Adriana Calcanhotto é mulher de mil caras. Se fosse atriz, seria do tipo Meryl Streep, Bridget Fonda, Carey Mulligan, que em cada filme têm uma cara – nunca, por exemplo, do tipo Meg Ryan ou Keira Knightley, duas gracinhas, mas que têm a mesma cara em todos os filmes, sejam comedinhas ou dramas pesados.
Já foi loura de cabelinho curto, como aparecia nas capas dos primeiros discos, Enguiço (1990, na foto abaixo) e Senhas (1992). Depois, por muitos anos foi morena de cabelinho bem curto. Parecia uma garotinha sapeca. Manteve esse visual até 2012, quando lançou Micróbio Vivo, o disco ao vivo com base fundamentalmente em O Micróbio do Samba, de 2011.
Depois, em 2012, deixou crescer os cabelos. Se eu não estou enganado, foi a primeira vez que deixou crescer os cabelos desde 1990.
A Adriana Calcanhotto que apareceu no palco do belo Teatro Bradesco, no Shopping Bourbon, na Pompéia, para uma única apresentação de Olhos de Onda, seu show só voz e violão, na quarta, 8 de maio, não tinha nada a ver com a garotinha sapeca da capa de tantos discos, entre A Fábrica do Poema (1994) e o mais recente, o Micróbio Vivo.
A que surgiu para uma platéia educada, mas calorosa e fidelíssima de 900 pessoas, em São Paulo, foi uma Adriana Calcanhotto versão jovem senhora. Usava em belo vestido de seda verde água, comprido, até os pés. Os cabelos estavam presos para trás – não era possível ver o comprimento dos cabelos. A rigor, o rosto parecia da mesma Adriana de cabelos pretos da maior parte das duas últimas décadas.
Sentou-se na cadeira colocada no centro do gigantesco palco, violão ligado à eletricidade, e começou uma apresentação irrepreensível que durou uma hora exata, talvez um pouquinho mais.
Voltou para três canções como bis.
Antes de cantar a terceira e última canção do bis – “Mentiras”, sucesso antigo, do disco Senhas de 1992 –, soltou os cabelos.
Estão longos, imensos, os cabelos de Adriana Calcanhotto versão abril-maio de 2013, a Adriana Calcanhotto 47 anos de idade.
É uma mulher linda.
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Adriana é ótima cantora. Seu timbre de voz é extremamente agradável, gostoso – e ela consegue fazer com a voz dela o que bem entender, como diz Mary. Passa do mais agudo ao mais baixo com a tranquilidade de quem diz bom dia.
Sua voz é expressiva. Adriana é moça culta, cultivada; cantores não precisam ser cultos, cultivados, para serem bons, mas, quando são, são ainda melhores.
Adriana é ótima violonista. Teve problemas de saúde, foi operada de um quisto no pulso, e ficou bom tempo sem tocar violão. Voltou agora, para este espetáculo, e se mostra em excelente forma. No único show em São Paulo, demonstrou destreza inclusive em aumentar o volume do violão elétrico para se sobrepor às vozes da sua platéia quando achava que as vozes da platéia não deveria não deveriam se sobrepor à dela.
(A platéia, repito, era educada, calorosa e fidelíssima. Boa parte das 900 pessoas que pagaram ingressos bem caros, variando entre R$ 290,00 e R$ 120,00, estes últimos em frisas do terceiro andar, com visão prejudicada, sabia de cor e salteado as letras da imensa maior parte das canções, e, em alguns trechos das músicas mais conhecidas, e mais doídas, tornava-se, para aqueles fãs, impossível não cantar junto. As pessoas cantavam baixinho, mas o som de 500 vozes cantando baixinho é alto. Em um momento, Adriana permitiu que a platéia fizesse o show, ela apenas no violão.)
Adriana é ótima letrista. Às vezes compõe melodia para outros letristas, poetas, mas em geral é ela mesma a autora das letras. Escreve bem, excepcionalmente bem, a moça. Consegue misturar com maestria frases aparentemente banais, simples, com imagens extremamente elaboradas.
