Nirlando Beirão não era apenas um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. Sim, isso ele era, e tenho absoluta certeza de que ninguém discutiria sobre o assunto. É uma certeza unânime.
Nirlando veio uma ou outra geração depois de Nelson Rodrigues, de Otto Maria Carpeaux, mas tenho certeza de que, se o tivesse conhecido, se tivesse convivido com ele, o homem teria cravado, como cravou sobre Otto, que, quando Nirlando começava um texto, o resto da redação se calava.
Digo isso aí sobre o Nelson Rodrigues com a mais calma certeza do mundo – muito embora jamais tenha tido a honra, o orgulho, de trabalhar na mesma redação de Nirlando, nunca, jamé de la vi.
O texto de Nirlando Beirão sempre foi unanimidade – apesar de Nelson Rodrigues ter dito tantas vezes que toda unanimidade é burra e que “mineiro só é solidário no câncer”. Nelson, aí, errou duas vezes.
Mas o que eu gostaria de realçar não é tanto o texto – é o caráter.
Nirlando Beirão foi uma das pessoas de melhor caráter que conheci na vida.
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Gostaria de contar duas historinhas. Outras notas podem entrar, mas a base é uma só, me ocorre escrever, citando a canção. Uma é um caso profissional; a outra é puramente pessoal, intransferível, feito dor de dente.
A história profissional é absolutamente verdadeira, assim como a outra, a pessoal – mas, das duas, não me lembro de detalhes, de exatidões.
Foi no começo dos anos 90, mas não sei precisar a data.
Nirlando estava, na época, fazendo a coluna da página 2 do Caderno 2 do Estadão. Em 1993 ele sairia do jornal para fundar a revista Caras, e a coluna ficou então a cargo do Cesar Giobbi.
Estava para dar uma vacância, um vazio, no cargo de diretor de redação do Estado. E várias pessoas importantes dentro da S. A. O Estado indicaram o nome do Nirlando. Não posso afirmar com absoluta certeza, mas creio fortemente que entre esses nomes estavam os de Sandro Vaia e Elói Gertel, então diretores da Agência Estado, e de Rodrigo Lara Mesquita, o diretor da Agência e patrão de todos nós.
Ser o diretor de redação de um dos três maiores jornais do Brasil é, teoricamente, pelo menos, o sonho maior de qualquer jornalista. É o ápice absoluto da carreira, o posto mais alto, o topo da escada, o trono.
O cavalo encilhado passou na frente dele. Ficou ali rodeando o cara.
Nirlando simplesmente disse que não, não estava a fim. Não queria. Estava bem onde estava.
Me lembro da reação de alguns dos meus amigos.
A gente não está acostumado a quem diz não ao cavalo encilhado que está ali para conduzir você ao sonho maior, ao ápice absoluto da carreira, o posto mais alto, o topo da escada, o trono.
Meu amigo e mestre Sandro Vaia, que anos mais tarde assumiria exatamente aquele posto de diretor de redação do Estado de S. Paulo, e faria durante alguns anos uma administração brilhante, comentou na época que Nirlando estava sendo bobo.
Tive, então, e tenho hoje, certeza absolutamente diversa da do Sandro. Nirlando não foi bobo: foi sábio.
O quê? Pegar aquele trono – mas que é também o maior abacaxi que um jornalista pode pegar na vida?
Nirlando disse não à mosca azul. Preferiu ficar onde estava – um lugar que certamente dava a ele algum prazer, e, sobretudo, não lhe torrava o saco.
Tenho profunda admiração não apenas pelos jornalistas, mas por todas as pessoas que não dão bola para a mosca azul da ambição, da fascinação pelo ponto mais alto da escada.
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Não que não soubesse chefiar. Não, não, nada disso.
Sabia, perfeitamente. Chefiou diversas redações – e seguramente chefiou bem. Só não estava a fim, àquela altura da vida e da carreira, ali pelo início dos anos 90, de ferrar a vida em nome da carreira. Fez naquele momento, creio eu, a opção preferencial pela qualidade de vida.
Os acasos da vida são fascinantes. Por um acaso, acabei, em meados dos anos 80, sendo o editor de Cultura da revista Afinal – e uma das pessoas da editoria era Marta Góes, a mulher de Nirlando na época e praticamente a vida inteira. Não nos dávamos bem, Marta Góes e eu; nunca nos demos bem. Mas nos respeitávamos, creio.
Creio também que jamais comentei com ela – até porque só conversávamos o essencialmente necessário para o funcionamento da editoria – que conheci Nirlando em 1957, quando eu tinha 7 anos e ele, 9.
Mas os acasos da vida são realmente fascinantes, e então, em 1990, aconteceu de Nirlando – bom caráter sempre – trabalhar na campanha de Mario Covas para o governo do Estado de São Paulo. Na campanha estava Mary Zaidan.
Mary sempre me contava – estávamos ali no segundo ano de namoro, já praticamente casando – como era gostoso ter Nirlando na equipe. Como ele era bem-humorado, como ele fazia brilhar as reuniões de que participava.
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Eu mesmo nunca tive o prazer, a honra, de ter trabalhado com o Nirlando. Nem de ter sido seu amigo.
Fomos vizinhos e quase amigos quando éramos garotos, no bairro da Serra, em Belo Horizonte.
Eu morava no prédio da Rua do Ouro que dava de frente para a Rua Ramalhete – ela mesma, a rua da deliciosa canção do Tavito.
Exatamente diante do prédio, bem na esquina da Rua do Ouro com a Ramalhete, era a casa da família Beirão. Baita, bela casona.
Aprendemos a ler na mesma escola, o Grupo Escolar do Instituto de Educação – ele dois anos antes de mim e de seu irmão Paulo Sérgio, este, sim, meu colega de classe.
A historinha vem agora.
Não me lembro dos detalhes. Mas, um dia lá, certamente incentivado pelo meu irmão Arnaldo, que trabalhava com vendas, fui falar com o Nirlando sobre uma enciclopédia tal e qual (não tenho idéia hoje de qual era). A venda resultaria em uns trocadinhos; a gente era apenas remediado, a família dele era rica. Assim…
Mas me faltavam argumentos para tentar vender o produto, e então falei pouco.
Nirlando percebeu minha falta de jeito, percebeu tudo, e disse algo do tipo: – “Sei, sei. Você não está sabendo muito bem vender, mas é uma enciclopédia. Se eu comprar, você ganha alguma coisa. Compro.”
Não creio que o Nirlando se lembraria dessa história. Ele viveu tantas mais importantes.
Eu jamais esqueci.
30/4 e 1º/5/2020
Muito bom. Boas lembranças. Belo texto. Carlos Dias
Belas histórias, lindo texto, Sérgio. Sou sua admiradora.
Fomos colegas no Estadão. Grande colega. Afável, cavalheiro, um exemplo. Vá em paz.
“Não era apenas um dos melhores textos do País. Era muito mais. Era o caráter perfeito.”
“Eu jamais esqueci.”
Abertura e fecho preciosos, para o texto sensível de uma bela memória. Da minha parte, entro com um chavão. Se Nirlando pudesse ler lá de cima estaria muito feliz…
Que delícia de texto! Obrigado por nos transmitir tanta sensibilidade e doçura. Nestes tempos bicudos, lê-lo é um bálsamo para o espírito.