Minha irmã Nilze e o Estado Grande

Pode dar certo um país em que o maior banco oficial não reconhece um documento que é cópia autenticada em cartório, e a Prefeitura do maior, mais rico, mais poderoso município não aceita um documento emitido por ela própria?

Nas últimas semanas, passei por essas duas experiências. Apresentei ao Banco do Brasil uma cópia autenticada de um documento, com selinho do cartório, pelo qual eu havia pago algum dinheirinho, e ouvi a funcionária dizer, peremptória: “O Banco do Brasil não aceita cópia. Apenas original”.

Hoje, mostrei um documento da Prefeitura de São Paulo a uma funcionária da Prefeitura de São Paulo, e ela disse que não, aquele documento não valia nada. E, simpática, solícita (muito ao contrário da funça do Banco do Brasil, autoritária, empetecada, cheia de si), me ensinou como conseguir um documento da Prefeitura que a Prefeitura reconhecesse.

Então, pergunto de novo: pode dar certo um país em que o maior banco oficial não reconhece um documento que é cópia autenticada em cartório, e a Prefeitura do maior, mais rico, mais poderoso município não aceita um documento emitido por ela própria?

Não, não foi o PT que instituiu o Estado Burocrático – é preciso dizer isso em defesa dele, mesmo que isso vá contra a pregação de sempre do Deus Lula, que garante que o País começou no dia em que ele assumiu a presidência, em 2003.

É, não foi o PT. O Estado Cartorário vem das nossas raízes ibéricas, dizem os estudiosos sérios, como Raymundo Faoro.

Mas o que poderia vir a ser deste país se o PT conseguisse seu sonho de ficar 20, 40, 100 anos no poder?

Já imaginou se tudo passasse a ser do Estado?

***

As experiências de que falei acima aconteceram por causa da minha irmã Nilze. Ela morreu no dia 31 de julho. Graças ao bom Deus, descansou. Meu irmão Geraldo e eu fomos tratar das providências no Cemitério do Araçá. Meu irmão, eterno comunista, olhava para a sala em que, na madrugada, trabalhavam os funcionários do Serviço Funerário, e se entristecia mais ainda – aquilo ali é um horror de insalubridade.

O funcionário que nos atendeu foi extremamente simpático, gentil, atencioso. Escolhemos caixão, tipo de flores, etc, etc, e Geraldo pagou com cartão de crédito. Não nos ocorreu, no momento, pedir documento comprobatório para efeito de recebimento de auxílio funeral – minha irmã era funcionária aposentada da Prefeitura de São Paulo.

Cerca de um mês depois da morte da Nilze, pensando em cobrar o tal auxílio funeral, vi que não tinha comprovação daquele pagamento feito lá na madrugada após o falecimento. Voltei, então, ao Araçá, expliquei a situação, e o funcionário que me atendeu, gentilíssimo, me deu uma Nota de Contratação de Funeral – uma cópia, retirada do próprio sistema, da nota emitida na madrugada logo após a morte da minha irmã.

Demorei um tempão, mas hoje, pela segunda vez, fui à repartição da Prefeitura que trata desses assuntos. Funciona na Galeria Prestes Maia – é o Departamento de Recursos Humanos – DERH – Seção Técnica de Atendimento – DERH 33.

Fui muitíssimo bem atendido por uma funcionária já idosa, extremamente simpática, que examinou os documentos que eu havia reunido, e explicou que a Nota de Contratação de Funeral, que especificava item por item o custo dos serviços, perfazendo total de R$ 2.471,07, não seria aceita como comprovante para solicitação de pagamento de auxílio funeral.

Seria necessário ter o original ou então a cópia carbonada. (Talvez a palavra não seja carbonada. Não anotei na hora, e, como a gente bem sabe, verba volant, scripta manent.)

Argumentei que não tinha tal documento. Prestativa, a funcionária me instruiu a visitar a sede central do Serviço Funerário da Prefeitura Municipal de São Paulo, nos fundos do Viaduto Dona Paulina.

Eu tinha tido o cuidado de chegar ao Departamento de Recursos Humanos – DERH – Seção Técnica de Atendimento – DERH 33 às 15h, já que ele fecha às 16h. A temperatura era de 29 graus segundo indicava meu iPhone, mas placas nas ruas mostravam 33, e a sensação térmica beirava 45 graus.

Da Galeria Prestes Maia até o Viaduto Dona Paulina são, talvez, umas 12 quadras. Talvez 8, vá lá. Caminho bonito, no entanto – se a temperatura estivesse aí por 20 graus, teria parado em diversos locais no caminho e feito fotos, inclusive das Arcadas, do busto de Castro Alves diante das Arcadas.

Franz Kafka teria reescrito todos os seus livros, se tivesse, por algum imenso azar (ou sorte, sabe-se lá), visitado a sede central do Serviço Funerário da Prefeitura Municipal de São Paulo.

Está em obras.

Caminha-se por corredores tortuosos, a perder de vista. Todo o trânsito da rótula central de São Paulo está passando por cima de nossas cabeças.

