As tecnologias têm destas coisas. Com o aparecimento, lento mas seguro, do Blu-ray Disc ou BD (que vai substituindo os DVD nas lojas) descobrimos que chegou uma nova língua ao mercado. Nas edições de filmes como Amadeus, Invictus, 2001 ou A Conquista do Oeste lá está, no capítulo das legendas, ao lado do Francês, Alemão, Espanhol, Italiano ou Português, o… “Brasileiro”.
O mais curioso, no entanto, é tais edições serem portuguesas. Sim, porque nas edições americanas ou britânicas escreve-se Portuguese ou Brazilian Portuguese, quando coexistem. Porque quando aparece só Portuguese é uma roleta: pode ser o de Portugal ou o do Brasil. Blade Runner, por exemplo, vem no de Portugal. Já Avatar segue o do Brasil. O que nos dá a “ler” Sigourney Weaver a blasfemar assim: “Cadê meu avental? Quem pegou a droga do meu cigarro? Pessoal, o que há de errado aqui?” Nada de errado. Tudo “bacana”, mesmo.
Mas isto resolve-se, certamente. Há um aparelhinho milagroso que promete unificar tudo. Põe-se o Português lá dentro e sai unificado. Não dói nada. Limpam-se umas letras e fica uma língua só. Ou não? Veja-se este pequeno diálogo de 2001, quando o Dr. Floyd vai telefonar à sua filha pequena. Na legenda assinalada como Português é assim: “Papá!” “Como estás, boneca, o que estavas a fazer?” “A brincar.” “Onde está a mamã?” “Foi às compras.” “Quem está a cuidar de ti?” “A Rachel.” “Posso falar com ela, por favor?” “Ela foi à casa-de-banho.”
Já nas legendas a que um português ignorante chamou “Brasileiro” lê-se isto: “Papai!” “Como vai, sapeca?” “Bem.” “O que está fazendo?” “Brincando.” “Onde está mamãe?” “Foi fazer compras.” “Quem está cuidando de você?” “Rachel.” “Posso falar com a Rachel, por favor?” “Está no banheiro.”
O que faria o milagroso Acordo Ortográfico a tal diálogo? Absolutamente nada.
Nada do que aqui se escreveu mudaria uma vírgula. E, no entanto, embora seja a mesma língua, quase nada coincide. Curiosamente, as edições internacionais de filmes começam a incluir, para o Espanhol, duas variantes: Castilian Spanish e Latin Spanish. Eles lá sabem porquê. Mas nós não precisamos: temos o Acordo. E temos uma ortografia unificada, como se vê. Mesmo que Floyd se despeça com um “adeus” em Português e um “tchau” em “Brasileiro”…
Em 1986, o lúcido filólogo José Pedro Machado escreveu que o acordo ortográfico “deixou de ser um problema científico para se tornar político e bem sabemos o que acontece quando, em questões científicas, os cientistas dão (ou têm de dar) lugar aos políticos… Deixemos passar os tempos e veremos”. Muito bem: já vimos. Os ignorantes ditaram a sua lei. E têm um argumento forte: não dói nada.
Pena que nos doa só a nós.
(*) Este artigo foi originalmente publicado no jornal português Público, em 14 de junho de 2012. Foi-me enviado por meu amigo José Luís Fino Figueiredo, que sabe do meu interesse por textos que falam mal do, como diz ele, desgraçado desacordo ortográfico.
Nuno Pacheco é diretor adjunto, perdão, director adjunto do jornal Público. Não tive autorização dele para republicar seu texto, mas tenho a certeza de que ele não se oporia.
Simplesmente genial! Maravilha de texto.
“Papai!_Como vai você? _tô bem _O que cê tá fazendo?_Brincando._Onde tá mamãe? _Foi no mercado._Quem está tomando conta de você? _ A Raquel. Onde tá a Rachel? _Tá no banheiro.”
É só para dizer que o jornal Público é, tanto quanto sei, o único dos diários portugueses que não usa a nova ortografia.
Por acaso, ou não, também é o que tem mais qualidade nos últimos 20 anos.
Isto é da qualidade é o que eu penso sobre os jornais diários; sobre os semanários não sei dizer nada.
Servaz, vamos pensar longe. O aparelhinho milagroso (mas precisaria ser milagroso mesmo) não teria uma versão a ser adaptada como um microfone, à boca de uma pessoa? Assim teríamos aquele “campanhero” que presidiu a República falando português. Nossos ouvidos agradeceriam.