A revista Veja desta semana afirma, na seção Veja essa, que “o clássico ‘O Barquinho’, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, foi eternizado na voz de Nara Leão”.
É uma afirmação errada.
Falsa. Incorreta. Infundada. Não verdadeira. Ou seja: mentirosa.
Coisa típica de quem ouviu o galo cantar mas não sabe onde, como diria minha mãe.
Informação não checada. Mau jornalismo, portanto.
“O Barquinho” é uma composição de 1960.
O primeiro disco de Nara Leão é de 1964 – e não contém uma única canção de bossa nova. Assim como o segundo, o terceiro, o quarto.
Nara Leão de fato gravaria “O Barquinho” – em 1985. Um quarto de século depois que a música foi lançada e fez um danado de um sucesso.
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A Enciclopédia da Música Brasileira, em sua segunda edição, de 1988, da Art Editora e Publifolha, conta, no verbete sobre Roberto Menescal: “Seu primeiro sucesso, ‘O Barquinho’, que em 1960 teve gravações simultâneas de Maísa, Peri Ribeiro e Paulinho Nogueira, tornou-se uma das músicas mais conhecidas e representativas da bossa nova, também com várias gravações no exterior”.
Gravada em 1960 por Maysa (titulo do seu álbum lançado naquele ano pela CBS), por Peri Ribeiro e por Paulinho Nogueira, “O Barquinho” estourou mesmo em 1961, segundo mostram Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no segundo volume do maravilhoso A Canção no Tempo – 85 Anos de Músicas Brasileiras. Editora 34, 1998.
Dizem Jairo e Zuza no verbete sobre “O Barquinho”:
“’O Barquinho’ seria provavelmente de Nara Leão se na época ela já cantasse profissionalmente. Namorada de Ronaldo Bôscoli, Nara sempre o acompanhava nas excursões ao mar de Cabo Frio, que ele fazia com o parceiro Menescal, um aficionado da caça submarina. (…) Rapidamente, ‘O Barquinho’ deslizou para os primeiros lugares das paradas musicais, ganhando várias gravações como a de Maysa, mais apreciada até do que a de seu lançador, João Gilberto. Aliás, nessa gravação do João – informa Ruy Castro no livro Chega de Saudade – o tecladista Walter Wanderley quase foi à loucura, por não conseguir reproduzir no órgão um ronco de navio, no exato timbre que o cantor insistia em lhe transmitir… com a voz. Finalmente, no arremate do disco, o maestro Tom Jobim conseguiu colocar nos trombones o tal ronco imaginado e desejado pelo João.”
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Hum…
Com medo de parecer um chato de galocha, mais enjoado do que gato de hotel, ouso contradizer não apenas a frase boba, irresponsável, da revista Veja, mas também a afirmação dos grandes estudiosos da MPB Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. Por maior que seja meu respeito pelos dois, devo dizer que João Gilberto não foi o lançador de “O Barquinho”, já que a canção foi gravada em 1960 por Maysa, Peri Ribeiro e Paulinho Nogueira.
João Gilberto gravou “O Barquinho” no terceiro dos seus três discos fundamentais, básicos, que de fato lançaram a bossa nova para o mundo. (São os três discos feitos para a EMI-Odeon que jamais foram relançados integral e corretamente na era do CD, e são objeto de longa, infindável disputa jurídica entre o cantor e seus representantes e a gravadora.) O primeiro álbum,Chega de Saudade, é de 1959; o segundo, O Amor, o Sorriso e a Flor, é de 1960, e o terceiro, com o título apenas de João Gilberto, é de 1961.
“O Barquinho” é a segunda faixa do lado A do João Gilberto de 1961, depois de “Samba da Minha Terra”, de Caymmi, e antes de “Bolinha de Papel”, de Geraldo Pereira.
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Embora tivesse ganho o epíteto de “musa da bossa nova” – era amiga de todos os precursores, reunia todos no apartamento de seus pais na Avenida Atlântida, cantava junto com eles –, Nara demorou a gravar canções da bossa nova.
Como escrevi em um dos meus vários textos sobre Nara, em novembro de 2013:
Nara é uma figura em tudo por tudo extraordinária. Acho que dá para dizer, sem medo de errar, que Nara é uma das artistas de maior faro, inteligência, intuição, para escolher repertório da História da música popular.
Nunca ninguém jamais teve antenas tão poderosas, tão clarividentes, tão possantes, tão certeiras quanto ela.
E Nara de fato é uma figura singular – porque sempre foi capaz de surpreender, de não seguir ondas, tendências, modismos. Muito ao contrário. Nara fugia dos modismos como o diabo foge da cruz. Nara fazia hoje o que depois de amanhã viraria moda.
Só para dar alguns exemplos: Nara ficou conhecida como a musa da bossa nova – mas em seu primeiro disco, Nara, de 1964, da gravadora Elenco, não gravou uma única faixa de bossa nova. Muito ao contrário: naquela época em que a moda, o cool, era cantar a Zona Sul, o mar, o barquinho, o violão, Nara gravou cantores do morro que as zonas sul do país ignoravam – Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho.
