O Brasil devastado (1)

Vai ser muito difícil o Brasil ter um quadro completo da destruição deixada, em todas as áreas, pelos quatro anos de desgoverno de Jair Bolsonaro. É muita destruição – ampla, geral, irrestrita –, desde os efeitos mais visíveis no desmonte das estruturas dos Ministérios, em especial os da Educação, Saúde e Meio Ambiente, até a erosão de valores morais e do respeito à ordem constitucional.

Mas já está sendo feito um amplo levantamento dos profundos estragos deixados por um governo que primou não apenas pela incompetência administrativa – mas pela metódica decisão política de desconstrução, desmonte, destruição.

– “Houve uma decisão política de destruir”, sintetizou a respeitada Izabella Teixeira, doutora em planejamento energético, uma das vozes mais abalizadas sobre ambiente e crise climática, que participa do grupo de transição na área ambiental e se confessou chocada com o que já foi possível levantar: – “Não é exagero, não é drama. Levei muitos sustos vendo os documentos”, disse ela, citada no artigo der Dorrit Harazim no Globo de domingo, 4/12, sobre a devastação do Brasil ao longo dos últimos quatro anos.

O quadro completo só a História terá – mas, a partir de estudos do próprio Tribunal de Contas da União e dos levantamentos da equipe de transição, o pais já vai tomando conhecimento da extensão dos danos – como mostram reportagens, artigos e editoriais que vêm sendo publicados pelos grandes órgãos da imprensa independente.

“Além da democracia, sob ameaça constante, as políticas públicas estão feridas de morte. Cada relato das equipes de transição evoca perplexidade, indignação, tristeza”, escreveu Flávia Oliveira no Globo na sexta-feira, 2/12.

O Estado de S. Paulo cravou em editorial no dia 26/11:

“Ao longo dos últimos quatro anos, órgãos cruciais da administração pública federal foram transformados em comitês de campanha por Bolsonaro, deixando de ser formuladores e gestores de políticas públicas orientadas pelo bem comum para servir como estruturas de representação dos interesses particulares do presidente da República.”

Eterno compilador, me sinto na obrigação de juntar aqui alguns destes textos de importância histórica. Aí vão alguns deles. (Sérgio Vaz)

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Democracia em reconstrução

Por Flávia Oliveira, O Globo, 2/12/2022

A um mês do fim, o Brasil toma ciência do tamanho do desmonte por quatro anos de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Além da democracia, sob ameaça constante, as políticas públicas estão feridas de morte. Cada relato das equipes de transição evoca perplexidade, indignação, tristeza. Na Saúde, o Programa Nacional de Imunizações, uma joia brasileira, está em frangalhos. O país não conseguiu cumprir metas de vacinação dos bebês de até 1 aninho. Mais de 1 milhão de procedimentos hospitalares não foram realizados no SUS no triênio 2020-2022, segundo nota técnica dos pesquisadores do Monitora Covid-19. O grupo de Saúde estima em 1 bilhão o déficit de atendimentos, levando em conta outras atribuições, de consultas à distribuição de medicamentos.

Na Educação, o plano de aniquilar a autonomia financeira das universidades federais se estendeu até o apagar das luzes, com o vaivém recente de bloqueio no Orçamento. O número de jovens inscritos para o Enem despencou, há atraso de aprendizagem entre os miúdos. No Meio Ambiente, o capitão foi o único presidente a registrar três anos seguidos de aumento no desmatamento da Amazônia. Na temporada 2022, a queda de 11% sobre o período anterior esconde que 11.568 quilômetros quadrados de floresta tombaram, 53% acima do último ano de Michel Temer.

Na segurança pública, as medidas de facilitação do acesso a armas de fogo e o afrouxamento do controle puseram em mãos civis um arsenal de 1,2 milhão de peças em três anos, segundo levantamento dos institutos Igarapé e Sou da Paz. A transição recomenda ao futuro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, um revogaço de atos executivos, incluindo restrição de acesso, redução da validade dos registros, ações de entrega voluntária e recompra de armas de grosso calibre. No fim dos anos 1990, o movimento Viva Rio organizou a primeira campanha de recolhimento maciço de armas leves, com participação de igrejas evangélicas. Em 2001, 100 mil unidades foram destruídas no Aterro do Flamengo. Desta vez, será mais complexo, alerta Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC):

— Naquela época, havia muitas armas antigas guardadas por famílias. A situação hoje é mais complexa. Dependendo do valor oferecido, pode não haver incentivo a entregar. Por outro lado, há risco de o dinheiro ser usado para compra de arma pequena. No cenário atual, é urgente o controle.

