O primeiro a falar de penicos, e evocou o da Madame de Pompadour, foi Antonioni. Estava de visita à Cinemateca. Luís de Pina, o director, coleccionava miniaturas. Mas o João Bénard lembrou-se de um, autêntico, uma preciosidade do Palácio da Pena, em Sintra. De louça portuguesa, a rainha Dona Amélia guardava-o onde ainda hoje está, debaixo da cama. Partimos em romaria turística.
A visita guiada tinha lotação limitada. Luís de Pina ficou cá fora e eu fiz-lhe companhia. Antonioni, ma femme chamada Antónia, e o João entraram. O diabo é que o guia fechou a porta à chave e Antonioni padecia de claustrofobia. Um pandemónio. Abriu uma janela e atirou-se cá para fora. Deus tinha-nos posto, ao Luís de Pina e a mim, debaixo dessa janela. Amparamos o autor de L’Avventura que vinha numa queda de Zabriskie Point. E também já vinha no ar a ágil Antónia. O João, que vira mil vezes o palácio, bem tentou saltar, mas os recursos atléticos não eram o seu forte e o guia deve tê-lo puxado pelas pernas. Teve de expiar a visita, olhar pela milésima vez para o seco urinol da rainha.
Não sei se foi a contar o episódio, na recepção que a Embaixada de Itália deu a Antonioni. E foi. Exuberante, o João contou tudo com gestos amplos. Um dos braços dele largou-se, autónomo, e embateu na cristaleira da sala, que escavacou com estrondo. Houve mais risos do que desculpas e, acreditem, Antonioni e Manoel de Oliveira contaram anedotas de carabinieri e alentejanos, fazendo da embaixada uma brejeira tasca de Lisboa.
Um ano depois, o João voltou a ser convidado. Lembraram-se do episódio. “Senhor Embaixador, o ano passado, aqui mesmo, comecei a contar uma história…”, e o João a fazer o gesto de como tinha partido a cristaleira e, zás, novo estrondo, uma algazarra de vidros por todo o lado. Se Jacques Tati tivesse sabido, processava o João por plágio.
Já eu levava bons anos de SIC, o João convidou-me para um almoço com Claudia Cardinale, beleza devastadora debaixo da pátina do tempo. Levou-a depois ao aeroporto. “Perdi o bilhete”, gritou ela. E perdera. O João, no balcão da Air France, a dizer a uma térrea hospedeira que tinha de resolver o problema, era uma VIP, era a Cardinale. E logo, a prestável e informadíssima menina: “ A Cardinale? A do circo?!”
A Cinemateca do Luís e do João era muito boa, começava neles, na vida, grandeza e graça que irradiavam.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Na foto do alto: Momento em que Antonioni fala a este pobre cronista de Madame de Pompadour. Luis de Pina, atento, atrás.
Na foto no meio do texto: João Bénard e Manoel de Oliveira a contarem barzelletti à ágil Antónia, ainda Antonioni não tinha chegado.