O Filhote. Capítulos VII a IX

CAPÍTULO VII – OLHARES CONSENTIDOS

No dia seguinte, ao visitar o local sem que ninguém suspeitasse deles, souberam do resultado: a locomotiva parou a poucos metros da ponte de ferro, mas ninguém morreu. Pior foi o que aconteceu com Francisco Colares, Diáz, apelidado de “Fraquito”, um espanhol baixinho e magrinho. Ele bateu com a testa no encosto de um dos bancos de madeira e por sorte não sofreu fratura craniana, apenas um longo corte que levou muitos pontos. Ele estava indo visitar a mulher, tia Matilde, irmã de dona Alice, mãe de “Quinzinho”, internada em Ribeirão Preto para se tratar de uma fratura na bacia resultado de uma queda na calçada da vasca onde lavava roupa. Ou seja, em vez de visita-la, “Fraquito” acabou lhe fazendo companhia no mesmo hospital.

Embora preocupado com o que acontecera ao tio, sentiu-se plenamente vingado quando, dias depois, soube que o manobrador fora indiciado em inquérito pela polícia, sumariamente afastado do cargo e depois demitido porque fora considerado culpado pelo acidente. Enfim, para um menino de 12 anos, ainda sem consciência do que era maldade e inconsequência, ele o fez pagar com sobras pela surra que lhe deu.

Anos depois, “Quinzinho”, já morando em Jundiaí e trabalhando na Companhia Paulista, na qual fora admitido depois de ser aprovado em concurso em 1965, voltou a Guatapará pela primeira vez para visitar parentes e amigos. A pequena cidade estava cheia de residências e prédios comerciais. Foi então que seu Alcides, já aposentado, morando na vila, o convidou para almoçar em sua casa na companhia da família. Foram momentos inesquecíveis, que lhe permitiram reencontrar pessoas com as quais convivera desde a primeira infância e até a adolescência.

No final, olhando-o nos olhos e reforçando sua pergunta com o argumento de que se houve crime ele já estava prescrito, o antigo chefe da estação o questionou, sorrindo:

— Me responda: foi você quem descarrilou o trem da Mogiana para se vingar daquela surra que o manobrador lhe deu na mangueira em frente da casa dele, não foi?

“Quinzinho” abriu um sorriso e, assim, confessou sem dizer uma palavra sequer. Satisfeito, seu Alcides nada mais lhe perguntou. Apenas encerrou o assunto batendo com a palma da mão na mesa e dizendo com convicção:

— Eu sabia, eu sabia!!!…

 

CAPÍTULO VIII – O MORMAÇO, A CACHAÇA E O BATE-PAPO

“Mestre Cilão” ainda gozava na memória as estripulias do afilhado quando uma voz infantil ecoou no ambiente:

— “Estreitinha” matô um bicho!

Era esperto como um serelepe, cabelos negros encaracolados, o menino que entrou correndo, esbaforido, na “Boca da Onça”. Não devia ter gasto mais tempo que o do clarão de um relâmpago para varar a distância entre a estação e a taberna, na beira da estrada. Houve gente até que jurasse:

— Nem isso! ”Dinho” parece um quero-quero: não só anda rápido como voa! – diziam do garotinho Armando de Oliveira, filho de outro Armando, motorista de caminhão, e neto de seu Giacomo Donega, um italiano que há anos era o chefe da estação da Mogiana em Guatapará. Primeiro virou “Armandinho” para diferenciar do pai, contudo, de tão pequeno ficou somente o “Dinho”.

Perdidos no bate-papo, os pescadores bebiam o mormaço da tarde entre uma e outra talagada de cachaça, gastando o tempo na espera. Era 1954, já em outubro, a primavera viçando nas flores e o Mogi Guaçu baixo, expondo as costelas pedregosas nos seus trechos mais rasos. Nada de peixe. A esperança era o começo da estação das águas, trazendo com ela a piracema, que naquele tempo, sem as restrições de hoje por conta das leis ambientais, era época de fartura.

A indolência que tomava conta de todos já ia para mais de uma semana e uma reponta, difícil com a longa estiagem daquele ano, seria o milagre que faria os homens jogarem os panos n’água. Mesmo sabendo que qualquer cardume que viesse seria mirrado, de poucos e pequenos peixes, como os curimbatás-de-barbatana-vermelha, que sempre puxavam as primeiras levas. De outro jeito, canoa acabava esturricada em ponta de praia ou toco de amarra.

