Depois de incinerar os valores éticos que dizia encarnar, azeitar parcerias com o diabo, dilacerar o Estado e dinamitar a própria esquerda que se arvorou em liderar, o Partido dos Trabalhadores ensaia mais uma crueldade. Fiel da balança na eleição para presidente da Câmara dos Deputados, o PT pode coroar a primeira vitória política do presidente Jair Bolsonaro no Parlamento.
Muita futrica, difamação, ofertas de cargos e dinheiro vão rolar até 1º de fevereiro, quando o plenário, por maioria absoluta de 257 parlamentares (em um ou dois turnos), escolherá o sucessor de Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nestes 40 dias, os apoiadores do deputado Arthur Lira (PP-AL), escancaradamente endossado por Bolsonaro, e os do grupo de Maia devem se alternar em contabilidades que costumam mostrar muitos mais votos do que se tem de fato. Especialmente em uma eleição secreta, na qual trair é uma tentação quase irresistível.
Mesmo jogando pesadíssimo, o governo soma hoje apenas uma discreta vantagem, pouco mais de 170 votos para Lira contra 160 da turma de Maia, ainda sem candidato definido.
Mas a derrota do candidato de Bolsonaro já poderia estar assegurada se as esquerdas tivessem algum juízo. Juntos, PT, PSB, PDT, PSOL e PCdoB somam 132 votos, o suficiente para dar a vitória a qualquer um dos lados.
Nenhum desses partidos poderia sequer ter cogitado o voto em Lira.
Por unanimidade, o diretório nacional do PSB decidiu, por 80 a zero, que não apoiará qualquer candidato associado a Bolsonaro. Um jato de água fria nos 18 dos 31 deputados da legenda que chegaram a confessar preferência pelo candidato governista. O PDT e o PCdoB têm dito que devem se manter contra o bolsonarista. E o PSOL, que tanto apelo fez pró-voto útil para Guilherme Boulos em São Paulo, vai dividir em vez de somar, lançando candidato próprio.
Já no Partido dos Trabalhadores é a mudez oficial que fala.
Com 54 deputados, a maior bancada da Câmara, o PT nem de longe é taxativo no descarte do pretendente bolsonarista. Ao contrário. Gente do partido tem negociado com Lira. Nos piores termos, com moedas espúrias: não à prisão após condenação em segunda instância, fim da Lei da Ficha Limpa, sepultamento definitivo da Lava-Jato.
A pauta petista sintonizada com os interesses do Centrão deveria surpreender. Mas não. Fala a língua de Lula, de outros réus e condenados do partido. Enquadra-se ainda no cenário que o PT considera ideal para 2022, dando força política a Bolsonaro para que ele seja o principal adversário de Lula. A rigor, a polarização é vista por ambos como a melhor alternativa.
O centro – e uma eventual vitória do grupo de Maia reforçaria esse campo – é o inimigo da vez. Do presidente Bolsonaro, que joga todo o governo, a caneta Bic e seu poder nas redes na batalha, e do PT, que prefere rivalizar com a ignorância da direita terraplanista a debater com os argumentos das correntes democráticas.
O PT chegou ao poder com a aura da decência, mas escolheu o mensalão e o petrolão. Foi do paraíso às profundezas do inferno e persevera em nada aprender. Diminuído de tamanho e importância, continua insistindo no suicídio em nome da sobrevivência de Lula.
Mesmo com os 78 votos do PSB (31), PDT (28), PSOL (10) e PCdoB (9), a oposição a Bolsonaro não alcançaria maioria para derrotá-lo. Faltariam pelo menos 20 votos. Logo, uma eventual vitória de Bolsonaro na Câmara teria a rubrica do PT, agregando à sua já combalida imagem o apoio deletério e perverso à agenda do atraso, em especial no que tange aos costumes, à anticiência, ao antiambientalismo. Em nome dos umbigos de Lula e Bolsonaro estaria consumado um pacto anti-Brasil.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 13/12/2020.
Recebo do meu amigo Valdir Sanches no Messenger:
O artigo de Mary Zaidan está simplesmente brilhante. Do abre a todo conteúdo, vigoroso, com comparações fortes porém criativas, o que proporciona uma leitura imperdível. Forte abraço para ela.
Em um Brasil como o nosso, onde a Justiça é injusta e onde os pobres são massacrados pelo sistema penal, sou contra a prisão em segunda instância. Feita a ressalva, texto brilhante.
Mas, me permita, Maria de Fátima: a prisão após condenação em segunda instância é uma medida justa em todos os sentidos. Tanto que é permitida na imensa maior parte dos países civilizados. Exigir que a condenação seja aprovada também numa terceira instância, num tribunal superior, é de fato de injustiça, que privilegia os muito ricos, que podem pagar bons advogados, capazes de ficarem adiando, adiando, adiando o cumprimento da sentença…
Sérgio
Artigo corajoso, lúcido, necessário. A prisão apenas nos tribunais superiores é o paraíso dos advogados de grife. Já o respeitável público… O PT está a caminho de se tornar parceiro de toda trupe bolsonarista, inclusive o próprio, o Grande Mentecapto. Lula certamente terá o que conversar com Ricardo Salles, Paulo Guedes, Onyx Lorenzoni, Fábio Faria, tia Damares, Eugênio Terra Plana, Eduardo Pazuello e outros.