Um quê de Vietnã

Quem não conhecia Roraima lá pelos idos dos anos 80 e chegava pela primeira vez a Boa Vista surpreendia-se com a cidade. Mas se nela havia uma face bela, que encantava, também havia outra, horrenda, que assustava.

O que mais encantava o visitante era mesmo o jeito organizado do centro da cidade, em forma de leque, tendo o Rio Branco como base, as varetas representando avenidas convergindo para uma grande praça, com coreto e tudo mais.

Entretanto, assim como se deu com Brasília, Boa Vista foi vendo seu desenho urbanístico original ser deturpado à medida que o poder público, por negligência ou por conveniência, permitiu a descaracterização do projeto. Avenidas que divergiam a perder de vista no lavrado ainda indomado foram morrer nas invasões e bairros criados sem qualquer planejamento.

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No entanto, quem já naquela época morava no centro levava vida confortável, em residências de boa construção, arquitetura mesclando o colonial lusitano e o setecentismo italiano. Os quintais sempre foram uma grande surpresa para forasteiros vindos de cidades grandes. Como se fossem pequenas chácaras floridas, tinham fruteiras de todo tipo fazendo a alegria dos passarinhos e espaços generosos transformados em playgrounds pela molecada.

Mas era e ainda é o centro que abriga a maior mancha negra da pobreza. Quem desce para a parte antiga da cidade, onde está o acervo mais rico do seu patrimônio histórico, vai dar no Beiral. Em meados dos anos 80, um aglomerado de construções em madeira pelo menos três meses por ano era, e ainda é, invadido pelas águas do Rio Branco. Área de não mais que três ou quatro ruas e vielas, na qual, em que pesem os muitos projetos e promessas, ninguém teve peito de botar a mão, removendo um substrato da sociedade formado por todo tipo de gente e dar-lhe condições de viver com dignidade em lugar melhor.

Certo dia hospedei um velho amigo dos tempos de São Paulo – Thomas Martin, ex-agente da CIA, com passagem por Saigon, depois diplomata servindo na Embaixada americana em Georgetown e por ultimo no Departamento de Estado em Washington até se aposentar. Ele gostava muito da cidade, mas então resolvi mostrar-lhe que Boa Vista não era tão-somente aquela beleza que não cansava de elogiar.

Lá pelas 9 da noite embiquei minha velha Caravan pela Avenida Amazonas na direção do Beiral. Sabia de antemão que o impacto seria grande. Zona do baixo meretrício, mulheres mostravam seus produtos de consumo nas soleiras das portas, enquanto crianças corriam pelos becos numa inocência comovente, misturando seus gritos de alegre algazarra com os gemidos de prazer que vazavam das alcovas imundas e fétidas instaladas nos quartinhos de aluguel.

Nos cantos, mal escondidos da claridade de lâmpadas de luz bruxuleante que atraía besouros e mariposas, insetos do verão, casais se esforçavam para demonstrar amor e paixão em abraços suados e esfregões libidinosos. Caminhoneiros, garimpeiros e peões, guianenses, venezuelanos e roraimenses, homens sugando carinho de lábios femininos insensíveis, carência que traziam de longas jornadas de solidão. E as cópulas se sucediam quase que em permanente exposição, compondo cenas surreais que contrastavam com a simetria da cidade e com a noite das famílias tradicionais que viviam lá mais em cima, no leque colorido de verde-amarelo de um Brasil ainda desconhecido.

Cinquentão, vida intensamente vivida mundo afora, com incursões pelo coração de uma guerra genocida, Martin não disse palavra até nos afastarmos do Beiral. De volta às luzes das avenidas bem traçadas, suspirou fundo e balbuciou:

— Estou saindo de uma longa noite no Vietnã…

Esta crônica foi originalmente publicada no Jornal de Roraima.

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