Vambora

Deu um branco, e eu não sabia de quem era a música.

Quando saí de casa, estava começando “Raining in my heart”, com Buddy Holly, aquela delícia, com os violinos em pizzicato, e tudo. Como raios Buddy Holly, aquele fedelho, teve a idéia de botar violinos em pizzicato em suas canções inocentes, adolescentes, maravilhosas?

Comecei a caminhada dividido entre os pensamentos e a atenção à música nos meus ouvidos. Me lembro (a coisa aconteceu por volta das 14h30, umas sete horas antes deste momento em que escrevo) que prestei atenção ao fato de que Buddy Holly pronuncia “cause” mais como cause do cóse. Achei aquilo esquisito, me perguntei se não teria ouvido errado – mas não, não tinha ouvido errado. Daí a pouco ele repete “cause it’s raining, raining in my heart” – e ele pronuncia mais para cause do que para cóse.

Coisa de louco. Será que no Texas “cause” se diz cause em vez de cóse? Mas não reconheço sotaque algum na voz de Buddy Holly – pelo que eu entendo, ele canta em inglês americano escorreito, normal, genérico, sem um sotaque específico. Mais ou menos como John, Paul e George, fãs de Buddy Holly, que, quando falam, falam em liverpoolnês, mas, quando cantam, cantam em inglês normal, genérico, sem um sotaque específico. Ou como Nelson Gonçalves, que, quando falava, era irremediavelmente gago, mas, quando cantava, não tinha nada, nadinda, neca de gagueira.

Mas estou tergiversando.

Quando começou a música seguinte, a que o shuffle do iPod resolveu tocar depois de “Raining in my heart”, deu um branco, e eu não sabia de quem era a música.

Uma espécie assim de cartão de visita do Alemão?

“Olá, senhor. Eu estou chegando, tá?”

De imediato, percebi que era uma cantora veterana, de antes do tempo dos meus ídolos. Era uma bela voz, belíssima, forte, cheia – mas com aquela nítida, óbvia, clara forma de cantar que era usual antes dos anos 50 e muitos, 60 e poucos. Levei alguns segundos sem saber quem era. Pensei em Elizeth Cardoso; não, é claro que não era Elizeth. Nora Ney? Dalva de Oliveira? Tenho Nora, Dalva e tantas outras grandes cantoras pré-bossa nova no meu iPod, mas, não, não era Nora, nem Dalva.

Era cerca de 2h30 da tarde do sábado de Aleluia, e o sol estava de rachar. Tinha lembrado de botar um boné para proteger a careca, mas o calor era sufocante. Eu descia a Vanderlei em direção à Sumaré: iria passar na farmácia, e depois seguir para a casa de repouso em que está minha irmã. Ver minha irmã tem sido uma tortura da qual sempre tento fugir como o diabo da cruz, e para a qual me dou como quem dá-se ao carrasco, para usar a frase magnífica, genial, de Chico Buarque.

A hesitação quanto à cantora durou pouquíssimos segundos: Bibi Ferreira! Claro, Bibi Ferreira!

Mas, raios, de quem é essa música com essa letra tão absolutamente jovem, moderna, tão loucamente urbanóide?

Cazuza? Será Cazuza? Não, não, não é. Renato Russo, então? Não, não, também não. Zeca Baleiro?

É letra de bamba, de quem manja muito das palavras.

Será Chico? Uma dessas canções mais recentes de Chico, absolutamente lindas, brilhantes, mas que a gente não consegue mais guardar tão bem na memória porque, afinal de contas, o buffer está cheio demais?

Mas, diacho, como teria Bibi gravado uma canção recentíssima de Chico?

A Vanderlei é uma rua íngreme como deveria ser proibido haver. É uma montanha. Quem anda pela Vanderlei, assim como por tantas ruas de Perdizes, na verdade escala montanhas – ou, como no meu caso ali, desce de montanhas,

A sabedoria popular diz que pra baixo todo santo ajuda, mas acho que isso é verdade só parcialmente. Pra baixo, quando a montanha é íngreme demais, você tem que ir tomando cuidado para não perder o equilíbrio e esborrachar no chão. Especialmente quando você é velhinho, e está perdido em pensamentos, tentando rastrear os arquivos procurando identificar quem é o autor da música que está entrando nos seus ouvidos.

Adriana! Claro, claro, claro. Essa coisa de paixão extremada, furiosa, aberta, escancarada. Isso é Adriana pura e simples. (Regina teve uma época em que ficou contra paixões extremadas, furiosas, talvez por não gostar da que eu tinha por ela. Xingou um disco de Leonard Cohen, sem ter ouvido direito, porque achou que ele estava apaixonado demais. Que figura!)

É, Adriana, sim, sim, Adriana.

Bibi Ferreira está cantando Adriana. Fascinante Bibi Ferreira. Quando Adriana nasceu, em 1965, Bibi era uma artista absolutamente consagrada, veterana, aos 43 anos de idade. E está aí firme e forte, apostando no velho e no novo.

Puxei o iPod para fora da bolsa, para checar: claro, era Bibi Ferreira, e o nome da canção é “Vambora”. Não estava ali o nome do compositor – mas a essa altura eu já não tinha dúvida. Sim, sim, é Adriana Calcanhotto.

***

E daí?

Sei lá. No momento em que identifiquei que era de Adriana Calcanhotto a canção que Bibi Ferreira cantava nos meus ouvidos (naquele momento, acho que eu estava chegando ao fundo do vale, à Sumaré), pensei que seria gostoso escrever um textinho sobre essa coisa de dar um branco e você não reconhecer direito a música que está tocando no seu ouvido.

Já faz bastante tempo que minha filha definiu, em seu perfeito paulistês: “Tudo na sua vida agora vira texto, paiê”.

Este texto não tem significado qualquer. Mas escrevê-lo está me dando grande prazer. Penso em outro verso: “Como é bom poder tocar um instrumento”.

O verso de Caetano é magistral, sacada de gênio.

Cada pessoa deveria saber tocar um instrumento, qualquer um que fosse.

Até colecionar selo pode ser tocar um instrumento.

Para mim, este teclado aqui é um instrumento. O exercício de vir aqui e ensaiar juntar palavras me dá um prazer quase tão maravilhoso quanto ver minha mulher, minha filha, minha neta.

Meu Deus, como sou uma pessoa de sorte grande!

***

Este texto, especificamente, foi muito gostoso de fazer. É muito íntimo, no entanto, e talvez não devesse ser publicado no 50 Anos de Textos. Mas, vendo de outro lado, ele fala de uma bela canção de Adriana Calcanhotto, essa maravilha. E este site anda precisando de textos que falem de outras coisas que não a constatação de que o país vai mal, mas vai muito mal, mas vai mal demais.

E então publico.

E depois vou querer ouvir “Vambora” no mínimo umas três vezes seguidas.

4 de abril de 2015

Ouça “Vambora” com Bibi Ferreira.

E, aqui, “Vambora” com Adriana Calcanhotto. Ah, meu… que maravilha! 

Eis a letra: 

Entre por essa porta agora

E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem, vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Por que meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Dentro da noite veloz”

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
“Na cinza das horas”

2 Comentários para “Vambora”

  1. Textinho JÓIA, singelo e descompromissado.

    O bombardeio negativista nas manchetes e comentários pode agradar ao fígado e projetos de alguns jornalistas, políticos e empresários envolvidos na batalha entre petistas e antipetistas, mas já está saturando o público, que num impulso de sobrevivência social passa a olhar para o outro lado.

    Vambora,vamos caminhar vovô!

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