E então Donovan Philips Leich está no Rock and Roll of Fame!
Foi em abril – longínquos, distantíssimos quatro meses atrás, se formos levar em conta a velocidade destes novos tempos, em que uma notícia de meia hora atrás já é velha. Mas só fiquei sabendo disso agora ao zapear, na madrugada, antes de dormir.
E então o próprio Donovan apareceu, em carne e osso. Carne, osso e muito cabelo – e cabelo preto!
Fez um discurso muito doidão, flower power puro.
E depois atacou de “Season of the Witch”.
“Season of the Witch”, na minha pobre opinião, é uma música danada de chata. Como, aliás, quase tudo que Donovan fez que se aproxima do que se convencionou chamar de rock’n’roll.
O Donovan roqueiro é um chato de galocha. (Naturalmente tudo o que falo é sempre na minha opinião, que não vale lá grandes coisas.)
Mas a questão é que Donovan é tão roqueiro quanto eu sou um físico quântico.
Donovan é folk.
O Donovan folk é uma maravilha, um esplendor, uma delícia.
Depois fez coisas eletrificadas, para seguir a onda. Usou às vezes pitadas de jazz, de music hall inglês – e criou maravilhas. Mas o que fez mais perto do rock é o pior de sua obra, coisas chatas de galocha.
Não existe, e provavelmente não existirá jamais, um Folk Hall of Fame. Folk não tem o mesmo charme marqueteiro do rock.
O rock – dizia o catalão Juan Manuel Serrat – é um xerife, um ianquão matador, que, quando sai às ruas, expulsa delas tudo o que de mais existe.
Segundo Serrat, em “Cuando duerme el rock’n’roll”, só quando o xerife rock & roll tira as botas, o cinturão com os revólveres, e enfim vai dormir, é que os duzentos e outros milhões de tipos de música conseguem sair às ruas:
Y ronda lunas y balcones el bolero.
Y un blues, sentimental, se desangra en la acera
viendo como la cumbia mueve las caderas
mientras, indiferente, el vals gira en el cielo,
un dos tres,
un dos tres,
un dos tres,
y con su viejo smoking
y sus zapatos de charol
taca taca taca tac…
salpica charcos el claqué
cuando duerme el rock’n’roll.
Y se echan a las calles el mambo, la rumba,
la guaracha, el joropo y el cha-cha-chá
y algún que otro vallenato berraco que busca
el camino de vuelta a Valledupar,
cuando duerme el rock’n’roll,
cuando duerme el rock’n’roll.
Se escabullen de sus guetos cuando duerme el rock’n’roll.
Na noite multimelodiosa de Serrat em que o xerife rock’n’roll está dormindo, e todos os demais ritmos saem pelas ramblas, felizes, não há o folk. Tadinho do folk: não entra na polifonia catalã, não tem direito a um Hall of Fame para chamar de seu.
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Na música e no cinema, as Ilhas Britânicas, aquele pequeno arquipélago à esquerda da Europa cujo território, somado, não deve dar nem uma quarta parte do Texas, mantêm uma saudabilíssima relação de troca com a maior de todas as suas muitas colônias. No cinema, diretores e atores ingleses estão permanentemente presentes em tudo o que se faz nos Estados Unidos. E, no caminho oposto, grandes atores americanos participam do cinema inglês.
Na música, essa relação de lá para cá funciona ainda mais. Um influencia o outro, o outro influencia o um, ao longo dos séculos. Os Stones, Van Morrison, Eric Clapton, Dire Straits, Joss Stone existem porque antes deles existiram na América o blues e o rythym’n’blues, surgidos da união das tradições dos colonizadores britânicos com os escravos trazidos da África e seus filhos.
Da mesma maneira, na direção contrária, o folk americano existe porque é filho direto das canções tradicionais da Inglaterra, da Escócia, da Irlanda, do País de Gales. As famílias que emigraram para aquela quantidade absurda de terra do outro lado do oceano levaram as canções que tinham aprendido com seus pais, avós, tataravós.
E foi por causa disso que existiram Pete Seeger, os Weavers, e depois Joan Baez, e depois Bob Dylan, e, ao mesmo tempo que ele, dezenas de grandes artistas que se formaram na tradição do folk, mas acabariam sendo menos conhecidos por causa do tamanho incomensurável do talento de Dylan – Eric Anderson, Phil Ochs, Tom Paxton, Tim Hardin, Kris Kristofferson e tantos outros.
E, antes de todos eles, Woody Guthrie.
Dylan lançou seu primeiro disco em 1961, copiando Woody Guthrie descaradamente. Vendeu pouquíssimo. Seu segundo disco saiu em 1963. Continha, entre outras genialidades, “Blowin’ in the Wind”.
