Fernando Falcão, um nome que devia ser gravado

Seguramente é mínimo o número de pessoas que já ouviram sequer falar de Fernando Falcão, o artista que se apresenta; a partir de hoje e até o próximo dia 5 (este texto é de abril de 1981), na Sala Guiomar Novaes. Mas é possível dizer, também com segurança, que este nome hoje praticamente desconhecido passará a ser cada vez mais falado. Nunca, é claro, como o de um Julio Iglesias. Mas com um respeito e uma admiração devida a gente como, por exemplo, Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos, Hermeto Paschoal, Airto Moreira.

Porque o não reconhecimento do talento de Fernando Falcão seria, simplesmente, uma absurda injustiça.

É o que fica claro ao se ouvir Memória das Águas, o LP que Falcão, paraibano de nascimento, há dez anos radicado na França, está lançando agora, juntamente com a estréia de seu espetáculo. É um lançamento independente, através de um selo novo, Poitou Produções Artísticas Ltda. O fato de ser uma produtora independente, nova e pobre, pode causar problemas na distribuição do disco, que talvez não vá chegar a muitas das lojas da cidade. Mas quem encontrar o disco será plenamente recompensado.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, se a distribuição do disco for pobre, quase marginal, isso não tem nada a ver com a sua produção. Não é um disco artesanal, feito em um porão ou uma garagem; a gravação foi feita, em 1979, em um estúdio parisiense, com todos os recursos que se poderiam exigir, e com uma série de músicos – franceses e brasileiros – absolutamente competentes.

Fernando Falcão – cuja única apresentação anterior para um grande público, no Brasil, foi no Festival de Verão do Guarujá, em fevereiro deste ano, diante de cinco mil pessoas – prefere dizer que o que faz é apenas música popular brasileira, e não um som de vanguarda. É música popular brasileira, certamente – e também música de vanguarda, com tons de música erudita, com pitadas de jazz, com corajosa e moderna demonstração de respeito pelas raízes africanas.

As oito faixas de seu LP (todas de sua autoria, com arranjos dele e de um desconhecido, José Luiz Castiñeira de Diós) são músicas de vanguarda, sim. (No Festival de Verão, por exemplo, o vanguardista Arrigo Barnabé afirmou, bem-humorado, ao entrar no palco depois de Falcão: “Depois daquele percussionista louco, o que a gente fizesse estava tudo bom…”). Mas é preciso dizer, especialmente àqueles a quem a vanguarda assusta, que a música de Fernando Falcão é tudo isso – sem jamais ser chata.

Ao contrário. A belíssima fusão de África, Nordeste, jazz, música erudita e música moderna que o compositor e instrumentista consegue é capaz de captar a atenção (e a admiração) do ouvinte desde o primeiro momento. Como em “Memória das Águas”, a primeira faixa, que se inicia com os instrumentos de percussão construídos pelo escultor francês François Lalanne, e que fazem a água produzir belíssimos sons, lembrando o clima de “Lux Aeterna”, de Gyorgy Ligeti, usada por Stanley Kubrik em “2001, Uma Odisséia no Espaço”; até que esse clima se vai diluindo, com a entrada emocionante, dos instrumentos de corda e sopro, construindo uma melodia bem próxima do clássico. Ou como em “Revoada”, em que o som erudito dos violinos, acompanhado por instrumentos de percussão que recriam o trinar de pássaros, dá lugar à flauta e ao violão descaradamente nordestinos.

Depois de se ouvir o disco, é difícil, de fato, acreditar que o nome de Fernando Falcão continue por muito tempo praticamente desconhecido.

 Umas considerações

A resenha acima foi publicada no Jornal da Tarde em 1º/4/1981.

Errei. Fernando Falcão não ficou conhecido, não teve o respeito e a admiração que têm Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos, Hermeto Paschoal, Airto Moreira.

Errei feio.

É um erro de que tenho algum orgulho.

Falar bem, na grande imprensa, sobre artistas consagrados, é fácil. Falar mal também é fácil, e até dá mais ibope – uma vez falei mal de um disco do Zé Ramalho, e muita gente comentou a resenha. Foi uma das minhas resenhas mais comentadas.

Falar de gente nova, ou desconhecida, é mais difícil.

A resenha sobre o disco de Fernando Falcão foi o sexto texto sobre música que escrevi para o Jornal da Tarde – que, naquela época, era um jornal importante, grande imprensa. Antes, eu havia escrito sobre Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Baden Powell e Geraldo Pereira – nomões, artistas reconhecidos, dos maiores que havia e há. Comecei a receber discos das gravadoras. Ouvia tudo, seriamente. Ouvi o disco independente de Fernando Falcão e fiquei fascinado. Sugeri escrever sobre ele – foi a primeira vez em que não fui pautado, em que sugeri uma pauta. Permitiram que eu escrevesse.

