Betha, Betha, Bethânia

Todo mundo fez live. Todos os grandes, todos os próximos a ela fizeram lives – Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil… Bethânia bem que tentou resistir, não ser levada pela maré.

No dia 15 de dezembro – menos de dois meses atrás, portanto –, o repórter Guilherme Sobota, de O Estado de S. Paulo perguntou a ela: “Você foi uma das poucas grandes artistas da música brasileira que optaram por não fazer ‘lives’. O formato não te agrada? Você chegou a assistir a alguma?”

Respondeu que vuy várias: “Assisti à de Caetano, que foi maravilhosa. O Caetano com os meninos. Assisti à de Caetano para ajudar a campanha do (Guilherme) Boulos. Assisti, muitas vezes, à da Tereza Cristina que, inclusive, me prestou uma homenagem muito bonita no dia de meu aniversário, sou gratíssima. Assisti a algumas, sim. Vi Adriana Calcanhotto, Fábio Jr… Adorei a live do Fábio Jr, tão elegante, sereno; Fafá de Belém, umas duas ou três, ótimas também, com aquele vigor querido e sempre vitorioso da Fafá. Vi bastante coisa.”

E então explicou:

“Para mim, sou uma artista que precisa de uma resposta, sou mais de palco, mais de resposta imediata, ouvir, sentir o calor da plateia… Para mim, acho difícil, pelo tipo de artista que sou e pelo trabalho que faço. Mas não sou contra, acho positivo, acho bonito, acho que abraça o povo brasileiro, que está tão desesperado e tão entristecido, tão massacrado nessa situação toda que estamos vivendo. Acho bom, acho que leva afeto.”

Bethânia bem que tentou. Resistiu, resistiu – mas acabou cedendo.

Ao repórter Danilo Casadetti, que a entrevistou poucos dias atrás para O Estado de S. Paulo, falou do que esperava para a sua esperadíssima primeira live:

“Aprendi, apesar do receio, pois meu trabalho em cena é muito vigoroso, tem cenografia, teatralidade, espaço… Eu corro, falo, ando. Isso não cabe em uma tela. Mas farei de outro jeito, que eu amo também, que é um ensaio. Adoro a preparação, seja para show ou para um disco. Na minha visão, a live é um pouco isso. É uma coisa não terminada, se compondo naquele instante. Por isso, neste momento, aceitei.”

Mas insistiu:

“Não será um show, não mandei fazer roupa. O público não estará ali, é mentira, é falso eu fingir que está. Estará longe. Faltará o calor, o olhar. Farei quente, estou animada, mas dentro dessa realidade.”

Nisso aí Bethânia errou.

O que ela fez não foi uma live – foi um show. Um maravilhoso show.

Eu estava meio bobo, meio perplexo diante da TV. Foi Mary que definiu primeiro, quando estávamos ali com uns 20 minutos do show de 1 hora e 15 minutos: – “O que Bethânia está fazendo é um show.”.

Muitas das outras lives foram feitas nas casas dos artistas. Uma coisa ali no aconchego. Familiar. Caetano, por exemplo, fez com os filhos. São bons músicos, é verdade, mas são filhos. E é assim mesmo. Afinal, live é isso, uma coisa caseira, doméstica. Quase amadora.

Gal Costa foi uma exceção. Para Gal, tentaram produzir uma coisa especial, fantástica, diferente, na Casa de Francisca, a casa de shows que ocupa um prédio de esquina na Rua Quintino Bocaiúva, bem perto da Praça da Sé, em São Paulo. Ficou produzido demais – parecia o tempo todo que a diretora Laís Bodanzky queria aparecer mais que a estrela da live.

A live de Bethânia não foi caseira, doméstica – nem foi exagerada, produzida demais.

Foi um show.

Num palco de teatro – o teatro da Cidade das Artes, do Rio de Janeiro. Com iluminação caprichada, efeitos de luz, coisa profissional. Um rico, caprichado trabalho de várias câmaras. Quatro bons músicos no palco: Jorge Helder, baixo acústico, João Camarero e Paulo Dafilin, violões e Marcelo Costa, percussão, com direção de Jorge Helder.

Maria Bethânia Viana Teles Veloso fez o que sabe perfeitamente bem fazer: show.

Como sempre faz, desde Rosa dos Ventos, de exatos 50 anos atrás, misturou músicas com trechos de poemas. E conversou com o público que ela não estava vendo, não estava ouvindo – mas que a via e ouvia embevecido, Brasil afora. Falou de Rosa dos Ventos, de Fauzi Arap, que a dirigiu naquele e em outros espetáculos marcantes. Falou que neste 13 de fevereiro de 2021 completam-se 56 anos da estréia dela nos palcos do Rio de Janeiro – veio da Bahia a pedido de Nara Leão, para substituir a cantora no histórico show Opinião, ao lado de João do Vale e Zé Kéti.

E cantou maravilhas conhecidas de todos – Gonzaguinha, Caetano e Chico, é claro, mas também Adelino Moreira – e outras nem tanto, mais recentes, de Roque Ferreira, Chico César, Paulo Dafilin. Apresentou uma canção até aqui inédita, creio, de Adriana Calcanhoto, “2 de Junho”, sobre a absurda morte do garoto Miguel, o filho da empregada que caiu do alto de um prédio de ricos no centro do Recife.