Donovan lançou sua primeira canção de sucesso em 1964, quando tinha ridículos 18 anos de idade. (Ele é de 1946, cinco anos mais novo que Dylan e Joan Baez, seis anos mais novo que John Lennon.) Chamava-se “Catch the Wind” – olha o wind aí, gente. Sobre uma melodia suave de bela balada folk, Donovan cantava acompanhando-se ao violão acústico com trechos de gaita, de harmônica, que carregava num aparelhinho colocado no pescoço – exatamente como Woody Guthrie fazia nos anos 1940, como Dylan imitou Woody Guthrie no começo da carreira.
Era Dylan puro – quer dizer, era imitação pura do Dylan de 1961, quando Dylan já estava em outra, já estava indo para alguma coisa parecida com o rock.
O vento sopra na direção que deseja. Donovan desejava ser o Dylan inglês.
Joan Baez – que, como na letra de “Subterranean Homesick Blues”, não precisava de um meteorologista para saber para onde sopra o vento, e gravou Dylan e Donovan, e gravou com Dylan e Donovan – escreveu, no jeito vingativo e furioso que às vezes adota: “Donovan e eu nos apresentamos juntos algumas poucas vezes, a maior parte delas no Newport Folk Festival. Quando estávamos na Inglaterra, me lembro de viajar em limousines com ele e comprar botas. Eu estava sentada no banco de trás de uma limousine com Donovan quando ele me disse que seria maior que os Beatles e Dylan. Eu agora me pergunto que coisas atrozes as pessoas podem se lembrar que eu disse.” (No YouTube, Donovan e Joan cantam “Colours” ao vivo; as imagens são apenas fotos.)
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O melhor de Donovan – e as coisas boas de Donovan são extraordinariamente maravilhosas – é o folk.
Muitas das canções folclóricas das Ilhas Britânicas, sem autor conhecido, passadas de geração para geração, falam de reis, rainhas, príncipes, princesas – e também de mulheres pobres que foram atraídas como mariposas para o brilho da riqueza e da nobreza, e acabaram mortas, ou primeiro prostituídas e depois mortas.
O movimento que se deu nos Estados Unidos no finalzinho dos anos 1950, início dos 1960, de revitalização do folk enquanto arma de protesto contra as injustiças sociais, a discriminação racial, chamavam mais a atenção, é claro, para a face trágica da realeza.
Donovan, ao contrário, fugia da realismo para a absoluta fábula. Donovan criava canções – com melodias inspiradas nas das folk do passado – falando de reinos encantados, contos de fada. Donovan foi fundo nas lendas britânicas do Rei Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda. Cantou a Guinevere das lendas do Rei Arthur duas décadas antes que Marion Zimmer Bradley encantasse multidões com suas Brumas de Avalon.
Enquanto Dylan falava de racismo, de fome, de camponês tão faminto que no desespero matava toda a família e em seguida se suicidava, Donovan falava de Guinevere of Arthur, de Atlantis, a Atlântida, o lendário continente perdido.
Quando os Estados Unidos mergulhavam no lamaçal sem fim do Vietnã, e Dylan entrava no terreno surrealista das drogas, Donovan cantava o flower power. Até falou de Vietnã, em, por exemplo, “To Susan on the West Coast Waiting”. (O vídeo indicado aí no link é algo sensacional.) Mas seu negócio era o folk – fosse no folk puro, como no começo da carreira, fosse no folk flower power, doidão, psicodélico, do final dos anos 60.
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O Donovan quintessencial, o Donovan mais Donovan que existe – na minha opinião – é “Legend of a Girl Child Linda”.
Que eu saiba, foi uma das pouquíssimas vezes em que Joan Baez e Judy Collins gravaram juntas, essas duas extraordinárias cantoras que têm 200 mil traços em comum em suas carreiras fenomenais. Mas não é um dueto, é um trio – tem também Mimi Fariña, a irmã mais jovem de Joan Baez.
É uma das canções mais belas que já foram feitas no mundo.
Diz Joan Baez, que diz melhor que eu: “Esta canção é tão anos 60! (…). Isso é o flower power em seu momento mais lindo, e ninguém podia escrever canções assim como Donovan. Nossas três vozes se misturam belamente.”
É verdade. Sou apaixonado pela voz de Joan Baez há uns 50 anos, e não consigo direito saber quem canta o que, quando ela, Judy e Mimi cantam juntas “Legend of a Girl Child”.
Se eu fosse condenado à prisão perpétua, e pudesse escolher 20 músicas para levar no meu iPod, “Legend of a Girl Child Linda” seria uma delas. Não com Donovan – mas com Joan, Mimi e Judy.
