Seres de casa, seres de apartamento

Há seres de apartamento e seres de casa, da mesma maneira, ou quase, como há flamenguistas e fluminenses, tucanos e petistas. Como no Chile de 1973 havia os pró-Allende e os contra. Como há os Tea Party e a ala mais radical do outro lado dos democratas. Os a favor e os contra a pena de morte, ou ao direito ao aborto.

São seres díspares. Mais ainda – opostas, antípodas. Não se entendem, não falam a mesma língua, não têm o mesmo código de valores – muito antes ao contrário.

Soube hoje que um velho e queridíssimo amigo fechou negócio, vendeu a casa. Vai agora atrás de comprar um apartamento: “Aquele que tem paisagismo de vitrine – é só para olhar. Ambiente clean, monótono e insípido, mas não posso me queixar. Vou viver na última moda.”

Tenho pena de meu amigo, esse radical ser de casa que será agora obrigado a viver em apartamento. Tanto quanto teria de mim mesmo se, por algum motivo qualquer, me pusessem para morar numa casa.

De vez em quando tenho a experiência de dormir em uma casa. É coisa meio rara, ultimamente, já que tenho viajado cada vez menos, saído de casa cada vez menos, graças ao bom Deus. Mas acontece, e, nas últimas experiências, fiquei com mais certeza do que nunca de que viver em casa é enlouquecedor.

Viver em casa implica em (entre muitíssimas outras coisas, do tipo cuidar do telhado, do jardim, das infiltrações, dos canos, do cachorro, do guarda noturno, do guarda diurno, etc, etc, etc, etc) passar no mínimo meia hora, talvez uma hora inteira, a cada noite, fechando coisas. As cinco travas da porta principal têm que ser checadas. As janelas do banheiros têm que ser hermeticamente fechadas – embora isso não impeça, de forma alguma, um assalto.

Meia hora, uma hora inteira, fechando coisas! Pois se já me faltam minutos ao longo dos dias para as tantas coisas que quero fazer!

Me lembro muito bem do final de noite em que, ao ajudar a fechar as 385 coisas que é necessário fechar na belíssima casa da minha cunhada, no Morro da Cruz, em Floripa, tive a absoluta, definitiva certeza: não moro em casa nunquinha. Nem se ganhasse sozinho na Mega-Sena e pudesse comprar um palacete – o que seria bastante difícil, levando em conta que jamais jogo na Mega-Sena ou em qualquer outro dos jogos de azar patrocinados pela Caixa Econômica neste país que proíbe os jogos de azar.

Sou um ser de apartamento.

         ***

Mas entendo que há os seres de casa, que são diferentes de mim, que são meus opostos, meus antípodas, assim como os palmeirenses, os argentinos (quando se trata de futebol), os petistas (quando se trata de qualquer tipo de tema que já tenha sido falado neste planeta, ou do qual venha a se falar um dia).

Tenho, no entanto, imensa simpatia pelos seres de casa que são obrigados a se trancarem num apartamento.

Porque não é o habitat natural deles.

É como trancafiar numa cela – mesmo que grande – um animal selvagem acostumado a correr centenas e centenas de quilômetros por dia.

         ***

Esta anotação não significa nada, não – é só um alô para o meu amigo, ser de casa, que vai ser enjaulado.

É também um treinozinho, um reencontro com meu teclado.

Sabe aquela coisa de pianista iniciante que vai fazendo escala após escala? Datilógrafo que vai treinando o asdfg?

Passei uns cinco dias – deliciosos – em Belo Horizonte, a minha cidade de origem, e lá tive momentos de magníficos prazeres. Tive uma festiva, belíssima reunião de reencontro com os colegas da quarta série de ginásio do Colégio de Aplicação, 50 anos, meio século depois da formatura. E ainda ganhamos, Mary e eu, o presente, dado por Márcio e Dona Lúcia, de ver o nascer da superlua do domingo num restaurante delicioso perdido no meio do mato e das montanhas de Minas, em São Sebastião das Águas Claras.

Cinco dias maravilhosos – mas longe do meu teclado.

Confesso que sinto imensa alegria ao voltar para meu apartamentozinho, ser de apartamento que sou, e ao poder treinar no meu próprio teclado a canção meio sem sentindo que é minha eterna tentativa de juntar palavras.

11 e 12/8/2014

17 Comentários para “Seres de casa, seres de apartamento”

  1. Que bom ter você de volta juntando as SUAS palavras.
    Concordo com você sobre os cuidados de uma casa, telhados, jardins, trancas, etc… Seu amigo vai sentir falta destas coisas!
    A lua de domingo estava toda, inteira no meu quintal, uma ladra invadindo a propriedade privada.
    Pala manhã eu e Loudes procuravamos distinguir os pássaros que vieram roubar comida no jardim, eram canários, viuvinhas, coleiros, beija flores, ao som de bem-te-vis.
    Somos seres díspares com toda a certeza!
    Bom retorno SerVaz.

  2. Servaz, belo texto, belo fecho.
    Acho que seu amigo aprenderá a gostar da qualidade de vida em apartamento, a fila do elevador, que propícia bons bate-papos, descer à portaria para pegar a pizza, que a essa altura estará fria, e, até você esperar o elevador e voltar para o apê, gelada.
    Outra delícia é a reunião de condomínio, aquele encontro de pessoas amáveis falando sobre assuntos amenos como a reforma do encanamento. O preço do condomínio vai aumentar, mas a vida é assim mesmo. E há aquele recinto formidável que é o salão de festas, ótimo para aniversários com toda a família, amigos e vizinhos, com a criançada correndo e gritando, e seu cunhado bêbado. Os apartamentos modernos são funcionais. Nada de desperdiçar espaço. O banheiro, por exemplo. Quem já esteve em banheiro de avião não terá problema para se adaptar. Por fim há vista, da janela. Aquela que você sempre adorou, mas deu azar e perdeu com a construção dessa torre de vinte andares do outro lado da rua.

  3. Miltinho, você adivinhou quem é o meu amigo ser de casa que acaba de vender a casa dele?

  4. E espero que o apartamento do seu amigo Valdir seja no máximo no segundo andar. A partir do terceiro andar será um suplício carregar sessenta anos pela escada. Vou torcer que os apagões da Dilma e a falta de água do Alkimim não se transformem em racionamentos diários. Torço ainda que a vizinha do andar de cima não de salto alto, toc toc pra cá, toc toc pra lá.

  5. Acho que sou da espécie híbrida, caríssimos Sergio Vaz, Valdir e Miltinho. Moro com minha mulher em uma casa antiga, com quintal de 1.200 metros, muitos quartos e seis banheiros, tudo precisando de manutenção o tempo todo. Muita despesa para abrigar apenas um casal? Resolvi isso desenvolvendo habilidades de eletricista, encanador, marceneiro e consertador de coisas quebradas em geral. Só que nessas minhas aventuras já caí duas vezes do telhado. Na primeira, tentava consertar uma lâmpada, quando um enxame de abelhas atacou a minha orelha. Na segunda, escorreguei após consertar a caixa d’água. O resultado da última foi uma costela quebrada e o cóccix fraturado. A vantagem é que quase aprendi a dormir em pé, já que não existe outra posição confortável quando se está com a costela e o cóccix quebrados. A lista de coisas pendendes de conserto ou reforma continua interminável. E, muitas vezes, sinto dor no bolso por ter que chamar um profissional mais gabaritado e careiro. Em compensação, não tenho que me preocupar com o aumento do valor do condomínio, nem com o xixi das piscinas coletivas. Adoro também o excesso de espaço, colher mangas e jacas no quintal, fazer churrascos para muitos amigos e poder fazer barulho à noite sem incomodar os vizinhos. Mas você tem razão quanto à segurança: qualquer barulhinho à noite no quintal é preocupante. Já tive um pequeno poodle e um pequeno maltês, mas eles se mostraram muito pouco confiáveis como cães de guarda: só latiam contra os miquinhos que se apossaram da bananeira e da mangueira. Também nunca podemos deixar a casa vazia ao viajar. E viajo frequentemente para Maceió, como você sabe, Sérgio. Lá vivo na condição de ser de apartamento durante quatro ou cinco temporadas por ano, desde 2009. Descobri que na hora de voltar para Brasília, apenas tranco a porta, sem maiores preocupações, deixando a segurança por conta do porteiro. Além disso, fora o condomínio, o tal apartamento quase não me dá despesas. Nem faz barulhos estranhos de madrugada. Descobri também a delícia que é sair à noite sem precisar deixar várias lâmpadas acesas, checar o alarme, as câmeras e a cerca elétrica. Seria eu um raríssimo ser híbrido, como uma mula, que, aliás, também dorme de pé? Ou vou acabar virando um ser de apartamento? Não seria isso traição?