Um funcionário olhou para mim, perguntou o que eu queria, comecei a explicar, e ele, gentilissimamente, me indicou: “É no Cartório. Siga em frente!”

No cartório – uma única portazinha mínima dando acesso a um salão comprido, com umas 20 mesas, uns seis funcionários –, o funcionário que me atendeu foi, como todos os que eu havia encontrado antes, gentilíssimo. Expliquei o que queria. Mostrei a Nota de Contratação de Funeral, e expliquei – mal explicadamente – que na repartição da Prefeitura na Galeria Prestes Maia haviam me informado que a Prefeitura não aceitaria aquele documento para fins de eu poder receber o auxilio funeral a que minha irmã tinha direito.

O funcionário, que foi comigo de gentileza extrema, disse uma frase impressionante, me corrigindo:

– “Lá é Prefeitura, aqui também é Prefeitura. Eles estão errados por não aceitar isso que você tem aí.”

Acho que tentei pedir desculpas, explicar que eu sabia que ali também era tão Prefeitura quanto o Departamento de Recursos Humanos – DERH – Seção Técnica de Atendimento – DERH 33. Mas ele não estava preocupado em me ouvir. Explicou que eu teria que pagar uma taxa de R$ 8,00. Tirei a carteira do bolso, reparei que estava com apenas R$ 15, não poderia pegar táxi quando saísse dali, se é que sairia dali algum dia – mas ele me deu um papelzinho, e informou: – “Pagamento no Banco do Brasil. Agência aí na Brigadeiro, logo acima, algumas quadras”.

O sol estava violento, às 15h30 do horário de Brasília, 14h30 no horário do sol.

O Banco do Brasil mais próximo fica a mais de quatro quadras acima na Brigadeiro Luiz Antônio. Acima, é bom lembrar. A Brigadeiro Luiz Antônio, naquele trecho, une, ou separa, o Centro da Cidade, por onde passa escondido hoje o córrego Anhangabaú, do Espigão da Paulista, nosso continental divide.

Mas aí estou fugindo do assunto.

Subi suando bicas as quatro quadradas da Brigadeiro. A volta foi fácil: para baixo, todos os santos ajudam.

De novo no Cartório do Serviço Funerário, entreguei o comprovante do pagamento feito ao Banco do Brasil da taxa de R$ 8,00. E então me entregaram um documento que reproduz exatamente tudo o que está no documento fornecido pelo funcionário do Cemitério do Araçá – mas, no alto, traz o título Certidão de Despesas de Funeral. É uma Certidão, não uma Nota.

Teoricamente, se eu perder mais uma tarde inteira indo de novo até a Galeria Prestes Maia, se não estiver faltando mais nada, e se entregar todos os documentos direitinho, é até possível que a Prefeitura me entregue um cheque administrativo do Banco do Brasil com uma quantia que pague não exatamente o que o Geraldo pagou no Araçá, mas uma percentagem pelo tanto que era o salário da Nilze.

Se tudo der certo, todos os santos ajudarem, pode ser eu receba uns R$ 1.000,00.

***

O caso dos bancos é seguramente ainda mais óbvio, mais simbólico.

Fiz várias cópias autenticadas da certidão de óbito da Nilze. Sei que o país é cartorário, burocrático.

E aí fui à agência do Banco do Brasil para fechar a conta. Nilze não deixava por menos, e a conta dela no Banco do Brasil era na agência da esquina de Paulista com Augusta. O prédio em que a Presidência da República tinha escritório, e Rose Noronha, aquela trolha horrorosa, pavorosa, chefiava a representação da Presidência da República em São Paulo.

Estava todo seguro de mim, porque tinha a cópia autenticada da certidão de óbito dela, mais o CPF, mais o RG, mais tudo da Nilze. Era apenas uma questão de bom senso: a correntista havia morrido, e eu estava ali para, gentilmente, informar ao banco que a conta deveria ser fechada. E mais: eu era o declarante do atestado de óbito, e então não tinha dúvida alguma.

– “O Banco do Brasil não admite cópia” – sentenciou a funça.

Confesso que no primeiro momento não consegui acreditar naquilo. Mostrei o selinho cartorial que indicava que era cópia autenticada. Ela não quis ouvir minhas argumentações, apenas decretou que aquele caso acabava ali: o Banco do Brasil não admite cópia.

E, qual sargento, deu voz de comando para mim: – “ O senhor me traga o original e também…”

Não ouvi as palavras seguintes.

Pensei bem depressa: que mal fará à minha irmã morta ter uma conta que continua aberta em seu amado Banco do Brasil? Se houver débitos, de quem o Banco do Brasil vai cobrar? Dela? Ela está esparzida, que eu saiba, na Zona Leste, à qual, pelo que eu saiba, só foi depois de morta. O Banco do Brasil vai cobrar de mim? Hê hê, sou bobão, mas não sou idiota: jamais teria conta no Banco do Brasil. Então, quem perde, se a conta da morta Nilze ficar aberta para sempre?

Não sou eu. Nem é a Nilze.