A gravação de Donovan é linda, também, abrindo com um acorde forte de cordas, seguido por um arranjo suave, doce, envolvente. Tudo o que Donovan fez no folk é maravilhoso, belíssimo, extraordinário.
Seu lado roqueiro é que é chato.
Ver Donovan voltar à cena sendo homenageado como roqueiro é dureza.
(Na foto abaixo, Donovan de amarelão, os Beatles e Mia Farrow, entre outros, com o Maharishi Mahesh, na Índia, em 1967.)
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É, em boa parte, uma questão de marketing. O rock tem marqueteiros melhores do que o folk, o mambo, a rumba, a guaracha, o joropo, o chá-chá-chá, a valsa, o samba – o escambau.
E este nosso mundo está se convertendo, cada vez mais, em um mundo de marketing. Não de qualidade – mas de aparência.
Sou um velhinho démodé, old fashioned. Desprezo aparência – gosto mais de valor.
Como diz o Serrat em “Cada Loco con Su Tema” – cantando em espanhol, indo contra a corrente dos que o queriam cantando em catalão como protesto contra a ditadura de Franco – “soy partidário de las voces de la calle más que del diccionario, me privan más los barrios que el centro de la ciudad y los artesanos más que la factoría, la razón que la fuerza, el instinto que la urbanidade y un sioux más que el Séptimo de Caballería”.
O que é mais ou menos o que Donovan dizia na canção “Happiness Runs”, outro de seus hinos flower power, que, na sua busca das belezas passadas, apresentava uma espécie de fuga bachiana:
Little pebble upon the sand
Now you’re lying here in my hand
How many years have you been here?
Little human upon the sand
From where I’m lying here in your hand
You to me are but a passing breeze
The sun will always shine where you stand
Depending in which land
You may find yourself
Now you have my blessing, go your way
Happiness runs in a circular motion
Thought is like a little boat upon the sea
Everybody is a part of everything anyway
You can have everything if you let yourself be.
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Como se fosse um cometa maluco, Donovan desapareceu quase completamente, lá por meados dos anos 70. As gravadoras lançavam loucamente coletâneas, para preencher o vazio deixado pelo cara.
Em 1991, saiu um disco extraordinário: Donovan – The Classics Live. Eram gravações ao vivo dos grandes sucessos. Não havia uma única foto do cara, nosso príncipe de histórias medievais.
Em 1996 saiu um disco de novas gravações, com o título de Donovan Sutras. Não consegui conhecer bem o disco inteiro, porque a beleza estonteante de uma única faixa chamou toda a minha atenção: “Deep Peace”, baseado em um milenar poema celta. Era a primeira vez que ouvia a voz do bardo após uns 20 anos, e ela estava ainda mais flower power, mais sonhadora, mais doida, falando de paz profunda num hino que une hippismo, budismo, xintoísmo, acredintantismo de todos os motivos e causas.
Se uma civilização maior chegar a este planeta depois que nós tivermos destruído toda a vida nele, e ouvir “Deep Peace” cantada por Donovan, certamente se perguntará: Mas se eles sabiam de tudo isso, por que se mataram todos?
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Eu achava que Donovan estava careca, feio, gordo, e por isso se mantinha afastado do mundo como um monge.
Ao aparecer em público para receber a honra de agora pertencer ao Rock and Roll Hall of Fame, o cara me surge inteirão. Aquela cabeleira… natural ou implantada? Ah, vá lá, isso não importa coisa alguma.
Donovan Philips Leitch está vivo e passa bem, moçadinha boa! Isso é o que importa.
Grande, extraordinário, magnífico Donovan. Roqueiro de merda, folkeiro genial.
Setembro de 2012
Que beleza de texto!
Vou até procurar “Legend of a Girl Child Linda” e “Deep Peace”, que não conheço.
Abraço
Valeu meu gurú.Bom texto, boa dica. Tentei escutar “Legend of a Girl Child Linda” na voz da Baez, não consegui e fiquei na versão do chato do Donovan, chato nos dois estilos, Rock ou Folk!
Pô, Milton, você tentou o link para “Legend of a Girl Child Linda” e não funcionou? Chequei aqui agora, e funciona… Pena. Tente de novo, porque é uma maravilha.
Um grande abraço do amigo e admirador.
Sérgio
Só tem um problema no seu texto: quando é que o Donovan foi roqueiro? Ele nunca tocou um acorde sequer de rock em toda sua vida! Ele circulava no meio, e como não não há “British Folk Revival Hall of Fame…
Meus prezados, ouçam Roy Harper, Bert Jansch, Al Stewart, Anne Briggs…Esses são os reais pares do suave bardo escocês, e não Bob Dylan, e ninguém ligado ao Rock…Música não é mercado! Quem precisa de rótulo é remédio!