O crime na paisagem

Uma mocinha vestida de diaba, com chifrinhos na cabeça e tudo, e com um cartaz mandando “para o inferno” os deputados que votaram pela absolvição de Jacqueline Roriz. Isso foi tudo de sólido que se viu até o momento em matéria de indignação pelo ato indecoroso cometido na Câmara Federal no começo da semana.

As redes sociais estão cheias de indignados virtuais esbravejando e há até um movimento na rede pelo envio de material fecal fresco à Câmara para, digamos, renovar o estoque.

Há quem ameace pintar a cara e cair nas ruas no Dia da Pátria para xingar os políticos. Vamos ver qual será a intensidade do barulho.

Parece que desta vez os deputados se excederam no zelo corporativista e no amor à própria pele, estabelecendo a jurisprudência segundo a qual o mandato adquirido depois de uma delinqüência tem o poder de anular essa mesma delinqüência.

A gravação que mostra a deputada, quando então ainda não era deputada, recebendo R$ 50 mil de Durval Barbosa, chefe e delator do sistema de corrupção implantado no Distrito Federal durante os governos de Joaquim Roriz e de José Roberto Arruda, não terá sido suficientemente clara para os 265 deputados que votaram pela absolvição, aos 20 que se abstiveram e aos 65 que fugiram do plenário?

Mais clara impossível. Tão clara quanto a intenção da indecente absolvição. Como a Câmara Federal é formada por “300 picaretas”, como dizia Lula quando a freqüentava como membro (o número parece estar em permanente ascensão), a maioria dos que votaram pela absolvição de Jacqueline não estava pensando nas suas belas madeixas nem em sua “honra” manchada, mas estava adquirindo uma apólice de seguro para garantir a impunidade futura.

A foto da absolvida sendo cumprimentada pelo sorridente líder do governo Cândido Vaccarezza, estampada na capa de O Globo, não poderia ser mais eloqüente.

A declaração do mesmo líder, no dia seguinte, apoiando calorosamente o voto secreto em casos de processos desse tipo, é mais eloqüente ainda.

O voto em aberto, disse ele, deixaria o deputado sujeito a pressões e ele ficaria impedido de votar de acordo com a própria consciência.

Com esse argumento, Vaccarezza manda para o espaço o conceito republicano do que o deputado é um representante do eleitor e de quebra abre caminho para que todas as delinqüências cometidas antes da conquista do mandato sejam ignoradas.

A Comissão de Ética e Decoro da Câmara está liberada para dar prazo de validade à ética e ao decoro em seu mais amplo significado semântico e moral.

Assim, dentro desse contexto, o próximo a ser absolvido será o notório Valdemar da Costa Neto, do PR, acusado de cobrar propina de comerciantes da “Feira da Madrugada”, em São Paulo.

A Câmara contribui assim para o rebaixamento ético e moral provocado pela banalização da corrupção no País. Aos poucos, vamos nos transformando numa nação de cínicos, onde o crime deixa de ser um mal e vira parte da paisagem.

Daqui a pouco,a imprensa, acusada pela deputada de manchar a sua “honra”, estará pedindo desculpas por atrapalhar o florescimento dos negócios escusos.

Este artigo foi publicado no Blog do Noblat, em 2/9/2011.

2 Comentários para “O crime na paisagem”

  1. Infelizmente, estima-se que, no Brasil, a cada dia, 165 crianças ou adolescentes sejam vítimas de abuso sexual por parte de adultos. A esmagadora maioria destes casos, acontece dentro de seus próprios lares, onde deveria habitar o amor, impera a dor e a impunidade. Há mais de uma semana Durval Barbosa, o delator procurado pela polícia porque teve a prisão decretada por ser processado por pedofilia, continua em liberdade. Por que?

  2. Sandro, o que são um ou dois maços de dinheiro, apanhados elegantemente pela deputada, à frente da câmera, diante das montanhas que desaparecem às escondidas? Um PIB da Venezuela (R$ 40 bi) em sete anos, você viu na Folha de hoje. Tadinha (como diz o Servas no artigo acima) da moça, que indigência!

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *