Navio perdendo a rota

Um poema

que não se entende

é digno de nota

a dignidade suprema

de um navio

perdendo a rota (Paulo Leminski)

Sempre achei uma tremenda tolice a tal da leitura dinâmica. Não dá, nem poderia dar certo porque a nossa língua não é das que se entregam com facilidade. Tem que ser cativada, seduzida, acarinhada, lida e relida, não pode ser vista assim de esguelha, da ponta esquerda da primeira linha até a ponta direita da última linha.

Mas não é que o MEC adotou esse método para corrigir as redações do Enem? A matéria que a revista Veja, edição de 27 de março, traz em sua página 68, “O Enem pode virar piada”, conta que cada avaliador receberia 2,35 reais por redação analisada.

Não bastasse esse apelo para o malfeito, os analistas receberam a seguinte orientação via internet: “Extra-oficialmente, recomenda-se que sejam flexíveis e tolerantes com erros. Com uma peneira muito severa, quase nenhum estudante sobreviveria”.

Está liquidada a fatura. Morte à língua portuguesa.

A não ser que haja uma reação dura da Academia e da sociedade, corremos esse risco.

Somos um país muito doido. Foi assinado um novo acordo ortográfico – um que até agora, ao contrário de outros, como diria o Chacrinha, veio para confundir. Eu gostava dos acentos de diferenciação, dava certo conforto ler pára e saber que era para parar e não destinado a alguém ou alguma coisa ou lugar.

Papai morreu aos 92 anos, em 1992, escrevendo hontem com h, como aprendeu em criança. Dizia que era por um sentido de justiça: se hoje não perdera o h, por que hontem perderia? Não se importara com a perda do ph, mas com o h do ontem…

Dizem que o acordo nasceu da idéia de unificar a nossa escrita nos diversos países de língua portuguesa, para facilitar a leitura e seu aprendizado.

Procuro me adaptar para quando for obrigatório. Já acabei com o trema. Procuro seguir as regras do hífen. Tento acertar com o para sem acento algum… mas não tenho tido muito sucesso. Ainda bem que não é obrigatório, ainda. Resistem bravamente os portugueses.

Meu filho tem um exemplar do Aurélio que recebeu do pai ao completar 11 anos, com a seguinte dedicatória: “O valor de um homem está no seu saber e no seu espírito de solidariedade. Teu pai, Alfredo”. Homem culto, muito inteligente, português de Vilarinho, Vila do Conde, apaixonado por sua língua, imagino o que diria das redações do Enem se ainda estivesse entre nós. Que ia cuspir marimbondos, ia.

Pois eu, além de cuspir os tais marimbondos, fico é ofendida. Se as crianças francesas entra século, sai século, escrevem philosophie, pharmacie, photographe, etc., sem que sua vida intelectual perca em qualidade, por que aqui tivemos que dispensar o ph da pharmácia?

Teremos menos neurônios que os franceses?

 Março de 2013

Em tempo: Este site, assim como boa parte dos jornais portugueses, não segue as regras do acordo ortográfico. (Sérgio Vaz) 

7 Comentários para “Navio perdendo a rota”

  1. Nosso idioma não é mesmo dos que se entregam com facilidade.
    Meu pai, que nasceu na Alemanha, achava a língua portuguesa bem difícil. Estudou bastante o idioma, e seu vocabulário era maior que o de muitos nativos.
    No entanto, ele se incomodava muito, por exemplo, com o uso que fazemos do ‘pois sim’ e do ‘pois não’.
    Dizia ele: “Se alguém me convidar para ir a algum lugar e eu não quiser ir, digo ‘pois sim’. Se quiser ir, digo ‘pois não’. Ora, isso está invertido!!!”

    Outra coisa com a qual ele implicava muito era com a palavra ‘açougueiro’. Na lógica dele, quem vende pão é padeiro, quem vende leite é leiteiro. Portanto, quem vende carne deveria ser ‘carneiro’. E ele só se referia ao profissional das carnes como ‘carneiro’.

    E, para terminar, a lógica mais imbatível do raciocínio dele: a palavra ‘um’ é artigo masculino indefinido e também é um numeral. Como artigo masculino, ele tem o feminino ‘uma’ e o plural ‘umas’, mas meu pai não entendia porque o ‘dois’ (que não é artigo) tinha o feminino plural ‘duas’ se não existe ‘tresa’, ‘quatra’, ‘cinca’ etc.
    Resultado, ele flexionava todos os numerais!
    ‘quatras’ camisas, ‘cincas’ batatas, ‘oitas’ lâmpadas e assim por diante…

    Beijo, Maria Helena. Bom ler você.

  2. E meu pai, RaPHael teve tantos problemas com documentos oficiais aqui no Brasil. Havia gente que não entendia por que seu nome levava o PH e não o F. “Como assim, com PH”?
    Mas isso talvez seja o de “menas”. Houve quem achasse engraçadinho (e até criativo!) terem feito redações com receitinhas anamariasbraga.
    Valha-nos Senhor!

  3. Os homes tá qua razão.
    Nos arranja otro lugar.
    Saudosa maloca, maloca querida.
    Donde que nos passemos dias feliz
    De nossa vida.

  4. Pois é, Miltinho, mas se você soubesse a imensidão do sacrifício dele para que eu pudesse ter a chance de estudar e me instruir, você, como eu, conseguiria o que só consegui depois de muita terapia e amadurecimento: dar enorme valor a um homem que conseguiu dizer a que vinha até em italiano, como no seu lindo “Piove”, apesar do pouco estudo e da luta pela sobrevivência que foi dura, muito dura.

  5. Leninha.
    Com muito amor e inteligência o autor das mais belas passagens da música brasileira, escrevia veradeiras aulas de vida sem se preocupar com o português acadêmico. Sua linguagem era a linguagem do povo. Até hoje cada tábua que caí doi no meu coração.
    Dói ainda no coração a imensidão de críticas aos estudantes que fizeram as redações da forma que entenderam. A tal chamada LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Com seu português coloquial, eles fizeram uma crítica a estupidez do Enen. Pior que isto são as provas da OAB, onde depois de 5 anos de estudo em faculdades privadas, a repovação chega a 88% dos inscritos.
    Cara Leninha, passados os 90 anos, Adoniram fez escola, os brasileiros continuam críticos, de forma inteligente e popular, sem academicismos, criticam nosso estágio educacional mesmo sendo duramente criticados pelos eruditos. Viva o Brasil, ainda há esperança, MarinaS neles.

  6. Falta esclarecer porque o léxico do nosso idioma é tão extenso, com tantas palavras.

    Teria a nossa língua, com a sua origem provençal e as influências árabes, se “enriquecido” nas cortes palacianas em Lisboa, cujos ocupantes mal tinham o que fazer – e, diante do tédio da vida na Corte, tenham se entretido acrescentando mais e mais vocábulos ao idioma, gerando futuros transtornos àqueles que tentam aprendê-la em sua plenitude?

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