Tenho uns pequenos orgulhos daquela minha fase de resenhista de música. De ter sido sério. De ter ouvido seriamente aqueles discos todos. De ter indicado gente boa simplesmente pelo fato de eu ter gostado – mesmo que não fosse gente conhecida, reconhecida, incensada. Denise Emer, por exemplo. Me encantei com o disco dela, e fiz uma resenha com muitos elogios. Olívia Byington, quando era muito jovem, estava começando, e ainda não era reconhecida. O Rumo, quando ainda era “um grupo novo”.

Cometi erros – como, por exemplo, dizer que Fernando Falcão ficaria tão importante quanto Gismonti. (Cometi outros erros, até piores que este. Quando Joana gravou “Nos Bailes da Vida”, de Milton e Fernando Brant, disse que era uma canção menor da grande dupla.)

Mas procurei sempre não seguir a cartilha do fale-do-que-é-muito-falado.

E fui honesto. Sempre fui honesto. 

***

O texto sobre o disco de Fernando Falcão estava aqui comigo digitado, como vários outros dos que fiz para o JT entre 1981 e 1984, prontinho para ser postado no site, quando meu shuffle do iTunes tocou “Marinheira”, canção que está no disco Romance Popular, de Nara. Cada vez que ouço “Marinheira” fico impressionado, queixo caído. A letra é de Fausto Nilo, grande letrista, uma espécie assim de Fernando Brant do Nordeste. O arranjo é brilhante, riquíssimo – lembra a grandeza de um George Martin, um Rogério Duprat. Mas a melodia é o que mais impressiona – é extraordinária, é suntuosa, é forte, é quase sinfônica, é um espetáculo. É de Fernando Falcão.  

Procurei no YouTube para dar o link – a canção não está no YouTube.

Eu errei feio quando fiz a resenha do disco de Fernando Falcão. E, ao mesmo tempo, acertei. Fernando Falcão é grande. Não ficou conhecido, reconhecido, incensado. Problema do mundo – não dele.

São Paulo, julho de 2010

16 Comentários para “Fernando Falcão, um nome que devia ser gravado”

  1. Sérgio,
    não me lembro do Fernando Falcão e, te lendo, senti uma vontade atrasada de ouvir “Memória das Águas”. Espécie de saudade do que não se conhece, acontece.
    Pra compensar minha frustração, fui atrás da caixa de CDS da Nara.
    Sempre gostei de “Marinheira”, sempre soube que a letra era de Fausto Nilo. No entanto, se, algum dia, soube que a música era de Fernando Falcão, não sabia mais. Espécie de esquecimento do que se conhece, acontece.
    A música é linda, a voz da Nara é a de sempre, suavemente comovente e, o resto, você já disse, em um texto cheio de significados.
    Texto musical, letras, acordes, arranjos, lembranças, presságios. Presságios. Se nem todos os que fazemos se realizam, isso não significa que erramos, Sérgio. Apenas as coisas aconteceram de outra forma, sob outros moldes.
    Enquanto espero seu próximo artigo, vou ouvindo Marinheira, que – felizmente – seu texto me trouxe de volta. Te agradeço.

    Beijo da
    Vivina

  2. Olá Sérgio, acabo de chegar ao seu artigo pesquisando sobre a trajetória desse genial músico brasileiro. Tenho esse disco desde os 80’s e considero uma obra inestimável, feliz em sua fusão de ritmos modernos e arcaicas sonoridades que nos remetem às nossas raízes mestiças, ao sertão armorial de influência moura ibérica e também toda Africa presente dentro de nossas brasilidades. Usei num poema visual que criei com imagens de uma longa viagem amazônica, ao qual dei o título de Memória das águas. O Brasil ainda navega no raso, não despertou para o Brasil profundo. abraço

  3. Estou com esse disco em casa, é do meu finado tio, a quem devo boa parte do meu contato com MPB, e esse disco é uma grande memória da minha infancia.
    O triste é que eu nem tenho mais vitrola para ouví-lo, mas peguei emprestado para gravar em CD e manter a memória do artista e do meu tio.

  4. Sérgio,

    Eu ouvi muito o Memória das Águas. E tinha mais um outro que eu não lembro o nome do Fernando Falcão. Eles viviam comigo até que um amigo cartunista, o Bosco, veio de São José dos Campos passar uns dias em casa. Ótimo, o Bosco, mas levou os meus discos emprestados e nunca mais voltou. Soube até que ele teve filhas gêmeas…agora com vinte anos ou mais…e eu nunca mais vi o Bosco e nem o Fernando Falcão. Hoje tenho familia de músicos e queria mostrar pra eles. Você tem um link? monicatarantino1@gmail.com

  5. Olá sergio !
    Tenho esse LP ” Memória das Águas” de Fernando Falcão, que o guardo como uma relíquia e esculto sempre.
    Esse disco é que há de melhor na música, ele é bom e novo…sempre será um som do futuro no presente !
    Por ele, tenho buscado informações de que é Fernando Falcão e como está Hoje Fernando Falcão… e não encontro nada !
    Você sabe aonde posso conseguir algo atual dele ou sobre ele ?
    Grato por escrever este texto tão honesto e verdadeiro.

