Tive a honra de trabalhar com Fernando Falcão como arranjador e instrumentista num disco que ele fez com Zé da Flauta chamado Engenho dos Meninos.
Tem uma história desta gravação que, para mim, diz tudo da pessoa Fernando Falcão.
Ele queria gravar uma música no disco chamada “Épico”. O problema é que só tinha a melodia (lindíssima) e mais nada. Eu pedi a Tião (técnico de som do estúdio DB3) para abrir uma salinha isolada e chamei Fernando pra lá. Ele cantou a melodia. Eu transcrevi tudo e disse: deixa comigo.
Voltei na sessão seguinte com tudo pronto, harmonização e arranjo. Era um arranjo bem complexo para piano, flautas, naipe de cordas e percussão (claro!). Ficou uma composição bem lenta, com um andamento interpretativo e flutuante, exatamente como ele havia cantado pra mim. Tivemos que ir gravando o arranjo por partes já que, com exceção das flautas e percussão, eu tive que executar todo o resto.
Fernando entrou no estúdio quando tínhamos acabado de gravar o piano base e estávamos começando a gravar as cordas. Ele ficou puto! Começou a reclamar com Zé da Flauta que aquilo estava horrível! Zé, que já tinha sacado como ia ficar no final, pediu calma a ele, se abraçou com ele e disse: “Vamos lá fora que eu preciso conversar contigo” – e enquanto saía da técnica, olhou pra mim e disse: “Mete bronca! Vai em frente!”. Saíram e não voltaram mais o resto do dia.
Na sessão seguinte, Zé tinha que pôr as 5 flautas do arranjo que faltavam. Conseguiu vir sozinho, sem Fernando, e “matou” as flautas com perfeição.
Faltava somente a percussão. Fernando entrou no estúdio bem desconfiado, como se estivesse prestes a ter a maior decepção da sua vida.
Tião soltou a fita. Fernando ouviu tudo de olhos fechados e cabeça baixa, praticamente imóvel. Eu, muito tenso, esperando o pior tanto quanto ele.
Quando a música terminou, ele levando a cabeça lentamente, olhou com os olhos marejados pra mim, e, sem emitir um único som, me deu um abraço bem longo e apertado.
Nada mais era necessário. Eu tive, ali, toda a recompensa de que eu precisava.
Setembro de 2012
Uma nota
Mario Lobo, músico, compositor, pianista, arranjador, enviou o texto acima para este site como um comentário sobre o meu post “Fernando Falcão, um nome que devia ser gravado”.
Achei que era um relato interessante demais, belo demais, para ficar apenas abaixo do post – que é a resenha de um disco de Fernando Falcão que escrevi no Jornal da Tarde, em 1981.
Mário Lobo lembra que a música “Épico” pode ser ouvida no YouTube. Lá estão registrados os créditos:
“Épico”, mpusica de Fernando Marinho Falcão & Zé da Flauta, no disco Engenho dos Meninos, de Fernando Falcão & Zé da Flauta, 2003. Poema “Passarinho”, de Fernando Falcão (do livro O Avarento & o Vento, com prefácio de Alceu Valença), declamado por Daniel Taubkin. Percussões: Fernando Marinho Falcão. Sexteto de flautas & samplers: Zé da Flauta. Piano & arranjo: Mario Lobo. Gravado no estudio DB3, em Recife, Pernambuco, de maio a julho de 1989, por Sebastião do Valle & Luizinho Referencia.
Agradeço ao Mario Lobo por ter mandado o texto, uma bela homenagem a um grande músico que não teve o reconhecimento que merecia.
Sérgio Vaz
Me sinto honrado de ter isto em minha memória, e de ter tido a opertunidade de compartilhar aqui.
De coração, meu muito obrigado.
Este disco é uma pérola . E os participantes dispensam comentários. O texto do Mario Lobo mostra a sensibilidade do Fernando e mostra também que discos com participações tão especiais como a do Mario, tornam-se atemporais. Parabéns pelo texto. Gente sensível quando se junta é assim . Realizam coisas lindas. O disco é lindo .
Belo texto, lindo disco