Falei para a funça concursada e por isso muito cheia de si, muito segura de que está acima de qualquer brasileiro que venha conversar com ela:

– “Não vou voltar aqui nunca jamais. A conta vai ficar aberta para sempre. Foda-se!”

A funça me olhou como todos os funças públicos ou de órgãos públicos olham  os brasileiros não funças – com imenso desprezo.

Não ocorreu a ela que ela estava cometendo um ato que traria um pequeno prejuízo ao Banco do Brasil que paga o salário dela.

***

Dias antes, eu havia ido à agência do Itaú em que Nilze tinha conta.

Levei 15 minutos para fechar a conta dela.

O funcionário que me atendeu disse que não era necessário eu deixar com eles uma cópia autenticada do atestado de óbito. Uma cópia simples bastaria.

***

Esta pequena história pessoal explica, acho eu, em detalhes, por que eu não creio na propriedade estatal dos meios de produção, em Estado forte, em Estado grande. E por que eu acho que quem defende esse tipo de coisa, dizendo que defende o povo, está mesmo é dando apoio aos déspotas que são ou gostariam de ser donos do Estado, os Hitlers, os Stálins, os Lulas, os Kirchners, os Castro. Todos, todos eles são iguais.

12/12/2015

5 Comentários para “Minha irmã Nilze e o Estado Grande”

  1. Querido Sergio,
    já passei por tantos cartórios e funças que nem quero me lembrar. Por mim, o Estado só seria responsável pela Segurança Pública e pelas fronteiras. O resto seria de empresas privadas.
    E cartórios seriam fechados para sempre.
    Nos países ao norte do Equador eles nem sabem o que é isso e… no entanto, as coisas lá funcionam…
    Um abraço,
    MH

  2. Querido Sérgio.
    Tardiamente fico sabendo do falecimento da Nilze, que conheci e a seus recortes de jornal e objetos que você chama de suportes físicos. Merece inegável descanso pois se livrou da burocracia estatal.
    Tardiamente você verifica a ineficiência estatal e reproduz a luta pelo controle deste mesmo poder. Os Estados do norte respeitável amigo não são melhores são apenas mais eficientes no trato da coisa pública transformada em privada, comparar BB com Itaú é uma ingenuidade, coisa que os comunistas eternos sabem distinguir. Para que o Estado? Para morrer não precisamos de selo e cartório, morre-se e basta, sucessores e colaterais que lutem contra o Estado e que os mortos descansem em paz.
    A saudosa Nilze está agora penso eu, ao lado de quem cantava:Imagine there’s no countrie.

  3. GOLPE DE ESTADO – CONVOCAÇÃO

    Agora é com as ruas e o Parlamento
    09/12/2015 – 01h15 POR José Aníbal no Blog do Noblat.

    “Na pesquisa Datafolha de final de novembro, 65% dos brasileiros achavam que o Congresso deveria afastar Dilma, ante 30% contrários. Quanto ao efetivo afastamento de Dilma pelo Congresso, 56% achavam que não iria acontecer e, 36% achavam que sim.
    Dia 13, às 13h, fora o 13. É um modo engenhoso de dizer que não queremos a continuação do tensionamento e ameaças que marcam o estilo petista. O país não acredita que o modo do PT de governar, com a alucinação da perpetuidade e do hegemonismo, seja capaz de nos tirar da crise. E não é, como vimos ao longo deste ano. Chega. Não vamos nos conformar. Vamos nos manifestar. 13, às 13h, fora 13. O Parlamento certamente fará sua parte”.

    A intolerância é a imbecilidade à procura de uma multidão. É o espetáculo da estupidez com entrada franca, mas todos pagam caro ao final,

  4. Servaz, seus padecimentos valem pela qualidade do texto que nos apresentou.
    O caso me lembrou certa vez em que fui ao Serviço Funerário, ou local semelhante (faz tempo…), entrevistar o diretor.
    A funça estava em sua mesa, no começo de um corredor. Me anuncio, e ela: “O senhor trouxe a autorização?”. Decidiu que sem autorização por escrito não haveria entrevista.
    Dei-lhe uma dura, ela caminhou por um corredor e entrou em uma sala. Em segundos, o diretor sai da sala: “Entre, jornalista, entre”.
    E para ela: “Traga água e café aqui para o jornalista”.

  5. Inacreditável, mas é desse jeito mesmo.
    Você ainda teve sorte de ter pego funcionários simpáticos e prestativos, porque na maioria das vezes eles atendem de má vontade, como se estivessem fazendo favor. Me dá agonia ver a ociosidade em que trabalham, e a cara quase de nojo que fazem quando chega alguém precisando de seus ~preciosos~ serviços, e obrigando-os a parar de mexer no celular ou no computador para fazer o atendimento.
    “A funça me olhou como todos os funças públicos ou de órgãos públicos olham os brasileiros não funças – com imenso desprezo.” Falou tudo, é bem assim.
    E como custam caro os serviços funerários! Ainda bem que tem esse reembolso aí, ainda que parcial.

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