O espetáculo que se via andando pelas margens do rio era belo, porém preocupante. Desde a ponte velha, mais acima, grandiosa na arquitetura dos seus arcos de ferro, construída pela Companhia Paulista, que importou as peças dos Estados Unidos e cuja montagem final data de 1901, até os canais de saneamento, já bem embaixo, quase fora do alcance dos olhos, ou, mais longe ainda, já na boca do córrego “Rancho-Queimado”, nas proximidades da corredeira do Guarani, as barrancas ganhavam aspecto multicolorido. Em cada porto ou praia matizes e nomes diferentes misturavam-se num mar de fantasia. O verde da “Corrupiá”, o vermelho da “Asahi”, o amarelo da “Estirão” e por aí a fora. Canoas de todo tipo, cor e tamanho.

Sossegado num canto, “Mestre Cilão”, nascido às margens do médio Mogi Guaçu, lá nas bandas da volta da Ariranha, toda uma existência descendo e subindo o rio, via no pensamento a sua “Corredeira”. O azul imponente misturava-se com a cor do céu, refletida nas águas que jogavam sua figura piracicabana de encontro às areias brancas da praia.

Quando levantou o copo para leva-lo à boca sua atenção foi chamada pela imagem de um galo índio correndo atrás de uma galinha no terreiro em frente à bodega. Enquanto sorvia o ardor saboroso da cachaça em meio a calmaria do ambiente, que acabava de ser quebrada pela estripulia do galináceo conquistador, sua lembrança viajou no tempo e “Mestre Cilão” foi buscar no fundo da memória a figura de um galo que marcou sua infância…

 

CAPÍTULO IX – O SANTEIRO

Não se lembrava bem em que época, mas que fora lá pelo começo dos anos 40 tinha certeza. No terreirão que separava da estrada a casa simples, a mulher que o adotara, e a quem também adotou como mãe, costumava erguer no terreiro da frente uma fogueira de mais de três braças e ao lado um mastro. Tudo era feito no 23 de junho. Véspera de São João, noite fria, tão fria como são as noites dessa quadra junina no vale do Mogi Guaçu, foi nessa noite, a mais comprida do ano, que surgiu mais uma vez, como costumava aparecer todo ano, uma figura que o acompanhou em quase toda a juventude.

Sem falhar, pelo menos não falhou em todo o tempo que sua memória conseguiu arquivar, lembrou que todo 24 de junho ele comia na modesta mesa daquele lar também modesto. Dona Emília não tivera o dom de gerar seus próprios filhos, mas ainda assim construiu uma família adotando um menino que o marido, João Justino, encontrara dormindo numa praia do Mogi Guaçu, bem longe, rio acima, e uma menina, bebezinho de poucos dias, filha de uma andarilha que a deixara na porta de sua casa por saber que ela seria criada com muito amor.

O ponto alto que marcava aquela época era o que levava a mulher a poder rezar o terço todas as noites, desde a do dia 15, data em que seu marido quase morrera ao ser picado por uma cascavel quando trabalhava na roça num junho lá bem atrás. A obrigação religiosa era a resposta a uma promessa que fizeram ao santo pela graça de ter o marido sobrevivido apenas com emplastro de joá bravo, pois remédio de farmácia não havia numa distância de muitas léguas. A última reza da novena coroava as festividades na véspera do dia do santo, o mesmo de quem o marido recebera o nome de batismo. Nascera daí a tradição da homenagem prestada todo ano. Por isso, ela fazia questão, religiosa que era, de que a mesa fosse abastada, mesmo com comidas simples, reunindo quase tudo o que se pode oferecer como iguarias nas festas juninas do interior caipira.

Também virara costume esperar pelo viajante, que chegava já quase sem forças, marcas doloridas alastrando-se pelos pés cansados de um caminhar feito sem ajuda de qualquer transporte. Tal como um Lázaro peregrino de sua fé, merecia da bondosa senhora dona da casa água quente, sais e cânfora, lenitivos para ele poder se recompor de suas feridas

Com a repetição periódica da visita, sua presença fazia com que os quatro membros da família – João e Emília e tanto Marcílio quanto Idalina, sua irmã também adotiva, o recebessem como se ele fosse uma espécie de tio distante. Desde então passaram a chamá-lo de Antônio Santeiro. Não, ele não era escultor de santo. O santeiro do nome vinha da bandeira que carregava em louvor aos três santos juninos. Era uma promessa de muitos anos.  Começava a passar pelas fazendas antes da dobrada do maio e a casa da família, já na última década de junho, era parada obrigatória no final da sua jornada.

Ao passar no 24, encomendava as prendas para o 29, data máxima das comemorações e cuja festança se encerrava com um apogeu quase sempre inesquecível na fazenda Santa Olímpia, uma das mais importantes produtoras de café da região de Ribeirão Preto.

“O Filhote”, romance de Plínio Vicente da Silva, está sendo publicado em capitulos.  

Para ler os três capítulos anteriores.

Para ler a partir do primeiro capítulo. 

 

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