Joan, enfim

zzjoan00

Entre a primeira e a segunda canção que Joan Baez apresentou em seu primeiro show na cidade de São Paulo há uma distância de exatos 44 anos.

A segunda foi “Farewell, Angelina”, uma das quatro canções de Bob Dylan do repertório do show. Foi a canção que deu o títul0 de seu disco de 1965, o sexto oficial, pelo selo Vanguard.

Lá pela metade do show, ela cantou uma canção de seu primeiro disco oficial, de 1960, e então a distância ficou ainda maior: entre “El Preso Número Nueve”, que está no seu disco de estréia, de 1960, quando estava com 19 anos, e “God is God”, de Steve Earle, a primeira das canções que mostrou em São Paulo, passaram-se 48 anos.

Não são muitos os artistas que podem apresentar ao respeitável público canções que foram gravadas ao longo de meio século, e que não ficaram velhas, e que se mantêm atuais, e belas.

Não há muitos artistas no mundo da canção popular como Joan Baez. Joan Baez é única.

Ao longo de cerca de uma hora e meia, ela apresentou canções em três línguas (pouco, para quem já cantou em pelo menos uma dúzia), de épocas diferentes, mas que são imunes à passagem do tempo.

Joan Baez se comprovou mais uma vez eterna – e eternamente reta, de uma fidelidade a si própria absolutamente ímpar, inigualável.

***

Outro dia mesmo, outro imenso ídolo global, Bruce Springsteen, cantou em São Paulo (e depois no Rio, no Rock’n’Rio), Raul Seixas. Foi uma maravilha.

Joan Baez conseguiu uma proeza ainda mais fantástica. Levou ao palco de um grande teatro da maior metrópole brasileira, pela primeira vez, que eu saiba, desde 1968, ninguém menos que Geraldo Vandré.

Ela falou em português que o sujeito que apareceria a seguir era um mito. Que ele não iria cantar, mas havia concordado em aparecer – e então Geraldo Vandré entrou no palco do Teatro Bradesco.

Os, sei lá, 5 mil espectadores puseram-se de pé para aplaudir o homem, o mito,

E Joan Baez então cantou “Caminhando”. No estribilho, centenas de vozes a acompanhavam.

Mary, Andrea e eu estávamos na fila G, a sétima do teatro gigantesco. Tentei ver a expressão de Vandré. Me pareceu (posso estar bem errado) que ele sentia uma puta orgulho por ter sido aplaudido de pé, e por aquela gringa estar cantando a Marselhesa que ele compôs, e que tanta gente cantava junto.

zzjoan2Creio que Vandré jamais havia estado num palco diante de tanta gente desde aquela noite no final de 1968 no Maracanãzinho em que umas 18 mil pessoas vaiaram durante um monte de minutos a decisão do júri de dar a “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda, o primeiro lugar, deixando em segundo a Marselha do músico paraibano, a preferida do público.

Não dá para ter idéia do que Vandré terá sentido, por ter sido trazido ao palco por aquela gringa. Não dá para saber se aquela gringa tinha naquele momento noção da importância de fazer o mito recluso a aparecer em um palco.

***

Joan Baez é um dos meus maiores ídolos desde que eu me entendo por gente.

Meus olhos marejaram quando ela entrou no palco do Teatro Bradesco, e todo mundo se pôs de pé para aplaudí-la não pelo show que ela apresentaria, mas em nome de tudo o que ela já havia feito na vida.

Joan é uma mulher bela, aos 73 anos de idade. Gloriosamente, teve a sabedoria de não tentar disfarçar a passagem do tempo. A expressão de seu rosto é a mesma de sempre. O cabelo agora é branco, e o rosto mostra que o tempo pode passar sem destruir a beleza natural. Vestia-se com grande simplicidade – um conjunto preto, calças um tanto justas, mostrando uma silhueta fina, e um grande xale vermelho que descia até ali pelos joelhos.