Como prometido, o atual presidente não demarcou um centímetro de territórios indígenas. Esfacelada, a Fundação Cultural Palmares tampouco avançou em reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos. A interseccionalidade de gênero e raça nunca foi levada em conta nas políticas oficiais. A intolerância religiosa grassou impune. A Cultura foi varrida.

A política social de transferência perdeu foco e eficácia. Centenas de bilhões foram gastos e 33 milhões de brasileiros ainda estão passando fome. A centralidade na família foi diluída, as condicionalidades em saúde (vacinação) e educação (frequência escolar) desapareceram. A senadora Simone Tebet, do grupo de desenvolvimento social na transição, chamou de “desmonte” a situação no Ministério da Cidadania. A palavra é recorrente nas avaliações.

O diálogo entre União, estados e municípios deu lugar a ataques; as artérias de comunicação da sociedade civil com o governo foram rompidas. Quatro em dez trabalhadores brasileiros estão na informalidade — portanto mal remunerados e sem proteção legal. Dois terços das empregadas domésticas ainda não têm carteira assinada. Mulheres enfrentam cerceamento a direitos sexuais e reprodutivos, violência doméstica, feminicídio, mercado de trabalho precário. A população carcerária caminha para 1 milhão de detentos.

O terceiro mandato de Lula tem a missão hercúlea de refundar a democracia, produzir equilíbrio macroeconômico, reconstruir políticas sociais, preservar o meio ambiente, restituir direitos, melhorar a qualidade de vida da população. O fim do superministério da Economia de Paulo Guedes devolverá à Esplanada três pastas: Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio. É bem-vinda a volta do contraditório ao debate governamental. Tensão produz inovação e melhores resultados, tal como a diversidade. Na economia moderna, serviços equivalem a dois terços do PIB e geram a maioria dos empregos; certamente, estarão representados.

O novo governo terá de se organizar sob o princípio da transversalidade. Ministérios do meio ambiente, dos povos originários, das mulheres, da igualdade racial não podem ser pastas decorativas, subordinadas a canetadas aleatórias do que alguns entendem como progresso e desenvolvimento. Essa era acabou. Se cabe uma recomendação à chapa vencedora, nenhuma decisão deve ser tomada sem resposta objetiva à pergunta: a medida beneficia ou agride mulheres, negros, povos indígenas, crianças e jovens, recursos naturais? Pôr os pobres no Orçamento não é somente pagar R$ 600 de Bolsa Família.

A destruição é imensa. Há muito a recuperar, mas cada grupo social no Brasil estará atento às políticas. E aos políticos que as implementarão. Há clamor por bem viver e também por representatividade. Não foi por acaso que, ainda ontem, oito dezenas de organizações da sociedade civil, da Ação Educativa à Coalização Negra por Direitos, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) à Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), da Terra de Direitos à Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras (Renafro), encaminharam a Lula, Geraldo Alckmin, vice-presidente eleito, e às equipes de transição a carta “A democracia que queremos”. Reivindicam no texto o fim da necropolítica do governo Bolsonaro (referência ao conceito filosófico do camaronês Achille Mbembe sobre atos e omissões que matam ou deixam morrer), responsabilização dos culpados, recomposição das políticas públicas com participação social. É o apelo pela “democracia inclusiva e generosa” que o Brasil jamais teve.

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Radiografia de um governo inepto

Editorial, Estadão, 26/11/2022

Desde o início da pandemia de covid-19, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem elaborado relatórios periódicos por meio dos quais escrutina as ações do governo federal, notadamente do Ministério da Saúde, para enfrentamento da crise sanitária. A mais recente versão do documento, à qual o Estadão teve acesso, provoca calafrios por dar a dimensão dos danos provocados por Jair Bolsonaro na área da saúde e, consequentemente, por evidenciar o risco que o País correu de passar mais quatro anos sendo governado por um dos presidentes mais incapazes em toda a história republicana.