Só faria um disco de bossa nova quando esteve auto-exilada em Paris, Dez Anos Depois, de 1971.
Nara cantou canções latino-americanas de sua época muitíssimo antes de as canções latino-americanas da época serem conhecidas até mesmo pelas platéias universitárias daqui. Elis Regina gravaria Violeta Parra e Atahualpa Yupanqui em 1976; pois Nara havia gravado Rolando Alarcón em 1969, no discoCoisas do Mundo.
Nara gravou folk music quando praticamente ninguém no Brasil tinha idéia de que existia algo chamado folk music.
Nara foi a primeira (ou das primeiras) a gravar os então iniciantes Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Sidney Miller, Paulinho da Viola, depois Raimundo Fagner.
Gravou o francês Georges Moustaki, o português José Afonso e o cubano Silvio Rodriguez quando ninguém sabia quem eram eles (alguém hoje sabe, além de um punhado restrito de pessoas de bom gosto?), com as mesmas antenas sensíveis que a fizeram retirar do baú pérolas de Assis Valente, Custódio Mesquita, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Noca da Portela.
Nara foi das primeiras no Brasil a fazer discos exclusivamente dedicados à obra de um único compositor – e, para imensa surpresa dos puristas da MPB, gravou um disco só de Roberto e Erasmo Carlos, … e que tudo mais vá pro inferno, de 1978. Seu disco seguinte, de 1980, Com Açúcar Com Afeto, seria inteiramente dedicado a Chico Buarque.
Só mesmo Nara Leão para homenagear com um disco inteiro primeiro Roberto e Erasmo, e depois Chico.
Só para comparar: Nara fez o disco inteiro de Roberto e Erasmo em 1978; Maria Bethânia – a moça que substituiu Nara quando Nara deixou o musical Opinião, em 1964, o ano em que a quarta-feira de cinzas se abateu sobre o país, conforme ela havia cantado no primeiro disco – faria um disco exclusivamente com canções de Roberto e Erasmo em 1993. Quinze anos depois.
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Que os eventuais leitores me perdõem, mas quando botam Nara Leão no meio, eu me assanho. Conheço bem a obra dela. Ela mesma notou isso, e se espantou com isso, quando tive a sorte enorme de entrevistá-la longamente, durante boa parte de uma tarde, em seu apartamento em Ipanema, em 1981, para uma reportagem que sairia em página inteira do Jornal da Tarde.
Mostrei para ela a discografia dela que eu havia levantado e escrito em laudas do JT, e incluía várias participações em discos de outros artistas ou em projetos como os de Marcus Pereira,Música Popular do Sudeste. Disse – não com essas palavras exatas, é claro: “Nossa, quanta coisa. Eu mesma não lembrava que tinha feito tanta coisa”.
Sérgio Cabral – o pai, o grande conhecedor de MPB – usaria informações da minha matéria do Jornal da Tarde na biografia que escreveu dela, Nara Leão – Uma Biografia, Lumiar Editora, 2001. Na página 200 do livro, Sérgio Cabral escreveu: “Voltou a falar da doença para O Estado de S. Paulo: ‘Estive muito perto da morte’” – e aí ele cita frases dela que estão na minha matéria.
Mandei e-mail para Sérgio Cabral, através da editora, pedindo que, numa eventual nova edição da bela biografia, fosse feita a correção: não foi ao Estado de S. Paulo que ela deu aquela entrevista, e sim ao Jornal da Tarde. Um jornal nasceu do outro, mas eram coisas diferentes, uai. Não tive resposta.
De fato, eu devo ser um chato de galocha, um sujeito mais enjoado que gato de hotel. A pain in the ass.
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Nara não gravou “O Barquinho” em Dez Anos Depois, o álbum duplo feito em Paris em 1971 só com pérolas da bossa nova – 24 pérolas.
Bem mais tarde, em 1984 e 1985, ela gravaria dois discos só de bossa nova, no esquema voz e violão, acompanhada exatamente por Roberto Menescal, um dos autores da canção, que permaneceu fiel amigo dela sempre. (No início dos anos 80, Chico Buarque teve briga com Menescal, então diretor da PolyGram, quando o compositor quis terminar o contrato com a gravadora para assinar com a Ariola, que chegava com tudo ao mercado brasileiro. Nara permaneceu amiga dos dois.)
O disco de 1984 era Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim…
O de 1985, Garota de Ipanema, abre com “O Barquinho”.
Nara esperou 25 anos para afinal gravar a música que Bôscoli e Menescal criaram nos tempos em que ela ia com os dois para as pescarias em Cabo Frio.
17/4/2018
A foto do alto, de Nara e Menescal na Praia de Copacabana nos anos 1950, e esta logo acima, dos dois amigos em 1987, estão no magnífico site sobre a cantora, organizado por sua filha Isabel.
Obrigado pelo seu artigo. Como é bom lê-lo e aprender o certo.