“Sonhei um sonho que me deixou triste”

zzdylan

“Viajando num trem rumo ao Oeste, dormi e sonhei um sonho que me deixou triste, sobre mim mesmo e os primeiros poucos amigos que tive. Com os olhos meio úmidos observei a sala em que eu e meus amigos passamos muitas tardes, onde juntos nos protegemos de muitas tempestades, rindo e cantando até as primeiras horas da manhã.”

E depois:

“Com corações assombrados pelo calor e pelo frio, nunca pensamos que poderíamos ficar velhos. Achávamos que poderíamos ficar ali para sempre numa boa, mas nossas chances na verdade eram uma em um milhão.”

“Era tão fácil distinguir o preto do branco quanto o errado do certo, e nossas opções eram poucas. Jamais ocorreu a idéia de que a estrada em que caminhávamos poderia se quebrar ou se partir.”

E mais:

“Tantos anos vieram e se foram, muitos jogos foram perdidos e ganhos e muitas estradas foram caminhadas por muitos amigos, e nunca vi de novo nenhum deles.”

Para concluir:

“Eu gostaria, eu gostaria, eu gostaria – em vão – que pudéssemos nos sentar naquela sala outra vez. Daria uma fortuna se nossas vidas pudessem ser daquele jeito de novo.”

E não é só o texto. O texto vem envolvido por uma melodia maravilhosa, deliciosa, doçamarga de doer.

Bob Dylan tinha 22 anos quando fez essa canção, “Bob Dylan’s Dream”.

Como pode uma coisa dessas ter sido escrita – com uma beleza infinitamente maior do que essa tradução tosca, grosseira, mostra – por um fedelho de 22 anos de idade?

 

***

Tenho pavor de ler o que escrevi quando era bem fedelho, mal saído dos cueiros, como se dizia muito antigamente.

Estamos organizando um encontro da nossa turma de ginásio – 50 anos que nos formamos no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais. Temos trocado mensagens sobre a vida o amor a morte. Por causa disso, fui obrigado a tomar coragem e ir atrás do meu diário de adolescente, e de um texto que cometi sobre a viagem que fizemos para comemorar o final do ginásio. Fiquei chocado com tanta infantilidade.

Alguma boa alma poderia argumentar que o texto de quem tem 14 anos é infantil.

Não é bem verdade. Meu texto era infantil, mas o de uma colega (por quem, aliás, tive uma paixonite), que está revelando para nós seu diário de 1964, é 300 vezes mais maduro do que o meu. Mil vezes.

***

Como pode um fedelho de 22 anos escrever desse jeito aí acima?

Com 22 anos, ele se movimenta para o futuro, se imagina velho, e se lembra do que sonhavam ele e os amigos nos tempos da juventude.

Como é possível isso?

Tá: entre os 14 e os 22 anos de idade muita água passa sob as pontes. Lot of water under the bridge, como ele mesmo afirmaria na canção “Times have changed”, de 2000. Verdade.

E há distâncias imensas entre gente como a gente, ordinary people, e um grande artista.

Verdade também.

Mas nem isso explica o brilho do poema que é “Bob Dylan’s Dream”, que o cara escreveu quando era um fedelho de 22 anos de idade.

Faz muito tempo que eu e Mary brincamos que Dylan não é deste planeta. É um MIB, é como um dos personagens do MIB. Veio do outer space (expressão estranha, essa, o espaço mais de fora). Veio de uma civilização muito mais adiantada do que a nossa, como o Klatu do clássico O Dia em que a Terra Parou, que Robert Wise lançou em 1951, um ano depois que nasci, dez anos depois que Dylan pousou na Terra. Veio nos ensinar algumas lições, a nós, pobres terráqueos de merda, seis mil anos de civilização e ainda afundados em guerrinhas tribais – e, agora que desenvolvemos muita tecnologia, lutando ferozmente para destruir o ambiente, o Planeta.

Faz parte desta nossa natureza de criaturas inferiores, de um planetinha obscuro do fundo da galáxia, procurar explicações lógicas. A única explicação lógica para a genialidade de Dylan é esta: como Klatu, ele veio de outro planeta, de uma civilização muito mais desenvolvida, como aquela que no Contato de Carl Sagan e Robert Zemeckis enviou uma mensagem de paz para a Terra.

***

Das gravações que conheço de “Bob Dylan’s Dream”, a mais bela, sem sombra alguma de dúvida, é a de Peter, Paul and Mary, que está no disco deles de 1967, Album 1700. É assombrosamente bela.

Há outras, belas também. O inglês Bryan Ferry, que parece tão fã de Dylan quanto eu, fez um cover interessante. E a primeira gravação do próprio Dylan, no seu segundo disco, The Freewheelin’ Bob Dylan, em cuja capa ele aparece caminhando numa rua do Village, em Nova York, com a então namorada, Suze Rotolo, também é ótima.

