Duas canções, coincidências demais

O narrador da canção “Demais”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, anda falando demais, bebendo demais, rindo demais, contando anedotas demais. Não larga o cigarro e dirige seu carro depressa demais.

O narrador da canção “The End of a Love Affair”, de Edward C. Redding, anda falando demais, bebendo e fumando um pouco demais, rindo um pouco demais. E dirige seu carro um pouco depressa demais.

São parecidíssimos, os dois personagens. Impressionantemente parecidos.

Parecidos demais. Tanto, mas tanto, que é de se estranhar demais que eu não tivesse reparado nisso há muito mais tempo. Porque, afinal de contas, já ouvi demais tanto uma quanto outra canção, duas belíssimas canções.

É estranho também que essa coincidência não tenha sido muito comentada, ao longo destes anos todos. Aparentemente, não foram; ao menos é o que mostra uma pesquisa, ainda que rápida, pelo Google.

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A maravilhosa Sylvinha Telles gravou “Demais” no disco marcante, fascinante Amor de Gente Moça, de 1959, no momento da explosão da bossa nova.

zzsylvinhaO Brasil vivia uma época especialmente feliz, naquele finalzinho de anos 50. Parecia que o país iria dar certo. Era uma nação que se modernizava, o presidente da República era simpático, sorridente, pé de valsa, e construía uma nova capital no distante cerrado do Planalto Central. A bossa era nova, e logo em seguida viria o cinema novo. O Rio de Janeiro sempre continuaria lindo, mas provavelmente nunca foi tão cidade maravilhosa quanto naquela época em que desabrochavam os talentos de Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto. Em 1958, a divina Elizeth Cardoso havia gravado Canção do Amor Demais, só com canções de Tom e letras de Vinicius, que se tornariam clássicas. Na primeira faixa, “Chega de saudade”, havia uma batida diferente no violão, tocado por João Gilberto.

Em 1959 viriam Chega de Saudade, o disco de João que inaugurou oficialmente a bossa nova, e Amor de Gente Moça, de Sylvinha Telles.

Sylvinha era moderna. Era a modernidade absoluta, uma coisa que exalava frescor, juventude. Jovem, bela, voz gostosa, aconchegante, suavemente sensual, de afinação perfeita, e um fantástico swing. Sylvinha surgia na música brasileira com um jeito assim um tanto de Julie London (que, aliás, também gravou “The End of a Love Affair”). A homarada babava não apenas com a música de Sylvinha, mas também com sua beleza estampada nas capas dos long-playings, exatamente como diante dos long-playings da musa americana da música cool.

Assim como o anterior Canção do Amor Demais, Amor de Gente Moça tinha apenas canções de Tom. Só canções que virariam clássicos, porque tudo, absolutamente tudo o que o jovem Tom compunha viraria clássico: “Dindi”, “De você, eu gosto”, “Discussão”, “Sem Você”, “Fotografia”, “Janelas Abertas”, “O que tinha de ser”, “A felicidade”, “Canta, canta mais”, “Só em teus braços” e “Esquecendo você”. E, claro, “Demais”.

Algumas eram só Tom, letra e música. Algumas tinham letras de Vinicius. Algumas eram parcerias Tom-Newton Mendonça – e essas não eram exatamente música de Tom e letra de Newton, eram parcerias em tudo, em letra e música, um tanto como seriam algumas canções Lennon-McCartney dos discos iniciais daquela bandinha que surgiria na ilhota do Norte uns poucos anos depois.

E havia duas parcerias Tom-Aloysio de Oliveira: “Dindi” e “Demais”.

Aloysio de Oliveira é um desses sujeito multi-talentosos. Estava, em 1959, com 35 anos muito bem vividos. Ainda adolescente, fez parte do conjunto vocal Bando da Lua, que acompanhou Carmen Miranda em gravações no Brasil e em seguida na sua aventura norte-americana – o Bando da Lua acompanhou a cantora e atriz em oito filmes feitos nos Estados Unidos. Já que estava nos Estados Unidos, Aloysio aproveitou para trabalhar sob o comando de Walt Disney, para quem foi consultor de trilhas sonoras, narrador de documentários e dublador de desenhos. Era o diretor artístico da Odeon quando a gravadora lançou Chega de Saudade. Em 1963, fez dois gols de placa: casou-se com Sylvinha Telles e fundou a gravadora Elenco.

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Edward C. Redding, o autor de letra e música de “The End of a Love Affair”, é figura muito menos conhecida, muito mais obscura que Aloysio de Oliveira.

zzladyA Wikipedia em inglês não tem verbete sobre ele. O enciclopédico, abrangentíssimo site AllMusic não tem verbete sobre ele – apenas registra a existência da canção “The End of a Love Affair”. A monumental The Penguin Encyclopedia of Popular Music, mais de 1.500 páginas, não tem verbete sobre ele.

Mas há registro de que Frank Sinatra gravou “The End of a Love Affair” em 1957. E Billie Holliday gravou a canção em 1958, em seu álbum Lady in Satin, em que ela é acompanhada pela orquestra de Ray Ellis. Foi o penúltimo álbum gravado em estúdio por Lady Day – ela morreria em 1959, exatamente o ano do lançamento de Amor de Gente Moça de Sylvinha Telles. Exatas 4 décadas depois, em 1997 a Columbia americana lançou uma edição caprichadíssima em CD de Lady in Satin; sou o feliz possuidor desse suporte físico de valor inestimável. Nele há duas versões de “The End of a Love Affair” – uma em mono, outro em stereo. Há até uma faixa bônus de 9 minutos com os diversos takes da gravação daquela canção especificamente. O rico encarte de 22 páginas não precisa a quantidade de heroína que Lady Day injetou nas veias, mas especifica que as gravações foram feitas nos dias 19, 20 e  21 de fevereiro de 1958.

