A sinfonia da vida

Há 45 anos, eu andando lá pelos 18 (não se espante, leitor, também já tive essa idade), tocado pelo romantismo que tão naturalmente floreia os sonhos de todos nós nessa quadra de nossas vidas, gostava de sentar-me à beira de um regato que circundava os fundos de nossa casa e que, depois, descia sereno e imutável para os braços do Mogi Guaçu. Era geralmente fim de tarde, o sol se pondo no horizonte lá do outro lado da várzea, onde bandos de pássaros cortavam o céu em busca de seus poleiros na mata mais ao longe.

Eram horas bucólicas aquelas que me envolviam num silêncio quase sepulcral não fossem os rádios da vizinhança, de onde, a essa hora, vinha a mistura de sons em que permeavam músicas caipiras e a ave-maria, só interrompidas pela Voz do Brasil.

Alheio a essa algaravia, tocava-me mais a onomatopaica confusão de gritos que ecoavam de patos, galinhas e outras aves correndo atrás da última refeição do dia, atirada do avental de uma mulher de olhar meigo e sorriso terno, que, diferente de todos, entendia o meu recolhimento à reflexão. Dona Alice não foi só a mãe, mas sim a melhor amiga que um filho poderia ter, pois ao amado rebento, a quem tão precocemente o destino roubou parte dos movimentos das pernas, jamais deixou faltar a solidariedade, o respeito e a compreensão. Conseguia o milagre de me fazer amá-la com tal intensidade que esse amor jamais foi comprometido pelos duros corretivos que me dava quando, no exercício do direito que toda criança tem à prática da molecagem, fugia à lisura do comportamento que exigia dos seus filhos.

Sou daqueles que sabe descobrir grande felicidade nas coisas mais simples. E uma delas é saber que há, sim, em qualquer lugar, não importa a distância, alguém que pode me querer bem. E que me dê a honra de dizer: “Somos amigos”. Sempre digo que fazer um amigo é fácil; difícil é preservá-lo, pois só se mantém forte, duradoura e eterna a amizade verdadeira. E aos meus melhores amigos sempre fiz questão de somar a natureza nas suas formas mais simbólicas, como os rios, por exemplo, com os quais, desde tenra idade, tive ligações quase umbilicais.

Ainda há pouco – hoje o peso da já não me permite mais – costumava ir sentar-me à beira d’água nas tardes de verão, ver os papagaios passarem barulhentos na direção de uma enorme árvore de nome indígena – mari-mari – onde faziam sua pousada. Todavia já sem ouvir as músicas caipiras, a ave-maria e nem mesmo a Voz do Brasil. E enquanto o dia ia morrendo rio abaixo, por onde rolam águas nervosas que buscam outros rios até chegarem ao mar, deixava a saudade crescer no meu peito até que imagens do passado turvassem minha mente.

Perdoe-me a eloquência, mas eu sou assim, um construtor de metáforas mal elaboradas. Que as faz para poder externar cada gota do sentimento que brota em mim. E ele será sempre, por todo o tempo, a forma que tenho para dizer o amor que tenho pela vida.

Nestes 30 anos durante os quais tenho feito de Boa Vista meu lar e de Roraima meu universo, vi minhas forças físicas irem declinando como consequência dos efeitos naturais que os avanços irreversíveis do relógio biológico causam sobre o ser humano. As sequelas da pólio já não me permitem caminhar por minhas próprias pernas, obrigando-me a buscar o conforto e a segurança da cadeira de rodas. Não me queixo por ter-me obrigado a aceitar essas limitações, pois ainda me vejo, ainda que já septuagenário, com plena capacidade mental para produzir um trabalho intelectual capaz de merecer justa remuneração e o respeito de quem me lê.

O que me faz melancólico, entretanto, e por isso mesmo já não tão feliz como sempre fui, é o fato de não poder mais ver as águas do rio tocarem meus pés enquanto meus ouvidos são agraciados pela algazarra onomatopeica de um bando de papagaios. Da última vez que os vi, reunidos na copa de uma árvore como se ela fosse o grande teatro, os tive como uma orquestra executando uma das mais belas obras da natureza, a sinfonia da vida.

O autor é jornalista em Roraima.

 

Um comentário para “A sinfonia da vida”

  1. Gosto das suas palavras, do seu texto, das suas histórias. Nos meus 66 quase seus 70 me sinto vivo e feliz com suas reminiscências. A água do rio, os pássaros, a relava, ave maria, a Voz do Brasil, a música, Morro Velho na voz de Milton. riacho de águas tão limpinhas que o funso se vê.

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