  6. Fernando Falcão foi meu tio avô, não o conheci, apenas seus discos, ele morreu já há muitos anos, pelo que sei em um tipo de suicídio alcóolico, mas infelizmente não se fala muito sobre ele por aqui. http://www.myspace.com/fernandofalco …aqui há alguma coisa da produção dele.

  7. Tenho algumas outras coisas dele. Um disco Chamado Barracas Barrocas, o show do Memórias das Águas e um disco que não foi lançado. Quem quiser me mande um email em amaralfalcao@gmail.com que eu dou um jeito de passar.

  8. Sérgio, procurando no Google “Feranndo Falcão” me deparo com esta matéria. Conheci o Fernando, pessoalmente em Ubatuba,superficialmente, se é que isso fosse possível em se tratando de Fernando Falcão.Tínhamos amigos e músicos amigos em comum. Pude ouvi-lo antes desses tempos de Ubatuba e sempre encarei esse “anonimato” como mais um dos grandes erros da história musical do Brasil. Hoje uma pessoa me enviou um email perguntando quem detém os direitos autorais de suas músicas, pois ela quer utilizá-la num filme. Como se faz isso? Consulto ECAD? Obrigada. Márcia

  9. Olá, Márcia. Muito obrigado pela mensagem. Mas não sei muito como ajudar no pedido que você faz, sobre a autorização para uso de músicas do Fernando. Talvez você pudesse falar com o Acaio Amaral Falcão, sobrinho-neto do compositor, que gentilmente escreveu aí acima: amaralfalcao@gmail.com.
    Um abraço, e boa sorte!
    Sérgio

  10. Tive a honra de trabalhar com Fernando Falcão como arranjador e instrumentista num disco que ele fez com Zé da Flauta chamado
    “Engenho dos Meninos”.

    Tem uma história desta gravação que pra mim, diz tudo da pessoa Fernando Falcão.

    Ele queria gravar uma música no disco chamada “Épico”. O problema é que só tinha a melodia (lindíssima) e mais nada. Eu pedi a Tião (tecnico de som do estudio DB3) para abrir uma salinha isolada e chamei Fernando pra lá. Ele cantou a melodia. Eu transscrevi tudo e disse: deixa comigo. Voltei na róxima sessão com tudo pronto, harmonização e arranjo.

    Era um arranjo bem complexo pra piano, flautas, naipe de cordas e percussão (claro!). Ficou uma composição bem lenta, com um andamento interpretativo e flutuante, exatamente como ele havia cantado pra mim. Tivemos que ir gravando o arranjo por partes já que, com exceção das flautas e percussão, eu tive que executar todo o resto.

    Fernando entrou no estudio quando tinhamos acabado de gravar o piano base e estavamos começando a gravar as cordas. Ele ficou puto! Começou a reclamar com Zé da Flauta que aquilo tava horrível!. Zé, que ja tinha sacado como ia ficar no final, pediu calma a ele, se abraçou com ele e disse: “Vamos lá fora que eu preciso conversar contigo” e enquanto saia da técnica, olhou pra mim e disse: “mete bronca! vai em frente!”. Sairam e não voltaram mais o resto do dia.

    Na sessão seguinte, Zé tinha que por as 5 flautas do arranjo que faltavam. Conseguiu vir sozinho, sem Fernando e “matou” as flautas com perfeição.

    Faltava somente a percussão. Fernando entrou no estudio bem desconfiado, como se estivesse prestes a ter a maior decepção da sua vida.

    Tião soltou a fita. Fernando ouviu tudo de olhos fechados e cabeça baixa, praticamente imóvel. Eu, muito tenso, esperando o pior tanto quanto ele.

    Quando a música terminou. Ele levando a cabeça lentamente, olhou com os olhos marejados pra mim, e sem emitir um único som, me deu um abraço bem longo e apertado.

    Nada mais era necessário. Eu tive ali, toda a recompensa que eu precisava.

  11. Caros. Eu tive o prazer de trabalhar neste show de 81 na sala Guiomar Novaes. fiz a iluminação do show a convite do diretor José Antônio de Souza. Eu tive um LP que emprestei e nunca me devolveram. Eu adoraria poder ouvir novamente este disco? Encontrei no YouTube a Curimã e fiquei muito feliz? Adoraria poder receber contato de alguém que tenha o disco para poder fazer uma copia

  12. ouvi fernandofalção em 1981 sou d eporto alegre ouvi na radio ipanema tenho este disco

  13. Conheci Fernando Falcao muito bem, na casa de minha mãe, que dirigia e criou a sala Guiomar Novaes, onde Fernando tocou. Guardo os dois discos dele comigo desde então, era uma pessoa intensa , um artista por todos os poros. Era divertido também. Nos morávamos na rua Itapeva esquina com a Pamplona, e Falcão passava alguns tempos por lá. Grande matéria a sua no JT… Feliz de encontrar essas referências e saber que hoje seus dois discos foram relançados em 2020! Na Wikipedia consta que ele publicou um livro de poemas… alguém tem? Obrigada, marilialibrandi@gmail.com

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