Visualmente, a Joan que se mostrou em São Paulo é uma prova viva do acerto da canção de Dar Williams, “You’re aging well”, que ela e a autora cantaram em dueto no álbum Ring them bells, de 1995. Dar Williams, nascida em 1967, o ano em que Joan lançou seu oitavo disco oficial, Joan, é uma das muitas cantoras e compositoras que demonstram clara influência dessa artista extraordinária.

Eu já  havia visto esse meu ídolo em pessoa em 1981, numa sala ao lado do palco do Tuca, quando ela deu uma pequena entrevista explicando que o show havia sido proibido pela censura da ditadura militar que então já fazia água. Eu havia sido enviado para fazer uma descrição do show para o Jornal da Tarde: quando o show virou um não show, ouvi o seu pronunciamento, ouvi algumas outras informações, e corri para escrever o texto, pressionado pelo deadine, o horário de fechamento do jornal. Saí do Tuca antes que Joan tomasse a decisão de sentar-se no meio do público, para cantar, a sotto voce, duas canções. Minha reportagem, ruinzinha, não relatava o fato mais importante: o de que, mesmo proibida pelos milicos, havia cantado.

***

Se em 1981 havia cantado a capella sentada no meio da platéia do Tuca, para driblar a proibição da ditadura dos generais brasileiros, neste 2014 começou sua apresentação, com toda liberdade, acompanhada apenas por seu violão. (No texto que escreveu para a contracapa de seu disco de estréia, disse, sem qualquer modéstia, que o violão era “sua única e fiel orquestra”. Poucos anos depois, a vida desmentiu sua afirmação definitiva, e ela passou a ser acompanhada por orquestras gigantescas, depois por instrumentistas experientes de Nashville, depois por uma banda de rock, depois por todo tipo de músico.

Após ser aplaudida de pé simplesmente por ter aparecido em cena, ela leu em português um resumo do que diz a canção de abertura do show, e cantou “God is God” acompanhando-se apenas de seu fiel violão.

E em seguida foi de “Farewell, Angelina”.

Antes da terceira canção, “Flora”, uma canção folk, uma trad, leu uma tradução para o Português do que diz a letra.

Gozado: para mim, “Flora” não tem muito a ver com Joan. Ela só viria a gravar essa música em 1995, no disco ao vivo Ring them Bells. Peter, Paul and Mary gravaram “Flora” no início dos anos 60, e Dylan gravou também, nas sessões que resultariam no álbum Self Portrait, de 1970, mas com o nome de “The Lily of the West”.

A partir de “Flora”, Joan passou a não ter apenas a colaboração de sua fiel guitarra: entraram em cena seus dois acompanhantes nesta turnê pela América do Sul, Dirk Powell e Gabriel Harris.

Joan poderia fazer shows extraordinários apenas com sua voz, a capella. Seria perfeita só com seu violão. Com a orquestra imensa e os arranjos de Peter Schickle, fez belíssimos discos na primeira década de carreira. Fez shows com o rock pesado do Grateful Dead.

Com Dirk Powell e Gabriel Harris, mostra que faz bons shows com qualquer acompanhamento.

Não que esses dois jovens sejam qualquer coisa, sejam pouco importantes. Demonstraram ser talentosos, os dois. Powelll é multi-instrumentista – toca banjo, guitarra, um estranho acordeon, baixo, piano. E Gabriel mostrou-se um percussionista de mão cheia.

Uma figura, o Gabriel. Ninguém informou isso ao público do primeiro show de Joan Baez em São Paulo, mas Gabriel é o único filho que a artista teve na vida, para quem ela escreveu a canção “Gabriel and me”, do disco Blessed are..., de 1971. O pai dele é David Harris, o ativista com quem que ela se casou na passagem dos anos 60 para os 70, e a quem dedicou o disco David’s Album, de 1969. Quando Gabriel nasceu, o pai estava preso, pelos protestos contra a guerra do Vietnã.

***

Com o acompanhamento de Dirk Powell e Gabriel Harris, Joan emendou “Flora” com outra música tradicional, trad, de autor desconhecido, “La Llorona”, que gravou em seu disco só com canções em espanhol, Gracias a la Vida (1974).

