Muito além do jardim

“Devemos cultivar nosso jardim”, ensinava o Cândido de Voltaire, o aluno do dr. Pangloss, que dizia que “tudo vai pelo melhor dos mundos possíveis”. Era a única coisa que Chance Gardner, o personagem de Peter Sellers em Muito Além do Jardim, sabia fazer, além de ver televisão.

Será que o mundo se divide entre os catastrofistas que enxergam o apocalipse em cada esquina ou em cada nuvem, e os plácidos obtusos que, como Chance Gardner, dizem obviedades cretinas e sem sentido com a solenidade de quem está anunciado um pote no final de cada arco-íris à disposição de todos – basta querê-lo?

A vida, infelizmente, é um pouquinho mais complicada que gostaríamos que fosse. A culpa, claro, nunca será nossa, como nenhuma culpa é, mas da ganância e da falta de espírito fraterno e amor à humanidade das pessoas egoístas que nos cercam. Nós construímos as fantasias certas, a culpa é daqueles que nos enganam e não cumprem as promessas de realizá-las.

Parece que a infantilização do debate político veio para ficar, e embora no país tenha tudo para plantar raízes mais sólidas e fundamentadas no sistema de educação, que fertiliza o inconsciente coletivo com suas fantasias, há cenas que ainda custa acreditar que sejam verdadeiras, passadas em lugares que a nossa imaginação costuma cultuar como civilizados.

É inacreditável que a Europa, depois de séculos de guerra e destruição, tenha construido uma união política destinada a acabar com os conflitos que a devastaram, e ainda seja capaz de tolerar e ainda ameaçar despejar um embornal de votos sobre um político capaz de dizer “que o ébola pode ser uma solução para acabar com a superpopulação da África”.

Perto de uma frase dessas e do seu potencial destrutivo, a banana atirada sobre Daniel Alves, que ele comeu com a desenvoltura da ironia, parece uma gag onde o último que ri é o que come a banana e deixa a casca para o outro comer.

O que é que o processo civilizatório parece cada vez mais entregue às mãos de Chance Garden, que passa o dia cuidando das suas flores, vendo televisão e emitindo frases enigmáticas que na verdade não passam de platitudes estúpidas que soam sábias a cérebros poluídos pela dissonância cognitiva.

Vemos deficientes físicos percorrendo dois quilômetros a pé de muletas porque sabe Deus de onde os motoristas de ônibus foram sacar uma greve ilegal e selvagem, que os defensores da equidade e da justiça reclamam da polícia do governo do adversário político estar tratando a pão de ló; a mesma polícia que era tratada como uma chacinadora contumaz quando foi executar um mandado judicial de reintegração de posse de um terreno privado.

Vemos um jovem baleado despedindo-se da mãe pelo celular, no cenário de uns dos 50 mil assassinatos cometidos por ano no país e que só comovem quando viram imagem.

Nunca antes na história deste jardim, poderia dizer Chance Gardner.

 Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 23/5/2014. 

Um comentário para “Muito além do jardim”

  1. “…frases enigmáticas que na verdade não passam de platitudes estúpidas que soam sábias a cérebros poluídos pela dissonância cognitiva”.

    Perfeito, vou de jegue!

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