Tamanho foi o descaso de Bolsonaro com a saúde e o bem-estar da população que o TCU informou nessa nova versão do seu relatório de acompanhamento – recentemente encaminhado à equipe do presidente eleito Lula da Silva – que nem sequer teve condições de avaliar o cumprimento de metas de vacinação contra várias doenças, algo elementar para um Ministério da Saúde minimamente bem administrado. Os técnicos do TCU foram elegantes ao falar em “precariedade de dados” sobre vacinação disponíveis na pasta. Na realidade, a gestão de um dos Ministérios mais importantes da Esplanada é uma verdadeira bagunça, em que pesem os valorosos esforços de muitos de seus servidores.

Ao longo dos últimos quatro anos, órgãos cruciais da administração pública federal foram transformados em comitês de campanha por Bolsonaro, deixando de ser formuladores e gestores de políticas públicas orientadas pelo bem comum para servir como estruturas de representação dos interesses particulares do presidente da República. Essa captura foi particularmente nociva no Ministério da Saúde. A resposta do governo federal à covid-19 foi o descalabro a que o País assistiu e, em alguma medida, custou a reeleição de Bolsonaro. Mas a razia bolsonarista na área da saúde vai muito além da pandemia. Ela abarca a crise de desconfiança nas vacinas em geral e o risco de colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS), como aponta o TCU.

Ao longo de décadas, o Brasil construiu uma reputação de boas práticas em políticas de imunização coletiva, o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a classificar o País como referência internacional em campanhas de vacinação em massa. Todo esse patrimônio imaterial – também chamado de soft power – tem sido dilapidado por Bolsonaro, ele mesmo uma das vozes mais estridentes contra as vacinas. A bem da verdade, o atual presidente não deu causa ao movimento antivacina, mas não há dúvida de que suas falas e ações irresponsáveis agravaram muitíssimo o problema. A taxa de vacinação infantil contra múltiplas doenças no Brasil, que há alguns anos superava o patamar de 90%, hoje é de apenas 71,49%, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Doenças que haviam sido erradicadas, como sarampo e poliomielite, voltaram a afligir famílias brasileiras que, diante das suspeitas infundadas disseminadas por ninguém menos que o presidente da República, passaram a ter receio de vacinar suas crianças.

O relatório do TCU ainda oferece um diagnóstico geral do SUS para o futuro governo. Os técnicos da Corte de Contas alertam para os “indícios de insustentabilidade” do sistema e propõem um “profundo debate” a respeito do seu modelo de financiamento. Esse debate está muito atrasado. As deficiências do SUS são sobejamente conhecidas e requerem ação imediata não só do próximo governo federal, como também do Congresso. Mudanças no perfil demográfico da população, aumento da complexidade dos atendimentos, defasagem da tabela do SUS, crise econômica e inflação alta há muito vêm impondo uma completa revisão do atual modelo de gestão do SUS, nas três esferas administrativas.

Todo governo novo, no entanto, traz consigo uma lufada de novas possibilidades. Se, por um lado, o relatório do TCU se descortina como uma radiografia da inépcia do governo que se encerra, por outro, revela uma oportunidade de correção de rumos para o próximo governo. Que Lula e seus auxiliares tenham a decência de lidar com a saúde pública, da qual dependem 7 em cada 10 brasileiros, com mais responsabilidade e espírito público.

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Feliz Natal

Por Dorrit Harazim, O Globo, 4/12/2022

Era uma vez um país chamado Brasil, presidido por um capitão chamado Jair Bolsonaro, que deveria comandar a nau pátria até o último dia de mandato, 31 de dezembro de 2022. Só que o capitão sumiu desde que Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito seu sucessor. E o conjunto da obra bolsonarista, entregue a conta-gotas e de má vontade à equipe de transição de Lula, mais se assemelha a um país-fantasia. Fantasia por falido, e falido no sentido múltiplo do termo — financeiro, social, gerencial, moral. A julgar pelos primeiros relatórios de alguns dos 30 grupos temáticos da transição, a desgraceira é monumental. Por enquanto, o impacto nacional decorrente dessa ruína ainda é pouco percebido — nada consegue competir com o feitiço da sucessão de zebras, surpresas e reviravoltas de uma Copa do Mundo. E a do Catar só termina no domingo 18 de dezembro, já às vésperas do Natal. Portanto, na prática, até a posse de Lula no Palácio da Alvorada, o país continuará navegando à deriva. Algum dia, talvez, será possível computar quanto do futuro do Brasil foi perversamente esbanjado ou destruído na era Bolsonaro.