Em seguida veio “Deportee (Plane Wreck at Los Gatos)”, de Woody Guthrie e Martin Hoffman, que havia gravado em Blessed Are… e regravou ao vivo no disco de 2005, Bowery Songs. Ela dedicou a canção a Pete Seeger, morto poucas semanas atrás; Seeger foi amigo e companheiro de Woody Guthrie desde os anos 40, quando formaram o grupo The Almanac Singers.

Após uma belíssima interpretação de “It’s all over now, Baby Blue”, a segunda música de Dylan da noite, que ela repete sempre desde que a gravou no álbum Farewell, Angelina, de 1965, Joan apresentou as brasileiríssimas “Mulher rendeira” e “Acorda, Maria Bonita”. O público pareceu ter adorado.

zzjoann4

Joan Baez é uma pessoa surpreendente. Depois das duas músicas nordestinas, informou que cantaria uma canção de autoria de Dirk Powell (na foto) – acompanhada por sua assistente pessoal, Grace. Essa moça, Grace Stumberg, além de levar para a cantora os violões (ela troca de violão a cada nova música), de levar água para ela, canta – e canta bem! Não fiquei sabendo o nome da música, em que o autor acompanhou Joan Baez ao piano, mas é uma bela, suave canção de amor – e, durante uma longa estrofe, Grace Stumberg canta sozinha! Coisa de doido.

Grace – eu ficaria sabendo depois – tem um blog em que faz um diário sobre a turnê.

Sozinha de novo no palco, ela apresentou então a única canção da compositora Joan Baez que incluiu na playlist da noite. Claro, “Diamonds and rust”, sua música mais famosa, que deu título ao álbum de 1975, em que se dirige diretamente a Bob Dylan e historia sua relação com ele. Cantou lenta, suavemente, a dicção perfeita deixando clara cada sílaba da letra emocionante.

“Cálice”, de Chico e Gil, cantou em bom português, lendo a letra, e com gestos que convidavam o público a juntar-se a ela no refrão. (No show do Rio, dois dias antes, na sexta, dia 21 de março, havia sido acompanhada na canção símbolo da revolta contra a censura dos tempos da ditadura por Gilberto Gil e Milton Nascimento.)

“Cálice” veio entre duas músicas que, conforme ela mesma lembrou, havia cantado no festival de Woodstock, “Swing Low, Sweet  Chariot” (tradicional) e “Joe Hill” (Robinson-Hayes), São, as duas, canções que sempre aparecem em seus discos ao vivo, como From Every Stage (1976).

Dirk Powell deu um show no baixo acústico ao acompanhar a bela interpretação de Joan para a clássica trad “The House of the Rising Sun”. Que foi seguida por um bluegrass alegre, ritmado, “Corn bread” (se é que entendi direito), em que foi a vez de Gabe brilhar na percussão, enquanto o multi-instrumentista tirava a estrela para dançar no meio do palco.

Em seguida vieram duas canções latino-americanas, a tradicional mexicana “El Preso Numero Nueve” e o hino “Gracias a la vida”, de Violeta Parra.

Após o hino da compositora chilena, veio a total surpresa – ela chamou para o palco Geraldo Vandré, e emocionou os milhares de espectadores com “Caminhando”.

Eram então umas 19h15, uma hora e 15 de show, e Joan e seus dois músicos deixaram o palco, ao lado de Vandré.

***

No primeiro bis, cantou duas músicas conhecidíssimas. “Imagine” de John Lennon e “The Boxer” de Paul Simon.

E aí então entrou no palco o senador Eduardo Suplicy, para estragar o que no Rio de Janeiro e nas demais cidades visitadas por ela nesta turnê latino-americana deve ter sido uma bela interpretação de outro hino, “Blowin’ in the Wind”.

Não vou me alongar sobre o episódio Suplicy, mas é preciso fazer o registro. Joan Baez gosta dele, desde que ele a ciceroneou na sua vinda ao Brasil em 1981, aquela em que foi impedida de cantar no Tuca. Ao ser entrevistada por um repórter do Estadão semanas antes de vir agora ao Brasil, afirmou que gostaria de encontrar-se com o sujeito. Era sabido, portanto, que o cara iria aparecer no palco.