    PS: Mesmo num treinozinho de reencontro com o teclado, brincando com o seu amigo Valdir, você prova ser um excelente juntador de palavras, Sérgio.

  6. Além de juntar as palavras muito bem, Sérgio mostra-se um sensível pauteiro, só falha às quintas feiras quando a pauta é do PIG.
    O texto sobre os opostos entre os moradores de casas e apertamentos (sic) veio trazer de volta, em torno da pauta, os amigos Valdir e Luiz Carlos. Tudo o que foi dito merece reflexões variadas, prazeres e incomodos se
    alternam, mas certamente as moradas se definem através das pessoas que as habitam. Tenho boas lembranças da tarde que passei no apartamento do Sérgio. Na época era ferrenho petista, mesmo assim fui antarticamente (de cervejas)recebido num apartamento tornado caloroso e confortável pelos seus moradores.
    Casa ao AP, cada qual, sabe o que minha velha mãe sempre dizia: “meu reino meu lar, peidos para o ar
    Abraços, vou neste momento rastelar o meu gramado.

  7. Que agradável surpresa! Meu textinho totalmente despretensioso, meio bobo, acabou provocando comentários deliciosos, maravilhosos. Muito melhores do que o texto original. Obrigado, Valdir, Miltinho, Luiz Carlos!
    Um abraço!
    Sérgio

  8. Sérgio, Miltinho, Valdir, Luiz Carlos:

    sinto estar chegando meio atrasada a essa simpática reunião com ausência total de condôminos.
    Encantada com tudo que li, peço licença pra juntar – e ajuntar – minhas palavras, certa de que, seres de casas ou apartamentos, o que nos salva é a lua inundando o quintal ou atravessando a janela; é o pasarinho ciscando lá fora ou piando aqui dentro; é o texto de um amigo se preocupando com aquele que vai mudar de casa – e da casa -; é o afeto que cerca tudo, ah, tô perdendo o rumo?
    Juntar palavras não é nada fácil, Sérgio. Eu estava indo até razoavelmente, mas o Flamengo acaba de fazer um gol no Galo, de virada, e fico por aqui, quase meia noite, ninguém é de ferro, embora devesse, esses times fazem a gente sofrer além da medida, bom mesmo foi fazer parte daquela festa dos 50 anos da sua formatura, eu nem me lembrava mais como era Belo Horizonte.
    Beijo juntador de palavras
    Vi

  9. Aí? Tá vendo como são as coisas? Às vezes boto no Facebook uma coisa que acho que vai ter um grande impacto – e nada acontece. Já este meu textinho despretensioso tá reunindo aqui uma bela turma craque nessa esporte maluco que é juntar palavras…
    Obrigado, Vi!
    Sérgio

  10. Vivina, gostei muito de seu “sempre às ordens, Sérgio”. Já que é assim, volte a nos encantar com seus textos mineiros, aqueles que nos trazem paz de espírito, o tempo parava, e a meninada respirava o vento até vir a noite…