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Não estou aqui afirmando que Edward C. Redding plagiou Aloysio de Oliveira, nem que Aloysio de Oliveira plagiou Edward C. Redding. Quis apenas anotar que as letras são parecidas demais, e citar algumas datas que estão aí à disposição dos curiosos.

Sobre esse negócio de plágio, o grande Woody Guthrie disse, quando alguém relatou a ele que uma canção de sua autoria havia sido plagiada: “Ah, então ele roubou de mim! Tudo bem, porque eu roubo de todo mundo”.

E Pete Seeger, que contou essa história num show que virou disco, acrescentou: “Como diria meu pai, em seu linguajar de estudioso, musicólogo: o plágio é fundamental para qualquer cultura”.

No caso de “Demais”/”The End of a Love Affair”, pode não ter havido plágio algum. O planeta está cheio de gente que fala demais, escreve demais, bebe demais, fuma demais.

Sei lá quantos cigarros fumei e quantas doses tomei ao escrever este texto… E olha que, ao contrário dos colegas narradores das duas canções, vivo há tempos uma história de amor em paz.

 

Demais(Tom Jobim-Aloysio de Oliveira) The end of a love affair(Edward C. Redding)
Todos acham que eu falo demaisE que eu ando bebendo demais

Que essa vida agitada não serve pra nada

Andar por aí, bar em bar, bar em bar

 

Dizem até que ando rindo demais

E que conto anedotas demais

Que não largo o cigarro e dirijo o meu carro

Correndo, chegando no mesmo lugar

 

Ninguém sabe é que isso acontece por que

Vou passar minha vida esquecendo você

E a razão por que vivo esses dias banais

É porque ando triste, ando triste demais

 

E é por isso que eu falo demais

É por isso que eu bebo demais

E a razão porque vivo essa vida agitada demais

É porque meu amor por você é imenso

O meu amor por você é tão grande

É porque meu amor por você é enorme demais

 

So I walk a little too fast and I drive a little too fastAnd I’m reckless it’s true, but what else can you do at the

End of a love affair?

So I talk a little too much, and I laugh a little too much

And my voice is too loud, when I’m out in a crowd

So that people are apt to stare

 

Do they know, do they care, that it’s only that I’m lonely

And low as can be?

And the smile on my face isn’t really a smile at all!

 

So I smoke a little too much, and I drink a little too much

And the tunes I request are not always the best

But the ones where the trumpets blare!

 

So I go at a maddening pace, and I pretend that it’s taking

Your place

But what else can you do, at the end of a love affair

 

 

Abril/maio de 2014

4 Comentários para “Duas canções, coincidências demais”

  1. O texto tem demais de perspicácia mas as coincidências se permeiam á idéia central.

    De toda a forma a citação da grande e esquecida Sylvinha Telles valeu demais.

    O tema “Demais” me levou a Maysa que também gravou a música,não sei se antes ou depois de Sylvinha.

    Não seria demais e esclarecedor pelo dono de valiosos suportes físicos.

  2. O texto acima foi publicado também no Jornal Movimento.
    Recebi de Laércio Monzani Jr. – que leu o texto no Movimento – a seguinte mensagem, preciosa, precisa:

    Prezado Sérgio,

    Achei hoje, por acaso, seu artigo abaixo na Internet:
    http://www.jornalmovimento.com.br/sergio-vaz/1317-duas-cancoes-coincidencias-demais

    Parabéns pela descrição precisa, seu artigo é de valiosa informação para os amantes da música, do jazz em especial.

    Agora, veja neste link – THE END OF A LOVE AFFAIR foi publicada em 1950:
    https://songbook1.wordpress.com/fx/1950-standards/the-end-of-a-love-affair/

    A música DEMAIS saiu em 1959, creio que a gravação da Silvinha Telles tenha sido a primeira.

    Portanto, comparando 1950 com 1959, não fica difícil saber QUEM copiou QUEM.
    Tom Jobim fez a música, portanto a “letra” foi do Aloísio de Oliveira.
    Não sei se PLÁGIO seria a palavra correta, mas eu não acredito em coincidências desse tipo.
    Para sua apreciação.
    Um abraço,

    Laércio MONZANI Jr.
    S’ Music CDs
    Campinas / SP
    http://eshops.mercadolivre.com.br/LAERCIOJR

  3. Não se trata de um plágio, nem sugeriria isso. End of a love affair é uma música muito conhecida, um jazz standard, o que Tom e Aloysio fizeram foi uma certa homenagem. A menção à música é completamente explícita, inclusive a melodia é parecida, tem uma parte B que modula para um tom menor. Se for analisar a estrutura, inclusive as duas são AABA’.
    Se trata de uma referência muito espirituosa com a intenção de aproximar a música brasileira do jazz, aquilo que a bossa nova fez desde o início.

  4. Maravilha, Pedro!
    Muitíssimo obrigado pelo comentário – e pelas explicações.
    Mas repare, por favor, que eu não disse que houve plágio.
    Um abraço.
    Sérgio

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