Nos anos 80, ainda no começo da corrida do ouro que trouxe para o então Território Federal mais de 50 mil aventureiros, eu acabara de me instalar em Boa Vista como correspondente do Estadão, JT e Agência Estado quando conheci Zé Mato Grosso. Negro forte, troncudo, sem pescoço, atacado pela gagueira, me contou que há 17 anos vivia o sonho da abertura dos grandes garimpos em Roraima onde, dizem, estão as maiores jazidas de ouro e de diamantes do Brasil.
Já beirando os 60 anos, fazendo um biscate aqui, outro ali, alimentava uma velha esperança: “Meu patrão, ainda bamburro antes de morrer. E se puder escolher, morro num garimpo”. Num dos nossos encontros passei a tarde inteira conversando com Zé Mato Grosso, apelido que veio dos seus tempos de soldado em Porto Murtinho, lá no Mato Grosso do Sul. Nunca soube seu verdadeiro nome, mesmo porque jamais lhe perguntei. Para homenagear a memória desse herói garimpeiro, que em 1988 desapareceu na região do morro Caveira 2 e nunca mais foi encontrado, conto aqui dois dos seus causos, num português, claro, que corresponde à sua fala arrastada, entrecortada, quase onomatopáica.
O primeiro deles:
“Um dia me deu a louca e resolvi entrar sozinho no mato à procura de um garimpo. Foi lá pelas bandas do Paapiú, acima do Rio Catrimani. Coisa doida, 12 dias de pernada, descendo e subindo serra e nada de achar uma faísca sequer. A comida eu comi toda já no meio do caminho e o jeito foi me contentar com macaco e piranha. que isso lá tem demais. A certa altura, todo mordido de bicho, picado por nuvens de piuns e carapanãs, o corpo já se abrindo em feridas, bateu-me o desespero e resolvi puxar no caminho de volta. Na descida fui deixando o resto dos trecos: panela, rede, bateia, os cambau. Só fiquei mesmo com o terçado, pois sem ele não havia como abrir picada na direção do Apiaú. Depois de muito sofrer, uma visão me encheu os olhos: a venda do velho Pascoal, parada de todo aventureiro que se arriscava por aquelas bandas. Sem dinheiro, ofereci o terçado. Abastecido de cachaça, fui procurar um canto para esquecer as amarguras. Eu precisava de um porre. Apeei o corpo à sombra de um caimbezeiro no meio de uma caixa de empréstimo, deitei e bebi. Fui bebendo devagar, recuperando a vida que já ia quase fugindo de dentro de mim. O diabo é que, de tão bêbado, nem vi a chuvarada que foi invadindo a caixa tarde a dentro. Sonhei que estava no meio de uma cachoeira toda cravejada de diamantes e a água que caia parecia ouro derretido. Para encurtar a história, quem me salvou foi Joaquim da Rosa, que tinha um sítio nas redondezas. Passando na beira da estrada, estranhou ver um cabra estirado feito morto no meio daquela lagoa, só com o nariz de fora. Patrão, eu estava morrendo afogado e nem sabia”.
A segunda história de Zé Mato Grosso:
“Lá pelo começo dos anos 70, seu Toinzinho resolveu ajuntar uns cabras para pesquisar um garimpo lá para as bandas da serra das Surucucus. Fui junto. A gente era cinco mais seu Toinzinho. Minto: ele levou um guianense, preto feito eu. Subimos o rio, chegamos ao barranco escolhido e montamos o acampamento. O tal preto era o cozinheiro. Aliás, sua comida era divina, igual de restaurante. Seu Toinzinho, patrão de não dar moleza, fazia a gente trabalhar de sol a sol, com tempo só pra comer e pras necessidades. Era acordar, comer, trabalhar, ir no mato, trabalhar, tomar banho no rio, comer e dormir. O estranho era que o cozinheiro não dormia no acampamento. Na noite de sexta-feira esperei o pessoal dormir e resolvi descobrir aonde ele ia. Esgueirei-me pelas árvores, andei uns cem metros e ouvi um palavreado estranho, em língua estrangeira, e fui ver de onde vinha. Dei de cara com uma clareira e quando as nuvens deixaram livre a luz da lua, me apavorei. O guianense fazia uma reza, quase um lamento, quando, de repente, a fogueira explodiu e de dentro do fogo saiu num bicho tão feio que corri feito louco, atravessei o acampamento feito um raio e fui bater na fazenda de Zé Ferreira. No dia seguinte, quando chegou trazendo a turma, mas sem o cozinheiro, seu Toinzinho me explicou: para cozinhar como cozinhava o cabra só podia mesmo ter parte com o capeta…”.
Plínio Vicente é jornalista. Trabalhou no Jornal da Cidade, de Jundiaí, e em O Estado de S. Paulo, do qual foi correspondente em Roraima, para onde se mudou em 1984. É editor do diário Jornal de Roraima em Boa Vista e escreve semanalmente uma crônica sobre fatos do cotidiano.
A partir de agora, o 50 Anos de Textos passará a publicar os trabalhos de Plínio.
Uma delícia. Bem vindo Plinio Vicente.
Amigos, conheço o Plínio de outros carnavais, e asseguro que vamos estar muito bem servidos de belas histórias que ele viveu, ou colheu, em todos esses anos de Roraima. Essa de hoje dá a medida. O Plínio me recebeu e ajudou muito quando estive em Boa Vista, lá se vão bons anos, para matéria justamente sobre garimpeiros. Bem-vindo, Plínio.