50 anos atrás, um colega do Aplicação me deu de presente um gigantesco desenho de Peter, Paul and Mary. Baseou-se em uma das fotos que está, creio, na contracapa do segundo disco deles, In the Wind, de 1963 – uma foto tirada de trás deles, em que vemos os vultos dos três pelas costas, numa apresentação ao vivo. Recriou a foto com crayon, acho.

Mantive comigo durante décadas o desenho. É possível que esteja guardado ainda hoje, em algum lugar na selva de papéis deste apartamento.

É muito estranho pensar em canções que a gente conhece faz meio século, desenhos que a gente tem faz meio século, canções de que gostamos faz meio século, amigos ou colegas que a gente tem faz meio século. “We never thought we could ever get old.”

Quando Dylan já era um pouquinho mais velho, ou já havia passado um pouquinho mais de tempos entre nós, terráqueos, escreveu em “My Back Pages”, de 1964: “Ah, but I was so much older then,

I’m younger than that now”.

Ah, mas eu era tão mais velho, naquele tempo. Sou mais jovem do que aquilo agora.

***

O antigo amigo que fez o desenho de Peter, Paul and Mary com crayon não irá ao encontro de 50 anos de formatura do ginásio da turma de 1964 do Aplicação. Éramos ali um grande grupo de garotas e garotos inteligentes, mas esse aí, o mais brilhante de todos nós, artista genial, tornou-se faz tempo um eremita, um ser solitário. Uma espécie assim de nosso J. D. Salinger. Troquei mensagens com o filho dele: ele me garantiu que não tem qualquer chance de o pai aparecer para o nosso reencontro à la Peggy Sue Got Married, o filme em que Francis Coppola usou o título da canção de Buddy Holly.

Nos tempos do Aplicação, eu ainda não conhecia Buddy Holly. Acho que nenhum de nós conhecia.

Mas estará lá, no encontro dos agora velhinhos que terminaram o ginásio no ano do golpe, no ano dos Beatles nos EUA, um ano depois de JFK, a garota dos olhos de ouro, que naquele passado longínquo me pediu para fotografá-la no parque para que ela pudesse enviar as imagens para o namorado felizardo e perseguido pela ditadura recém-instalada. Estará lá a professora que virou amiga para sempre, foi madrinha do meu primeiro casamento, desaprovou o segundo, gostou do terceiro. Também estarão lá, com toda certeza, o único de toda a turma que vejo sempre, e o de quem em 1964 me sentia muito próximo e que nunca mais revi. Estará lá a moça que escrevia muito melhor do que eu, e por quem numa noite tive uma paixonite que ficou para sempre silenciosa (até agora). É possível que esteja por ali também aquela outra, mais magrinha que as modelos de hoje em dia, que admirei desde sempre, e que depois viria a se casar com um dos mais brilhantes realizadores de cinema do país, e por quem também bateu forte meu coraçãozinho adolescente.

Eu me apaixonava por todas as meninas belas. E havia muitas, na turma.

Escrevi muito, ao longo da vida, e tenho escrito cada vez mais, agora que tenho mais tempo, depois que parei de copidescar os textos dos outros. Mas nunca, jamais, em tempo algum, consegui ou conseguirei escrever nada nem de longe tão belo quanto o sonho do fedelho Dylan.

Fazer o quê? Paciência. Não sou MIB, não vim de outro planeta. Sequer sou poeta, nem dos ruins.

Não sou o mundo: sou só de Minas Gerais.

5 de abril de 2014

Bob Dylan’s Dream

 (Bob Dylan)

While riding on a train goin’ west

 I fell asleep for to take my rest

 I dreamed a dream that made me sad

 Concerning myself and the first few friends I had

 

With half-damp eyes I stared to the room

 Where my friends and I spent many an afternoon

 Where we together weathered many a storm

 Laughin’ and singin’ till the early hours of the morn

 

By the old wooden stove where our hats was hung

 Our words were told, our songs were sung

 Where we longed for nothin’ and were quite satisfied

 Talkin’ and a-jokin’ about the world outside

 

With haunted hearts through the heat and cold

 We never thought we could ever get old

 We thought we could sit forever in fun

 But our chances really was a million to one

 

As easy it was to tell black from white

 It was all that easy to tell wrong from right

 And our choices were few and the thought never hit

 That the one road we traveled would ever shatter and split

 

How many a year has passed and gone

 And many a gamble has been lost and won

 And many a road taken by many a friend

 And each one I’ve never seen again

 

I wish, I wish, I wish in vain

 That we could sit simply in that room again

 Ten thousand dollars at the drop of a hat

 I’d give it all gladly if our lives could be like that

3 Comentários para ““Sonhei um sonho que me deixou triste””

  1. Me pega pra gente caminhar, vô!
    Pare de copidescar, escreva mais 50 anos depois.

  2. Sérgio,Sérgio.
    Não estaremos todos, é verdade. Mas alguns, que também somos. E vai valer a pena, sempre vale. Até desencontros costumam valer.
    Beijo
    Vivina

    PS. Desaprovei seu segundo casamento? Chego a ter pena de mim.

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