Dizem que os números não mentem, não falham. Os números são a absoluta lógica, são o que de mais lógico a humanidade inventou – ou foi capaz de compreender. O problema é que há também os que dizem que os números podem expressar qualquer coisa, dependendo da vontade do freguês. Mark Twain dizia que “há três espécies de mentiras: as mentiras, as mentiras sagradas e as estatísticas”.
Os conceitos de esquerda e direita muito provavelmente nunca foram tão difusos, enevoados, pouco rígidos e pouco claros quanto nas últimas décadas, depois do fim do Império Soviético e da ascensão da China teoricamente comunista à condição de segunda maior economia capitalista do mundo.
Isso posto, vamos lá:
Os números das eleições presidenciais de 2022 – as mais importantes desde a redemocratização do país – levaram muita gente de esquerda a ficar perplexa com a vitória nos Estados mais desenvolvidos, mais modernos, desse estrupício da mais extrema e retrógada direita que é Jair Bolsonaro. Assim como levaram muita gente de direita – dos extremados até os mais conscientes, racionais – a olhar com desprezo para o Nordeste e o Norte, as regiões mais pobres do país, em que Luiz Inácio Lula da Silva venceu com folga.
O preconceito de gente do Sudeste e Sul contra os nordestinos e nortistas é uma das chagas mais feias da sociedade brasileira, somente comparável ao preconceito existente contra negros e pardos, que formam a maior parte da população brasileira. E não há consolo algum em lembrar que esse tipo de preconceito regionalista não é privilégio do Brasil, que na Itália, por exemplo, ele existe da mesma forma, opondo o Norte industrializado e desenvolvido ao Sul rural. Que, nos Estados Unidos, o abismo entre o Norte mais desenvolvido e o Sul agrário e escravagista levou a uma sangrenta guerra civil que durou mais de quatro anos e deixou 600 mil mortos.
Nesta terça-feira, 1º/11, tivemos um exemplo dos mais abjetos, mais nojentos desse preconceito. Uma mulher que teve oportunidade de se educar, e teoricamente deveria ter aprendido alguma coisa na vida, Ângela Machado, escreveu no Instagram a seguinte sandice criminosa:
“Ganhamos onde produz, perdemos onde se passa férias. Bora trabalhar porque se o gado morre, o carrapato passa fome.”
Madame, naturalmente, é bolsonarista. Fez campanha para Bolsonaro, o sujeito que disse que Lula tem muito voto no Nordeste porque lá é terra de analfabeto.
Madame é mulher do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, e, no clube que tem a maior torcida do Brasil, o time preferido do Nordeste, exerce o cargo de diretora de responsabilidade social. Diretora de responsabilidade social! Este é mesmo o país da piada pronta.
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Pois é, os números.
Sim, é verdade que Lula teve mais votos do que Bolsonaro nos Estados do Nordeste – graças a Deus. Em todos eles, todinhos. Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe.
Nos Estados do Norte não houve unanimidade – bem ao contrário. Bolsonaro venceu em quatro – Acre. Amapá, Rondônia e Roraima. E Lula ganhou em três – Amazonas, Pará e Tocantins.
No Sul, sim, é verdade, Bolsonaro ganhou em todos os três Estados, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
E, no Sudeste, onde se concentram cerca de 42% – quase metade! – dos eleitores do Brasil, Bolsonaro teve mais votos em três dos quatro Estados, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Lula só ganhou em Minas Gerais, mantendo intacta a tradição de que quem ganha em Minas ganha no país todo. Mas foi por uma diferença mínima.
Com isso, então, estaria provado que Bolsonaro ganhou nos Estados mais ricos e Lula ganhou no Nordeste pobre?
Aí é que está. Os números são lógicos, não mentem, não falham – mas às vezes não se apresentam da forma mais simples possível. Às vezes é preciso olhar com mais atenção para perceber exatamente o que eles estão querendo dizer.
Um levantamento feito pelo jornal O Globo e divulgado em reportagem na edição desta terça-feira demonstra que foi o avanço no Sudeste que impulsionou a vitória petista.
Sim, do Sudeste. O Sudeste da madame preconceituosa. De tanta gente que fala mal de nordestinos.
Hê hê… Os números!
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Aqui vai a bela reportagem. E vai também a tabela que ilustra o texto e demonstra claramente, que desenha a coisa toda.
Avanço no Sudeste impulsiona vitória petista
Por Marlen Couto, O Globo, 1º/11/2022.
A vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra Jair Bolsonaro (PL) pode ser explicada pelo crescimento do petista em estados da Região Sudeste, que concentra os maiores colégios eleitorais do país. É o que mostra um levantamento do Globo a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que comparou o desempenho de Lula com o de Fernando Haddad, candidato do PT no segundo turno da disputa de 2018. Embora Lula e Bolsonaro tenham crescido em regiões nas quais o rival tem maior adesão do eleitorado, o mapa da apuração revela que o avanço do petista foi maior que o do candidato à reeleição no ‘território inimigo’, na comparação com a eleição anterior.