Conheço menos as letras de Adriana do que deveria, percebi, ao longo do belíssimo espetáculo. Tenho nove discos dela, ouço bastante suas músicas no iPod e no som da sala, mas a verdade é que deveria prestar mais atenção às letras dela – porque são maravilhosas.
Mary, que é sempre mais rápida, mais perspicaz do que eu, notou que muitas das letras de Adriana são exageradamente passionais. Adriana é um tanto Cazuza – exagerada. Adriana é assim meio exagerada tanto quanto Cazuza, tanto quanto seu conterrâneo Lupicínio Rodrigues.
Não por coincidência, quando voltou para o bis, Adriana cantou Lupicínio. A platéia – embora educada, como já disse duas vezes – ousou pedir músicas, quando ela voltou ao palco. Acho isso um horror, um absurdo, mas algumas pessoas pediram músicas. E Adriana disse: “Tá, eu vou cantar ‘Mentiras’. Mas, antes, vou cantar uma outra música. Vejo que está ali, e me sinto extremamente honrada, Augusto de Campos.”
(O poeta estava numa das primeiras filas. Será que Adriana tinha visto? Ou alguém da produção falou com ela?)
E aí atacou de “Nunca” – “nunca, nem que o mundo caia sobre mim, nem se Deus mandar, nem mesmo assim as pazes contigo farei”.
E, além de tudo, a cantora Adriana sabe recriar canções gravadas por outros. Não são muitas as canções de outros que Adriana canta. Um Chico aqui, um Caetano ali, um Roberto acolá – e também um original da dupla Renato Barros-Lilian Knapp, “Devolva-me”.
Ouvir a regravação de Adriana de “Onde Andarás”, a canção genial de Caetano sobre letra do poeta Ferreira Gullar é uma maravilha. Ouvir a regravação de Adriana de “Já passou”, beleza menos conhecida de Chico, é outra maravilha. Mas regravar Caetano ou Chico é garantia de coisa boa.
Adriana trouxe para novas gerações perolinhas da Jovem Guarda – “Devolva-me”. E trouxe de volta Roberto, em “Do Fundo do meu coração” e, sobretudo, “Por isso corro demais”.
As novas gerações não compreendem a genialidade de Roberto. Minha própria filha acha Roberto um brega chato – e isso me deixa profundamente infeliz. Pois Adriana repõe Roberto para esses jovens.
Quando Adriana começou a tocar os primeiros acordes de “Devolva-me”, o Teatro Bradesco veio abaixo.
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Então é assim:
Adriana é ótima cantora, é ótima violonista, é ótima letrista. Mas, sobretudo, acho, Adriana é ótima compositora, melodista.
As melodias de Adriana são especialmente belas. Têm uma marca, um DNA forte. São personalíssimas. Das canções dos primeiros discos até as dos mais recentes, as melodias de Adriana têm um jeito Adriana. É esquisito dizer isso, porque são pessoas completamente diferentes, mas a melodista Adriana tem marca específica assim como a melodista Joan Baez.
Acho que não haveria elogio maior a Adriana do que dizer que ela compõe melodias tão belas, e tão pessoais e intransferíveis, quanto Joan Baez.
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Olhos de Onda foi um recital criado para Portugal. Em abril, entre os dias 12 e 27, a brasileira meio gaúcha, meio carioca (como a definiu, corretamente, o português Jornal de Notícias) fez apresentações em Lisboa, Torres Novas, Porto, Leiria, Castelo Branco, Ponta Delgada, Angra do Heroismo e Lisboa de novo.
As duas maiores cidades, Lisboa e Porto, e várias cidades bem pequenas. Adriana parece ter uma ligação especial com Portugal, com as cidades menores do interior do país.
“Não acharia bem atuar no Porto e em Lisboa e voltar para o Brasil, gosto de andar pelo país”, disse ela, em entrevista ao Jornal de Notícias. “Há cidades onde vou estar que não conheço – estou curiosíssima. E também tenho muitas lembranças maravilhosas, há lugares que adoro, como o Alentejo – onde não vou desta vez, mas vou voltar à Madeira e aos Açores. Estou muito animada. Gosto muito de conhecer, de descobrir lugares novos. As pessoas são tão calorosas. Portugal é um país pequeno com muita diversidade, as regiões são diferentes, os sotaques também, as vidas, as pessoas. É muito bom voltar a pôr o pé na estrada em Portugal.”