Cantou “Cálice”, a canção absolutamente cheia de símbolos, que remete diretamente à ditadura militar. Não me lembrava de ter ouvido Bethânia cantar “Cálice”.

Aliás, o letreiro com o nome da música e do (s) autor (es) dizia apenas Chico Buarque, deixando Gilberto Gil de fora, um erro pequeno mas imperdoável. Outro erro dos letreiros foi atribuir apenas a Chico e Ruy Guerra a canção “Sonho Impossível”, que Bethânia havia cantado no show do Canecão em 1975 que se transformou no disco Chico Buarque & Maria Bethânia ao Vivo. Eles são apenas os autores da versão em português da canção “The Impossible Dream”, de J. Darion-M. Leigh.

Mas Bethânia não tem nada a ver com esses erros.

***

O que eu de fato queria registrar aqui, ainda sob o impacto do show, é que por diversos motivos o que ficou passando pela minha cabeça enquanto via aquela beleza, e continua passando agora, é… Diabo, como este país é grande, como este país é rico, como este país é belo!

Senti coisa parecida com as lives de Caetano.

A música brasileira é bela demais da conta.

Um país que produz música dessa qualidade, um país que tem esses artistas, um país que tem Maria Bethânia, diabo, é muito maior do que as duas doenças terríveis, assassinas, que caíram sobre ele ao mesmo tempo, a pandemia e o bolsonarismo.

E creio que não sou eu que estou politizando o show de Bethânia neste 13 de fevereiro. Ela mesma politizou seu show. Desde o início. A primeira palavra que ela pronunciou, depois de abrir com “Explode, coração”, de Gonzaguinha, foi “vacina”.

“Quero vacina, respeito, verdade e misericórdia”, proclamou.

Ela escolheu cantar “Cálice” por causa do momento que estamos vivendo, sob a presidência de um idiota tosco incompetente e assassino que elogia a ditadura e a tortura.

Nunca ouvira falar que Bethânia tinha em seu repertório o “Volta por Cima” do grande Paulo Vanzolini.

Bethânia cantou “Volta por Cima” com aquele tom de desafio com que Chico Buarque fez “Apesar de Você” – a música que poderia perfeitamente ter como subtítulo “Canção para Emílio”, o ditador da época.

Sei lá. Fiquei achando que o show de Bethânia teve um tom muito parecido com o do artigo que Mary Zaidan está publicando neste domingo de carnaval sem carnaval

Um tom de que as duas doenças vão passar.

13 e 14/2/2021

7 Comentários para “Betha, Betha, Bethânia”

  1. Servaz, a Bethania é imbatível num palco. E isso vem desde quando veio da Bahia para substituir a Nara no show Opinião, com João do Vale e o recém centenário Zé Keti, no teatro do mesmo nome, no Rio, nos terríveis anos 60. Não sei se vc teve o privilégio de vê-la com o Chico , no Canecão, que só aconteceu no Rio e, por sorte, está integralmente num CD. Foi a primeira vez que a vi e, desde então saquei: ninguém irá superá-la em cena. Vi Opinião com a Nara. Sobre a live, que peguei já em curso, e graças ao seu toque, concordo com o seu entusiasmo. Faço apenas um reparo; prefiro o irmão dela interpretando “Reconvexo”, tanto ao vivo como em disco.

  2. Obrigada pelo texto , Sergio Vaz .
    Não vi o show , que pena , perdi !
    Sorte , tive a oportunidade de ver Bethania ao vivo no RJ , algumas vezes .
    O Brasil tem um patrimônio nas Artes , em todas as Artes . Vamos superar esse momento . E Bethania não seria ela mesma , se não trouxesse esse terrível momento que o Brasil vive , para o seu Show. . Por isso fez o Show . Vou procurar para ver . E agora , vou à caça para ler o texto da Mary .
    Excelente Domingo para vocês !
    Happy Valentine’s Day para você e para a Mary
    ❤️❤️

  3. Perdi a live, mas ganhei este comentário de Sérgio Vaz. De certa forma, uma coisa substituiu a outra…

  4. Gostei muito da sua avaliação, Sérgio Vaz. Não posso chamar de comentário porque vai muito além. Crítica também não. Há muito envolvimento. Depois de assistir ao show de Bethânia, como Mary Zaidan tão bem definiu, este seu artigo fecha o ciclo. Que maravilha! Uma viagem surpreendente em dias tão tristes. Você e Bethânia arrasaram, como se diz por aí.

  5. Melchíades, Valdir e – sobretudo – Maura, vocês são amigos muito queridos. E excedem no quesito gentileza.
    Um grande abraço aos três.
    Sérgio

  6. Servaz, muito obrigada. Pelo texto. Por Bethania. Pelo Brasil que resiste.

  7. Sérgio, acabo de te ler, e de ler os vários comentários .
    Sobrou pouco pra eu te dizer, mas a sensação de que a Bethânia não vai passar me encheu de esperança. Sensação que foi chegando com seu texto, frase após frase. Musicalmente.
    Beijo antigo.
    Vivina

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