A noite e o riso

Gosto tanto do riso que rasga a insossegada noite. O senso comum reclama o silêncio nocturno. Peço ao senso comum a mesmíssima desculpa que peço a Shakespeare. 
Pela boca de Macbeth, Shakespeare invoca a vendada noite – come, seeling night –, fazendo-nos crer que ela desce de véu negro a tapar os ternos olhos do dia piedoso. Nego: à noite todos os olhos se abrem desmesurados e o cliché da silenciosa noite é uma medíocre miragem auditiva.

Temos tanto medo da noite que cada vez mais a empurramos para as altas e ímpias horas da madrugada. Antes, quando a noite ainda era de Shakespeare, podíamos dizer, e creio tê-lo dito um poeta, que às horas do fim de tarde o bravo dia se afogava na ignominiosa noite. Ainda conheci essa noite adamastora e ainda ouvi o estertor defunto do dia, na minha infância a candeeiro a petróleo.

A noite povoava-se de terrores densos, fantasmas, góticos rumores. O cinema ensinou-me até que o Dr. Jekyll, cavalheiro tão romântico durante o dia, fazia-se à noite a besta endoidecida de amor que era Mr. Hyde.

Volto ao riso que rompe a noite. O riso furava mil medos negros, cortava sombras espessas à catana, roçava-se por uivos felinos, dançava no quente batuque vizinho, fintava o vento ululante entretido a violar a descarada palmeira-leque. Que mulher – era sempre uma mulher – ria ao longe esse riso nocturno, lâmina de diamante a riscar os afiados vidros da noite, como se o negrume desse instante fosse a hora humana de abraçar Deus?

Enchemos a noite de luz. Exorcizámos o magnífico terror noctívago com a exuberante iluminação pública, os cintilantes néons, a força de choque dos LED brancos, um milhão de écrans, semáforos, faróis. Francis Coppola, no tão noctâmbulo One From the Heart, bem nos avisou que o problema da América é o excesso de luz. Problema do mundo.

Em que filmes se vê a noite? Na abertura de Jaws, há a rapariga que corre para os braços da noite e para o mar uterino. Corre e despe-se. Despe-se e mergulha: noite de lua cheia, um tubarão e arbustos de sangue. Também Michael Mann, no Collateral, deixa que a mão ensanguentada e invisível da noite conduza Tom Cruise e Jammie Foxx por uma lúgubre Los Angeles. O cinema é um ventre de escuridão e foge pelas noites de After Hours e de Eyes Wide Shut o sumido eco de um riso de mulher.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia. 

One From the Heart no Brasil é O Fundo do Coração.

Jaws é Tubarão.

After Hours é Depois de Horas.

Eyes Wide Shut é De Olhos Bem Fechados.

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