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Ela escreveu este texto para acompanhar os cartazes que anunciavam sua turnê lusitana – cartazes em que aparecia com os longos cabelos soltos que, em São Paulo, guardou apenas para a canção de encerramento:
“Quando recebi o convite para me apresentar em Lisboa em formato solo, nas comemorações de vinte anos da casa onde cantei na cidade pela primeira vez, disse sim na mesma hora. Não tinha um show preparado, não tocava há muito, não saberia se conseguiria e até aqui, sinceramente, não sei, mas por isso mesmo. Andava doida para retomar o violão, portanto para inventar um roteiro pensado para Portugal, para pegar a estrada, pela janela do quarto, pela janela do carro trancafiada em quartos de hotel, tocando compulsivamente para que o show seja lindo e inesquecível enfim, o convite de Portugal era tudo o que mais eu podia querer no momento em que ele chegou. Depois de pegar a estrada seca, com Diogo ao volante, comer doces de ovos de Aveiro, partir atrás das baleias açorianas, ir ao Fado, me emocionar cantando meus poetas amados para pessoas, pensando bem, o que mais alguém poderia querer?
“Tomar e retomar o violão é uma constante na minha trajetória, aliás, desde que me apaixonei pelo instrumento, criança ainda. Uma das minhas memórias mais antigas, na casa da minha avó, é um violão que havia lá e que me fascinava embora parecesse (e fosse realmente) um objecto enorme, impossível para mãozinhas. Nas memórias mais antigas, em que as pessoas são gigantes e as casas grandes palácios, aquele instrumento era monumental, mas lembro bem das minhas primas achando engraçado o meu deslumbramento e me alcançando o violãozão para fazer algum barulho, coitadas.
“Sempre convivi com os mais diversos instrumentos porque os ensaios dos conjuntos onde meu pai tocava eram na garagem da nossa casa.
Meu padrinho, Leo Belloni, era violoncelista, tocava junto com meu pai (baterista) e me deu uns toques básicos e fundamentais do violão e de como conviver com ele, contaminado que era pelo micróbio do samba. Ele morreu cedo e não pude conviver e aprender mais, mas acredito que ele tenha sido responsável por desmistificar o necessário para que eu me aventurasse, em vez de escolher qualquer outro instrumento.
“Certamente foi ele que orientou a minha (outra) avó na escolha do primeiro violão, presente de aniversário dos meus seis anos, e que eu não esperava.”
9 de maio de 2013
Bom texto, boa pauta. Adriana Calcanhoto me foi revelada, anos atrás, através de propaganda veiculada nas rádios e tvs onde emprestava seu talento e voz ao partido comunista, PCB, vulgo “partidão”. Conquistou o Brasil e seu espaço.
Todos os elogios são mais que merecidos para a cantora, compositora, letrista e melhor ainda intérprete. Sem, é claro, falar no rosto lindo, complemento desnecessário para tanto talento.
Talento nacional, gaúcha sim mas reverenciando os cariocas bonitos e tão legais e também os portugueses.
Adriana canta para plateias exigentes e intimistas. Canta em espaços definidos e destinados aos artistas, não é cantora de arenas e estádios.
Gaúcha como Elis, também, verdadeira, feroz, comunista, assumida, corajosa e talentosa.
Sua apresentação não é cara, R$ 290,00 se não é preço popular é, no entanto, pouco para tanto esplendor que nada deve a Joan Baez.
ET. A filha tem razão Roberto é brega, melhor, ficou brega, colocando em dúvida a autenticidade de suas obras antigas, em especial a renegada “Quero que vá tudo por inferno”. Agora é cantor de “cruzeiros marítimos” nova versão de “churrascarias”.
Muito bom, seu Sergio.
Babei, Sérgio! Babei!
Roberto carlos sempre foi um artista de corte popular,pricipalmente no seu auge.Eu só não entendo a juventude dizer que ele é brega,e ouvir música sertaneja como se fosse chic.