteriores, foi tratado como entrave à boa ação governamental.

Acusado de ativismo, o Supremo Tribunal Federal foi exortado, mais de uma vez, a se concentrar nas funções de interpretar e aplicar a Constituição. Mas qual Constituição: a atual ou aquela em vigor depois das próximas emendas? A pergunta parece razoável, num país onde o texto constitucional é alterável, a qualquer momento, segundo a conveniência de quem maneja a caneta do poder.

Manter uma âncora fiscal pode ser muito importante, especialmente quando falta consolidar a confiança do mercado. Mas é preciso cuidar também da eficiência da gestão pública, da qualidade das políticas e da articulação com o Congresso – uma articulação, convém acentuar, sem orçamentos secretos. Não basta optar pela democracia: é necessário continuar a construí-la por meio da modernização do País, do crescimento e da criação de oportunidades para todos. Esses objetivos foram desprezados a partir de 2019. Falou-se muito em Deus, mas quase nada se fez por seus filhos mais necessitados.

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Uau!

Bem. Depois dessa maravilha, volto a João Amôedo, o ex-banqueiro que fundou o Partido Novo e agora, por ter anunciado que votará em Lula, foi obrigado a ouvir de Felipe D’Ávila a frase “Pega o boné e vai embora”.

O anúncio de Amoêdo foi feito em uma entrevista que deu por escrito a Joana Cunha, publicada no Painel S.A. da Folha de S. Paulo. Vale transcrever a entrevista. É importante – e, diacho, esta série é mesmo de textos meus e de compilações.

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Amoêdo declara voto em Lula no 2º turno

Por Joana Cunha, Folha de S. Paulo, 15/10/2022

O sr. já sinalizou que não votaria em Lula nem em Bolsonaro. Há chances de mudar de ideia?

Em outubro de 2018, escrevi um artigo na Folha em que eu justificava e declarava meu posicionamento no 2º turno. Foi um voto contra o projeto petista. Era inadmissível que um partido envolvido em tantos esquemas de corrupção e que conduziu o país à pior recessão pudesse retornar ao poder. Votar em Bolsonaro com todas as suas limitações não era uma opção, mas a falta delas.

Nos últimos 12 anos, dediquei grande parte do meu tempo buscando dar uma contribuição ao país. Fundei um partido, concorri à Presidência em 2018, me posicionei no 2º turno, procurei estar presente no debate público e defendi o impeachment de Bolsonaro desde abril de 2020.

Renunciei à presidência do Novo precocemente para reforçá-lo como instituição. E mesmo distante da gestão, como filiado, trabalhei pela defesa da imagem e da concepção original do partido. Essas ações, e a consequente exposição, resultaram na divulgação de inúmeras narrativas falsas e constantes ataques pessoais, que enfrento ou ignoro com serenidade e segurança por acreditar que estou fazendo o certo.

E agora vai anular?

O caminho mais fácil seria não declarar voto, mas seria incoerente com a decisão que tomei em 2010 de participar da vida pública. Vou compartilhar meu posicionamento no 2º turno deste ano e a lógica da decisão.

Nestes quatro anos, regredimos institucionalmente e como sociedade. A paixão e o ódio dominaram o debate político, levando a polarização a níveis inaceitáveis. A independência dos Poderes foi comprometida. O Legislativo foi cooptado pelo orçamento secreto e as emendas parlamentares. O Supremo Tribunal Federal se tornou alvo de ataques frequentes por parte do presidente e seus aliados.

O combate à corrupção foi extinto com a narrativa mentirosa de que ela acabou e com o desmonte da Lava-Jato. O descaso com a educação, o meio ambiente, a ciência, a cultura, a responsabilidade fiscal e, acima de tudo, o desprezo pela vida dos brasileiros completam o legado desastroso.

Bolsonaro confirmou ser não apenas um péssimo gestor, como já prevíamos, mas também uma pessoa sem compaixão com o próximo. Ele é incapaz de dialogar, de assumir suas responsabilidades e não tem compromisso com a verdade. É um governante autocrático que se coloca acima das instituições.

Sua visão sobre Lula mudou?

Em relação ao PT e a Lula continuo com as mesmas críticas e enormes restrições. Como esquecer o mensalão, o petrolão, a recessão de 2015 e 2016, as pedaladas fiscais, o apoio a ditaduras? Discordo integralmente das ideias e dos métodos. A incapacidade de assumir erros é garantia de erros futuros. Nunca tive dúvida. Nem Lula nem Bolsonaro merecem meu voto. Serei oposição a qualquer um dos dois.

Porém, e infelizmente, a escolha que agora se apresenta na urna não é sobre os rumos que desejo para o Brasil, mas só a possibilidade de limitar danos adicionais ao nosso direito como cidadão. E é só isso que espero manter com essa eleição: o direito de ser oposição. Com eleições regulares, reeleição limitada, instituições minimamente independentes, imprensa livre e segurança para expor minhas ideias. Nada disso está garantido com as duas opções. Mas os fatos, a história recente e o resultado do 1º turno, que fortaleceram a base de apoio de Bolsonaro, me levam à conclusão de que o atual presidente apresenta um risco substancialmente maior.

Será seu 1º voto no PT?

No dia 30, farei algo que nunca imaginei. Contra a reeleição de Jair Bolsonaro, pela primeira vez na vida, digitarei o 13. Apertar o botão “Confirma” será uma tarefa dificílima. Mas vou me lembrar do presidente que debochava das vítimas na pandemia, enquanto milhares de famílias choravam a perda de seus entes queridos.”

O sr. espera receber críticas no Novo?

É possível, mas não seria coerente. O estatuto do Novo não prevê qualquer restrição ao filiado em situações como essa, e um dos princípios do partido é a liberdade de expressão. Além disso, não tive conhecimento de qualquer crítica do partido aos mandatários que declararam voto e apoio a Bolsonaro logo após o término das eleições, mesmo havendo uma diretriz partidária que orientava a instituição e as candidaturas para esse ano como oposição ao governo federal.

No Twitter, o sr. criticou a nova fala de Bolsonaro que cogitou ampliar o STF. Em que medida isso o preocupa?

Preocupa muito. A ideia de aumentar o número de ministros do STF para 16, com os dois que deixarão a corte nos próximos anos, permitiria que Bolsonaro, se reeleito, nomeasse sete ministros, que somados aos dois já indicados por ele lhe daria a maioria na corte. Esse tipo de manobra já foi realizada por líderes autocráticos como Hugo Chávez, na Venezuela, e Viktor Orbán, na Hungria.

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Passei a ter grande admiração por esse senhor João Amoêdo depois dessa entrevista.

Veio muito bem, na hora certa, um tuíte do jornalista Thomas Traumann, de O Globo. Ele lembrou que Felipe D’Ávila, o candidato do Novo à presidência agora em 2022, teve 559 mil votos. E que, em 2018, João Amoêdo teve 2,67 milhões.

Quem é mesmo que deveria pegar o boné e ir embora? O que apóia o monstro ou o que fica com a democracia?

16/10/2022

Este post pertence à série de textos e compilações “Ou Lula ou o horror”.

A série não tem periodicidade fixa.

O verdadeiro embate é da democracia contra o autoritarismo, da ciência contra o negacionismo. (4)

O Brasil conseguiu formar uma frente ampla pela democracia. (3)

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