Ainda que Lula também tenha avançado no Nordeste, onde conquistou 1,9 milhão de votos válidos a mais que Haddad, o presidente eleito cresceu mais, em números absolutos, no Sudeste, região em que Bolsonaro conquistou adesão da maioria dos eleitores. Nos quatro estados sudestinos, Lula somou 7,7 milhões de votos a mais nas urnas que o ex-prefeito paulista alcançou em 2018.
Os números de novos votos conquistados na região mais populosa do país correspondem a 58% do saldo positivo de 13,3 milhões de votos alcançados pelo candidato petista frente ao pleito de quatro anos atrás. Respectivamente, os três colégios eleitorais mais populosos registraram os maiores crescimentos. O presidente eleito teve mais votos em quase todos os estados do país. A exceção é Roraima, onde Lula teve 5,7 mil votos a menos que Haddad.
No estado de São Paulo, onde o placar terminou em 55,24% a 44,76%, favorável a Jair Bolsonaro, Lula teve salto de pouco mais de 4,1 milhões de votos em relação a Haddad. Lula venceu na Região Metropolitana da capital, mas foi derrotado por Bolsonaro no interior, onde a diferença entre os candidatos chegou a 16,8 pontos percentuais. Na capital paulista, Bolsonaro teve 60,3% dos votos há quatro anos. No domingo, essa proporção caiu para 46,5%. Lula, por sua vez, alcançou 53,46%, ante 39,62% de Haddad. Ao todo, o presidente eleito teve 486,4 mil votos a mais que Bolsonaro na cidade.
No Rio, Lula teve 1,4 milhão de votos a mais que Haddad em 2018. O resultado foi puxado também pela capital, onde terminou atrás de Bolsonaro, mas com uma diferença de 5,3 pontos percentuais.
Em Minas, o presidente eleito teve crescimento de 1,5 milhão de votos, na comparação com o candidato petista há quatro anos. O estado foi o único do Sudeste em que Lula somou mais da metade dos votos válidos e foi aquele em que a distância entre os presidenciáveis foi a mais apertada do país, de apenas 0,4 ponto percentual, o que representa apenas 49.650 votos.
Os dados do TSE apontam que Lula conseguiu manter a vitória do primeiro turno em 372 das 659 cidades (56% do total) nas quais o governador reeleito Romeu Zema (Novo) também venceu na disputa pelo Executivo mineiro, apesar do apoio de Zema a Bolsonaro no estado.
O padrão de votação em Lula, em Minas, seguiu marcado pelo seu maior desempenho em cidades pequenas. Se na capital, Belo Horizonte, o petista ficou atrás de Bolsonaro e somou 45,7% dos votos, contra 54,25% do atual presidente, no interior, o petista chegou a 50,84%, enquanto o candidato do PL marcou 49,16% do total.
No Sudeste, embora tenha conquistado mais da metade dos eleitores e tenha terminado a eleição com 4,2 milhões de votos a mais que Lula, Bolsonaro teve queda, em números absolutos, de 1,3 milhão no total de apoiadores em relação à votação de 2018. A redução foi de mais de 1 milhão de votos somente em São Paulo e chegou a 265 mil no estado do Rio, reduto eleitoral do hoje presidente. Em Minas Gerais, principal foco da campanha de Bolsonaro no segundo turno, houve pequeno crescimento em relação a 2018, de 41,2 mil novos votos.
Ao todo, Bolsonaro registrou saldo negativo de votos em seis estados. Além de São Paulo e Rio, foram contabilizadas perdas no Rio Grande do Sul (-160,5 mil), Paraná (-65 mil), Distrito Federal (-39 mil) e Acre (-7,1 mil).
Por outro lado, o candidato do PL cresceu mais no Pará e em estados do Nordeste, como Bahia e Ceará, movimento que já havia ocorrido no primeiro turno. No estado da região Norte, a alta foi de 331,7 mil votos, a maior registrada no país. Considerando os nove estados nordestinos, o atual presidente teve 1,13 milhão de votos a mais que em 2018.”
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Ah, os números…
Quanto às estultices que andam sendo proclamadas nas redes contra os nordestinos, é necessário lembrar que há um ponto em que a estultice vira crime.
Preconceito racial é crime neste país – e, felizmente, faz muito tempo que é assim. A Lei Afonso Arinos é de 1951. Até 1965, nos Estados Unidos havia leis estaduais estabelecendo a segregação racial exatamente como na África do Sul.
Preconceito contra pessoas de uma região deveria ser crime da mesma forma.
1º/11/2022
P.S.: Na linha fina embaixo do título, usei a expressão “bolsonaristas preconceituosos”. Muita gente poderia dizer, com carradas de razão, que isso é um pleonasmo injustificável – faz parte integrante do bolsonarismo ser preconceituoso.
Mas é preciso pacificar o país, e então…