  11. Luiz Carlos
    Animais silvestres, frutas, 1200 metros… E, contra essa vida fatigante, apartamento em Maceió. O dia em que se fartar de tanta amolação, você pode vender tudo e mudar aqui para São Paulo. Há muito apartamento vago à frente do Minhocão, obra prima de Maluf, bons bairros servidos pela Marginal “Meu Nome é Congestionamento” Tietê (límpido rio…), metrô à disposição (de 11 milhões de pessoas), o toque veneziano das enchentes, contraposto à aridez de Atacama destes dias, e ainda não falei do melhor: a emoção de viver um assalto à mão armada (se calhar, dá para fazer selfie com o ladrão, antes de ele levar o smartfone). Caso se resolva, seja bem-vindo!

  12. Obrigado Valdir, mas não aceito a troca. Já até deixei de ser carioca por causa de atrações semelhantes. Aqui também podemos tirar selfies com políticos, mas, Brasília, ao contrário do que muitos imaginam, não é só a Praça dos Três Poderes. Quase 80% dos moradores não são funcionários públicos. A cidade tem uma qualidade de vida muito boa e desenvolveu hábitos que seriam considerados surpreendentes por muitos brasileiros: os motoristas param nas faixas de pedestres (aquelas sem sinal) e nunca buzinam, pois isso é considerado falta de educação. Também sabem que, na cidade símbolo da corrupção, não podem trocar multas de trânsito por propinas, pois os guardas não aceitam e podem prendê-los se tentarem. As companhias de água, esgoto e luz, após atenderem um pedido ou reclamação, costumam ligar para perguntar se ficamos satisfeitos com o serviço. E você nem precisa de despachante no Detran, porque o atendimento é bastante razoável e os funcionários atenciosos. Infelizmente o padrão caiu muito, ultimamente, nas áreas de segurança, saúde e educação. Contudo, a Brasília do cidadão comum é bastante diferente do estereótipo que se cristalizou no resto do País. Até a famosa corrupção parece só acontecer nas altas esferas, envolvendo altíssimas somas, longe do cotidiano dos 2 milhões de habitantes. Já pensei em escrever um artigo no 50 Anos sobre essa Brasília desconhecida, mas o Sérgio Vaz pode alegar que o blog não publica ficção.

  13. Luiz Carlos, eu já disse a você várias vezes e repito: gostaria de publicar textos seus. Faça esse texto sobre Brasília. Garanto que publico. Você ainda não tinha reparado, mas há aqui uma tag Ficção.
    Grande abraço!
    Sérgio

  14. Morar em casa é desse jeito mesmo, só muda o número de trancas, dependendo do tamanho do imóvel. É um saco, e tem dias que é estressante.
    E como estamos no Brasil, dá-lhe pagar guardinha noturno, que mesmo trabalhando para uma empresa privada, folga quando bem entende, meio como funcionário público: emenda os feriados e simplesmente não aparece.

    Acho que as duas coisas têm bônus e ônus, há que se saber lidar. Casa dá trabalho, mas tem-se mais privacidade (exceto quando amigos resolvem aparecer sem avisar, coisa que eu detesto) e pode-se fazer mais barulho sem incomodar os vizinhos. Também não me sinto presa nem sufocada.

    Para mim, o grande problema dos apartamentos hoje é o tamanho. Quanto mais “modernos” menores são (e os valores exorbitantes?) É revoltante, parecem pequenas gaiolas. Dá vontade de sentar e chorar.

    PS: Depois de ler o comentário do Luiz Carlos sobre Brasília me deu até vontade de mudar pra lá (só que esperei um pouco, e a vontade passou). Saber que no Detran de Brasília as pessoas são bem tratadas me provocou inveja branca. Aqui em Mato Grosso, o Detran é um dos órgãos mais corruptos, e os cidadãos são maltratados, geralmente por estagiários novinhos (ou por dinossauros que entraram por indicação), que não gostam do que fazem, e/ou acham que estão prestando favor.

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