É do jogo político que toda equipe de transição desfie queixas e aponte falhas quanto ao estado real do país que lhe é entregue pela administração anterior. Não raro, para justificar futuros percalços ou não cumprimento de promessas de campanha. Outras vezes, o descalabro é do tamanho da grita. Na transição americana de 2020, a equipe leal ao derrotado Donald Trump ficou os primeiros 16 dias pós-eleição sem sequer atender telefonemas da equipe vencedora de Joe Biden. Muitos funcionários públicos de carreira, temendo que alguns bancos de dados científicos viessem a ser manipulados antes da troca de poder, chegaram a armazenar conteúdos em nuvens fora do alcance trumpista. Jamais na história política dos Estados Unidos ocorreu uma transferência mais envenenada das ferramentas do Estado. Mas Estado havia.

E aqui? Aqui há falência. Os grupos temáticos amontoados pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, para a elaboração de uma radiografia nacional, parecem atordoados. Há os que engatinham, os que já percorreram meio caminho e os altamente preparados para a tarefa. Todos têm em comum garimpar nos escombros do que já foi um país com políticas públicas.

O testemunho mais contundente da semana veio durante a entrevista coletiva do grupo de trabalho de meio ambiente. Trata-se do grupo dos sonhos de qualquer governo, dada a proficiência e o conhecimento de seus integrantes. Na quinta-feira, o microfone foi passando de mão em mão até chegar a vez de Izabella Teixeira fazer seu resumo.

Formada em biologia e doutora em planejamento energético, ex-ministra do Meio Ambiente nos governos Lula e Dilma Rousseff e coringa das Nações Unidas para a crise climática, quando essa servidora pública fala, a gente presta atenção dupla. Até porque sua voz de contralto é forte. (Seria até impiedoso imaginar um debate entre ela e Ricardo Salles — aquele que ocupou a mesma cadeira no governo Bolsonaro e dela foi exonerado após acusações de envolvimento em exportação ilegal de madeira da região amazônica. A terraplenagem intelectual seria épica.)

— Não é exagero, não é drama. Todo mundo sabe que sou muito pragmática, mas levei muitos sustos vendo os documentos — esclareceu a ex-ministra. — Não é uma questão de ineficiência ou incompetência [do governo Bolsonaro]. Houve uma decisão política de destruir.

Alegrou-se, porém, com a solidariedade encontrada junto ao corpo técnico do ministério e de outras 200 instituições que forneceram dados e foram ouvidos pelo grupo. Nunca vira tamanha força da sociedade civil:

— Vieram de forma colaborativa, engajada, produtiva. Não vieram reclamando.

Ela acredita que o Brasil dessa nova envergadura tem força para reconstruir o diálogo — até porque, “sem a força da sociedade e de vocês [a imprensa] comprometidas com a transparência e a verdade, o Brasil não fica de pé”. Em resumo:

— Não tem dinheiro para prevenção alguma. Acabou. Aliás, acabou de sair um ofício do presidente do Ibama suspendendo todas as atividades por falta de dinheiro. Acabou o licenciamento … não tem fiscalização. Está por escrito, em ofício enviado ao secretário executivo do Meio Ambiente explicando as razões do bloqueio de todo o dinheiro disponível. Então me parece que o Ibama vai trabalhar virtualmente … Feliz Natal para os grileiros e para os criminosos neste país do crime ambiental, porque é isso que está sendo dito.

Se todos os grupos de trabalho da transição forem tão eficazes e produtivos quanto o do meio ambiente, o governo Lula pelo menos saberá em que pântano estará pisando. E o que fazer para, mais adiante no futuro, poder proporcionar um Feliz Natal para o Brasilzão que merece.

6/12/2022

3 Comentários para “O Brasil devastado (1)”

  1. A leitura desses textos muito bem compilados por Sérgio Vaz nos conduz a reflexões profundas e inadiáveis na busca da compreensão da vida brasileira neste Terceiro Milênio.
    Felizmente, ainda há jornalistas no País, apesar das tricas e futricas mal esclarecidas que povoam diariamente o Waths App.
    Nesse pardieiro fétido da expressão nojenta de pessoas sem conteúdo algum, resistem os que seguem lendo, comparando, perguntando e exigindo profissionalismo, sem perder sentimentos, pois repórter é ser humano.

  2. Caríssimo Montezuma,
    Que imenso prazer começar o ano lendo esses seus comentários!
    Que o ano de 2023 traga bons momentos para você e sua família, prezado amigo!
    Um grande abraço!
    Sérgio

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