A platéia do Teatro Bradesco se dividiu. Houve aplausos e houve vaias. Muitos aplausos e muitas vaias – e muitas risadas. Eu vi e ouvi, assim como, ao meu lado, Mary e Andrea. Ao final da canção, vi gente aplaudindo de pé – e muita gente sentada, numa visível demonstração de repúdio à presença do político petista.

Joan, Gabe e Dirk Powell voltaram ao palco instantes depois de saírem. Me pareceu, e também pareceu à Mary e à Andrea, que Joan voltou um tanto embaraçada com o que havia acabado de acontecer. Com toda certeza não havia imaginado que a platéia se dividiria entre aplausos e vaias, nem que a “interpretação” dele fosse tão lamentável. Chegou a comentar, sorrindo, que os filhos dele haviam se manifestado contra o fato de ele querer cantar, e que os dois haviam ensaiado por apenas 4 minutos.

E então encerrou o show com duas músicas que são de seu repertório, mas não são bem conhecidas das grandes multidões: “Love is just a four-letter word”, de Dylan, que ela gravou no álbum duplo Any Day Now, de 1968, e “Suzanne”, de Leonard Cohen, que está no álbum duplo ao vivo From Every Stage e também em Ring them bells.

Lá pela metade da longa, bem humorada, irônica, fascinante letra “Love is just a four-letter word” (four-letter word significa palavrão), Joan fez algo que gosta muito de fazer: imitou a voz fanha de Dylan. Parecia se divertir demais com aquilo – imitar a voz fanha de Dylan é sempre uma deliciosa brincadeira.

Interessante opção, esta dela: depois de apresentar diversos hinos, canções conhecidíssimas, famosérrimas, grandiosas, políticas, encerrar a noite com duas suaves, intimistas, pouco badaladas canções de amor.

Joan Baez é surpreendente. Joan Baez é um espanto. Uma pessoa maior, uma artista maior.

23 e 24 de março de 2014

As fotos deste post são de autoria de Manuela Scarpa/Photo Rio News e de Carlos Macedo/Agencia RBS. Creio que eles não se oporiam ao uso das fotos numa anotação tão pessoal e apaixonada.

 

6 Comentários para “Joan, enfim”

  1. Prezado Sérgio Vaz: o seu texto está muito bem escrito e mostra o quão bonita e comovente foi a homenagem de Joan Baez fez para Geraldo Vandré. E como o seu show foi maravilhoso. Peço a gentileza de me ligar pois gostaria de esclarecer alguns fatos que não são do seu conhecimento, uma vez que informa que não ficou para informar o que se passou no TUCA em 1981 quando ela cantou Blowing in the Wind e para não dizer que não falei das flores. Estranhei quando li que Sérgio Vaz tinha protestado ontem com respeito à minha presença. Mas seu homônimo poeta já me disse que se lá estivesse ontem teria muito me aplaudido e dado um beijo. Só gostaria de entender melhor seu protesto

  2. Ao convidar o senador Eduardo Suplicy ao palco, o resultado não foi tão unânime quanto a presença de Vandré. Ouviram-se uma ou duas vozes de protesto. “Suplicy, não!”, gritou o jornalista Sérgio Vaz, que estava na plateia.

  3. Em 1981, Sérvaz, fanzoco da Baez, deixou de ser um reporterninja, não informa que músicas,e foram duas, Joan cantou em desrespeito a ditadura em meio a platéia. Pressionado pelo deadine? Quer barrigada amigo!
    Queria ter assistido a uma das apresentações, babei, me contento com seu oportuno texto,

  4. Sérgio,
    estava esperando seu texto! Sabia que você não faria a bobeira que fiz, de tentar comprar ingresos quando eles já haviam se esgotado…
    Gostaria muito de ter ido. E a presença do Vandré, inesperada, deve ter sido comovente, sim.
    Será que dá pra sonhar com uma próxima vez?

    Beijo
    Vivina

  5. Como dylanmaniaco, Sérgio Vaz certamente considera que a voz do Senador Suplicy não está dentro do padrão Vaz de qualidade para cantar Blowing in the Wind.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *