O trem que não existiu, mas existiu

Em julho, comemoram-se cem anos de nascimento do criador de um trem que não existiu. Embora tenha existido… Falamos de João Rubinato, nascido em Valinhos, em 1910, de família pobre. É ele o autor do grande sucesso do repertório nacional “Trem das Onze”. Embora, na verdade, o autor seja Adoniran Barbosa, morto em São Paulo, em 1982.

João adotou o nome artístico de Adoniran, quando começou a fazer sucesso, em 1935. Em 1965, compôs “Trem das Onze”, uma de suas obras mais marcantes. O trem existiu, ou é só letra de samba?

Sim, o Trem da Cantareira, que inspirou a música, correu por ruas da São Paulo antiga por mais de um século. Chegava ao Jaçanã, na zona norte. “Moro em Jaçanã…”

Mas o Trem das Onze não existiu. “Se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas…” Não havia partidas com esse horário.

Adoniran de fato pegava o trem, mas não para chegar em casa. Naquela época, aí por 1955, um dos vários fazeres artísticos em que estava metido era o de ator. No Jaçanã, construíra-se o primeiro estúdio de filmagens da cidade, a Companhia Cinematográfica Maristela.

Na “Hollywood do Jaçanã”, como a chamavam, um dos astros de filmes como A Pensão de Dona Estela era aquele curioso músico de nariz marcante e voz rouquenha.

Em anos mais recentes, um jornalista perguntou a Adoniran porque pusera o Jaçanã na letra de “Trem das Onze”. “Porque eu precisava de uma rima, e Jaçanã rima com manhã”, foi a resposta. “…Só amanhã de manhã.”

Isto não deve ser visto como desamor pelo bairro. Num dia de 1966, Adoniran desceu de um carro, em frente à Estação do Jaçanã. Era o convidado especial para uma cerimônia triste. A estação seria demolida. O convidado não chegou de trem, porque os trilhos haviam sido retirados um ano antes.

Na plataforma da estação, misturou seus sucessos. Pôs-se a cantar: “Cada táuba que caía, doía no coração.” Trecho, como se sabe, de “Saudosa Maloca”. O episódio é contado por um ex-passageiro do trem, Silvio Bittencourt, criador da Associação Memória Museu do Jaçanã.

Na roupa dos passageiros, furinhos feitos por fagulhas

Sílvio embarcava naquela mesma estação, nos anos 1950, para chegar ao trabalho, no centro. A Maria Fumaça corria, se é possível dizer assim, em trilhos de bitola pequena, de 60 cm. Puxava três vagõezinhos de madeira, com bancos fixos, como os dos bondes. Sempre cheio, ia a 50 quilômetros por hora, no plano. Nas subidas, bufava a 15 por hora.

Nesses trechos, Sílvio pulava de um vagão e subia em outro. Assim enganava o picotador, e não pagava passagem. Ia bem arrumado, geralmente um terno azul, e gravata. Quando descia do trem, no centro, sempre havia alguém para gozar: “Ô Cantareira”. Uma pessoa com um terno todo cheio de furinhos feitos por fagulhas, só podia ter descido do Trem da Cantareira.

As fagulhas lançadas pela chaminé da Maria Fumaça eram um problema também para as donas de casa, com quintais situados ao longo da estrada. A roupa estendida nos varais ficava como os ternos de Silvo Bittencourt.

Perto do Jaçanã, havia um pontilhão muito estreito. O picotador alertava os passageiros, que tinham a mania de viajar com cabeça, braços, para fora do trem. “O picotador gritava ‘olha a cabeça’”, relembrou Sílvio. “Se não tomassem cuidado, a cabeça ficava e o corpo seguia para o Jaçanã.”

Entregou marmitas, foi varredor, tecelão, pintor…

Trem, ferrovia, sempre estiveram na memória de Adoniran Barbosa. Quando era o menino João Rubinato, encontrou seu primeiro trabalho em uma ferrovia. Isso foi em Valinhos, região de Campinas, onde nasceu, sétimo da prole de um casal de imigrantes italianos. Para ajudar a família, trabalhava nos vagões de carga.

Estudar? Só à força. Assim, entregou marmitas, foi varredor, e em 1924, aos 14 anos, chegou a Santo André, na Grande São Paulo. Tecelão, pintor, encanador, serralheiro, mascate, garçom – não se fixou em nada. No Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo, aprendeu a ser ajustador mecânico. Só aprendeu.

Em entrevista, contou que resolveu mascatear meias e retalhos pelas ruas – mas desistiu. “Nunca aprendi a fazer negócio. Comprava um par de meia por dez mil réis, vendia por oito, para acabar logo com a mercadoria e me mandar pra casa. Não dava pé, nem meia, muito menos lucro”.

No entanto compunha umas músicas. Fim de semana, estava na Rádio Cruzeiro do Sul, em São Paulo. “Aos sábados, tinha a hora do calouro. Cismei e todo sábado me arriscava. Era só eu começar e lá vinha o congo. Mas eu não desistia. Um sábado, o homem do congo devia de está distraído e consegui chegar até o fim num samba do Noel, o ‘Filosofia’.” Saiu de lá contatado.

Isso aconteceu em 1933. Dois anos depois, João Rubinato ganhou um prêmio com uma marchinha, “Dona Boa”. Livrou-se do João, “onde já se viu um sambista com nome de João?” e do Rubinato. Adoniran era o nome de um amigo, e Barbosa de um grande cantor. Bastou-lhe juntar os dois.

