Tenho dupla naturalidade: sou paulistano-carioca. Nasci em São Paulo, em 1937, mas vivo no Rio desde 1940. Nem sempre nos damos conta das diferenças entre as duas cidades, na linguagem, na alimentação, no modo de ser e encarar as coisas. Mas elas existem.
No Rio, desenrolou-se minha primeira infância, mas minha casa era toda paulistana: do modo de preparar a comida ao modo de falar, esta carioca foi uma paulistana até a vida escolar ocupar muito dos seus dias. Eu me trocava, não trocava de roupa; eu caía de ponta-cabeça, não de cabeça para baixo; eu comia mandioquinha e não sabia que aquilo era batata-baroa; eu tinha ordem para nunca descer a guia sem uma pessoa grande ao meu lado…
Aos poucos, o Rio foi ocupando quase todo o espaço, mas nunca deixei de ter um cantinho paulistano em meu coração. As viagens a São Paulo eram freqüentes. Tinha família aí: pai, avós, primos e tios. Custei a perceber que um deles era um ser especial. Hoje sei e tenho dois sentimentos conflitantes em meu coração: orgulho e mágoa.
Mágoa pelo tempo perdido, logo o tempo, o que nunca mais se recupera. E orgulho, pois João Rubinato, o Adoniran Barbosa, meu pai, foi homem talentoso, brilhante, de espírito aberto, que nunca soube o que era preconceito nem mesquinhez. E foi homem grato: amava apaixonadamente a cidade de São Paulo, a quem era muito agradecido.
No entanto, sinto dizer, São Paulo não retribui. São Paulo não ama Adoniran tanto quanto Adoniran a amou. São Paulo é uma amante ingrata. Veja se não tenho razão.
Sabe onde existe uma Casa Adoniran Barbosa, museu muito bem organizado e sempre atento às novidades sobre seu homenageado? Não, não é no Bexiga, nem na Luz, nem na Paulista. Fica a mais de 10 mil quilômetros de São Paulo, em linha reta. Essa a distância até Jerusalém. Da cidade de David, mais 70 km até Shaar Hanegev, região onde fica o kibutz Bror Chail, o kibutz que abriga a Casa Adoniran Barbosa.
Quem criou esse museu? Eu diria que foram figuras imaginárias, se não trocasse longos e-mails com pessoas há mais de cinco anos. E se não me admirasse com a delicadeza e a trabalheira que enfrentam para manter em pé um museu para um compositor brasileiro que, embora tenha todas as qualidades que imodestamente citei acima, não faz parte da legenda dourada da MPB que nossa imprensa e autoridades tanto paparicam. Seus nomes? Sheila Katzer Bovo, ex-secretária de Educação de Sorocaba (SP), cidade irmã de Shaar Hanegev, e o casal Edith e Tzvi Chazan, diretores do museu.
Pois bem, atendendo ao pedido da diretoria, a Companhia Geral de Trens de Israel doou à Casa Adoniran Barbosa o primeiro vagão que chegou do Egito a Israel em 1910 –ainda na época do Império Otomano na Palestina. O vagão que faz parte da história agora está no terreno do museu e, por obra e graça de Edith e Tzvi, com as nossas cores.
É o Trem das Onze em Bror Chail. A intenção da diretoria é transformá-lo numa galeria de exposições sobre a música popular brasileira.
Você conhece país, cidade, pessoas mais generosas com uma de nossas maiores riquezas, a nossa música? Falta São Paulo resolver aderir a Bror Chail para o Trem das Onze poder dar a partida.
Este artigo foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo em 9 de janeiro de 2014.
Outros textos sobre Adoniran Barbosa neste site:
Adoniran vai continuar por aqui, por Sérgio Vaz, publicado originalmente no Jornal da Tarde em 1982;
O trem que não existiu, mas existiu, por Valdir Sanches, publicado originalmente no Diário do Comércio, em 2010;
Um homem de moral, por Maria Helena RR de Sousa, em 2013.
Importante: Não consegui encontrar o nome do autor das fotos que tomei a liberdade de reproduzir aqui. Sempre procuro dar o devido crédito das fotos que reproduzo – é o mínimo dos mínimos que poderia mesmo fazer. Peço perdão aos autores. (Sérgio Vaz)
O prefeitinho Haddad bem que poderia destinar um espaço no Bexiga que viesse a recordar o paulista de espirito mais carioca.
Também não sei o nome do fotógrafo… mas vou enviar fotos do Trem das Onze em Israel.
Obrigada, avô da Marina!
um beijo,
Lenita