Os carros já não respeitavam mais os trens

Na cidade, o trenzinho da Cantareira cumpria seu papel. Surgira em 1894, e sua primeira missão fora levar materiais à Serra da Cantareira. Ali seria construído um reservatório de água para abastecer a cidade. Um ano depois, os passageiros chegariam a esse aprazível lugar, nos fins de semana, com suas cestas de piquenique.

O trem partia da Estação Tamanduateí, no Pari, que ficava na margem esquerda do rio, onde hoje passa a Avenida do Estado. Seguia para o Norte, atravessava o Tietê e ia em frente – mais ou menos como agora faz o metrô. Em certo ponto, um ramal derivava à direita, para chegar ao Jaçanã, que se chamava Guapira, e a Guarulhos.

O cenário oferecido nas janelas eram os arredores bucólicos da São Paulo de 1,6 milhão de habitantes. Em uma chácara de flores, a de seus avós, Antonio de Castro via o trem passar e se encantava. Em 1947, ele próprio comandava uma Maria Fumaça, das pequenas.

Na década de 1950, construiu-se a linha com bitola de 1 m. As Marias-Fumaça agora eram maiores, puxavam cinco vagões. Mas não podiam correr mais do que os 50 quilômetros por hora das locomotivas pequenas.

“As estações eram perto uma da outra”, lembra Antonio. “A gente saía de uma e começava a correr, e já estava chegando na seguinte.” Além disso, havia o trânsito. Os carros não respeitavam o trem. No cruzamento com ruas movimentadas de Santana, como Ataliba Leonel, Alfredo Pujol, o trem vinha apitando, com o farol aceso, “e os carros continuavam passando”.

“Um dia bati num carro, num cruzamento da Avenida Cruzeiro do Sul, e o motorista morreu. Quando estava chegando, ele entrou na minha frente, não deu tempo de parar.” O carro era de fora: tinha placa de uma cidade do Paraná.

Só havia uma linha, para ir e voltar. O trem ia de uma estação à outra. Aqui, num segundo trilho, outro trem esperava. Quando um passava, o outro saía.

Os maquinistas só avançavam depois de receber um bastão, o staff, com a ordem escrita de que seguissem até a a estação seguinte. Vinha escrito: linha livre.

Os chefes de estação continuavam atentos. Falavam entre si por Código Morse. Mais tarde, surgiu uma novidade: telefone a manivela.

Teve sucesso como humorista, mas o talento para a música prevaleceu

“Pelo telefone” dá samba? Sim, mas esse era um samba antigo até para Adoniran Barbosa. Ele compunha e cantava, mas uma outra veia, a humorística, abriu-lhe o caminho. Na Rádio Record, onde foi parar em 1941, viveu personagens de grande sucesso, como o motorista Perna Fina. Mais adiante foi o Charutinho, de História das Malocas, sucesso de mais de dez anos.

O talento para a música, no entanto, prevaleceu. Gravou “Saudosa Maloca” e “Samba do Arnesto”, mais tarde transformados em grande sucesso pelos Demônios da Garoa. “Trem das Onze” venceu o concurso de músicas de carnaval, no Quarto Centenário do Rio, em 1965. Mas só aos 63 anos, em 1973, quando gravou seu primeiro long play, Adoniran alcançou na mídia o reconhecimento pleno de seu valor, e a consagração.

O aniversário de setenta anos, em 1980, foi comemorado com um dia inteiro de festas no Bexiga, bairro onde morou e que amava. Lá estavam Elis Regina, Clara Nunes, Djavan, MPB-4, entre outros grandes. Em 1982 Elis Regina gravou com ele “Tiro ao Álvaro”, outro sucesso de Adoniran. No dia 23 de novembro desse mesmo ano, aos 72 anos, o coração de João Rubinato deixou de bater.

 ***

Jaçanã é um pássaro ribeirinho de peito avermelhado. Havia muitas dessas aves no Guapira, um bairro com mata exuberante das bordas da zona norte. Em 1930, quando resolveu-se mudar o nome primitivo, dado pelos índios, a escolha foi justamente o nome do Jaçanã.

Por aquela época, grandes porções de terra foram loteadas, o que daria origem a um bairro de classe média. Hoje, é um distrito com quase 100 mil habitantes. Em uma de suas praças, a Comendador Alberto de Souza, ficava a estação de trem. Numa das travessas da praça, está sua memória.

 É a Associação Museu Memória do Jaçanã, fundada há 27 anos (em 1983) por um de seus moradores, Sílvio Bittencourt. O museu é singelo, mas tem preciosidades como o chapéu usado por Adoniran Barbosa. Lá, Adoniran ainda canta, o Trem da Cantareira corre e a história do Jaçanã palpita.

 Esta reportagem foi publicada no Diário do Comércio, em 23 de fevereiro de 2010

8 Comentários para “O trem que não existiu, mas existiu”

  1. Parabéns pelo excelente texto! Estou estudando sobre Adoniran para apresentá-lo aos meus alunos. Sou porfessora de Artes e estou encantada por ele. Gostaria de pedir autorização para compartilhar esse texto em minha escola, citando a devida fonte webliográfica! Prof. Paula Chaves

  2. Eu em 1962 cheguei andar no trem até a Cantareira, como tenho saudades daquele tempo.

  3. Aestação eos trens existiram sim,só não hávia o trem as onze da noite.O último trem ,que passava em jaçanã era as onze e quarenta.

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