De volta, o primeiro disco do mestre Vanzolini

Está sendo relançado o disco Onze Sambas e uma Capoeira. Que maravilha. Nem só de tristes notícias vive este país.

Onze Sambas e uma Capoeira é uma gema, uma pérola rara. Lançado em 1967, foi o primeiro disco só com obras de Paulo Vanzolini, esse extraordinário compositor paulista, paulistano, ele próprio uma avis rara, dublê de cientista e boêmio – doutorado em zoologia pela Universidade de Harvard, diretor do Museu de Zoologia da USP, alternava estudos de campo na Amazônia com noitadas sem fim na boate Jogral, no seu endereço original, na então descolada Galeria Metrópole, na Avenida São Luís com a Praça Dom José Gaspar, e depois no iniciozinho da Avanhandava.

Sua canção “Ronda” – “de noite eu rondo a cidade a lhe procurar sem lhe encontrar”, “cena de sangue num bar da Avenida São João”, provavelmente o mais bem acabado retrato de uma São Paulo que, até então cidadezinha acanhada, virava veloz e vorazmente metrópole – foi composta em 1951, e gravada pela primeira vez em 1953, por Bola 7. Dez anos depois, em 1963, Noite Ilustrada transformou em sucesso nacional “Volta por cima” – “levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima”.

As duas canções já famosas estão no disco Onze Sambas e uma Capoeira. “Ronda” é cantada por Cláudia Morena, e “Volta por cima”, por Mauricy Moura. Hoje, pouca gente deve se lembrar dos nomes desses cantores. Os outros intérpretes das 12 faixas são Adauto Santos, cantor extraordinário da noite paulistana, mas que nunca obteve grande sucesso nacional em disco, Luiz Carlos Paraná, o dono da boate Jogral, compositor também (é dele “Maria, Carnaval e Cinzas”, que Roberto Carlos cantou no festival da Record de 1967), Cristina, uma jovem então desconhecida, que mais tarde gravaria com o nome de Cristina Buarque, e um outro Buarque, irmão de Cristina, filho de Sérgio. Em 1967, o garoto Chico estava lançando seu segundo disco, e já era uma unanimidade nacional.

Se não estou muito enganado, as duas faixas que Chico Buarque de Hollanda canta em Onze Sambas e uma Capoeira foram as primeiras em que ele gravou músicas que não eram de sua própria autoria. Não é um cantor de gravar músicas dos outros – até porque durante muito tempo não foi considerado um bom cantor, embora seja, sim, um ótimo cantor. Só em Sinal Fechado, de 1974, faria um disco de composições dos outros – um trabalho que na verdade era um vigoroso protesto contra a censura da ditadura militar: como suas próprias canções não conseguiam passar pela censura, optou por fazer um disco quase inteiro com obras de outros. Quase inteiro, porque tinha uma, “Acorda, Amor”, que era Chico Buarque escarrado, embora creditada a um outro compositor, alter ego e criação dele próprio para driblar os censores, Julinho da Adelaide.

Em 1967 – exatamente como hoje, 2011, ano do relançamento de Onze Sambas e Uma Capoeira –, Chico era o mais famoso dos cantores reunidos para o primeiro disco só com canções de Paulo Vanzolini.

Minha idéia inicial, quando pensei em fazer este texto, era falar sobre “Praça Clóvis”. Mas não dá para não falar um pouco mais de Onze Sambas e uma Capoeira.

Uma indústria que cresceu demais, ficou imbecil, e está morrendo de excesso de empáfia

A indústria fonográfica é de uma burrice, de uma estupidez atroz.

Não é à toa que está acabando, estrebuchando, nesta era da internet, do download, da pirataria.

A indústria fonográfica foi, era (verbos no passado, já que hoje ela quase agoniza) cega, surda, muda, perdulária, cheia de si – idiota, estúpida.

Sempre apostou, investiu no certo, no que dava retorno imediato. Nunca, ou, no mínimo quase nunca, quis saber de riscos.

Construiu de imediato grandes, gigantescas, corporações. Pagava salários biliardários a executivos mal preparados para lidar com arte. Uma das corporações gigantescas, só para lembrar um exemplo, recusou-se a contratar uma bandinha iniciante, com um então estranho nome, The Beatles.

Não foi a internet que destruiu a indústria fonográfica tal como ela era conhecida até aí, digamos, a década de 1990: foi sua própria imbecilidade, sua cegueira, sua empáfia.

Mas peço perdão. Estou digressando.

Não uma gravadora, mas um sujeito sensível, inteligente – Marcus Pereira

Onze Sambas e uma Capoeira não foi feito por uma gravadora, mas por um sujeito sensível, inteligente, que na época era dono de uma rentável agência de publicidade. Chamava-se Marcus Pereira, e é uma dessas pessoas para quem a gente tem que tirar o chapéu.

Se não estou muitíssimo me enganado, foi de Marcus Pereira a idéia de criar, como brinde de fim de ano para seus clientes, não uma besteirinha tipo caixa com uma garrafa champagne, ou qualquer outra coisa do gênero, mas um disco – único, especial, criação deles mesmos.

Com o nome de Discos Marcus Pereira, foram criados como brindes de fim de ano o primeiro disco de Renato Teixeira e o primeiro disco só com composições de Paulo Vanzolini.

Depois ficaram ainda mais ousados, ambiciosos, loucos, Marcus Pereira, o patrão, e seu braço direito, Aluízio Falcão: investiram uma grana preta (com um apoio da Finep) em pesquisa e criaram primeiro a série de quatro discos Música Popular do Nordeste, e depois a série do Norte, a do Sul, a do Sudeste. Cada série tinha quatro discos, e reunia gravações de artistas locais, originais, pouco conhecidos, com interpretações de artistas reconhecidos, famosos. São fantásticas pérolas: em um dos discos da Música Popular do Sul, por exemplo, há uma gravação original das primeiras décadas do século XX da canção folclórica gaúcha “Boi Barroso”, que se mistura a uma gravação feita especialmente para o disco por Elis Regina, com arranjo do Homem do Plá, o monstro Rogério Duprat. A série do Sudeste tem um então iniciante Renato Teixeira e a já gloriosa Nara Leão.

Pérolas, pérolas, pepitas de ouro.

No início da era do CD no Brasil, primeira metade dos anos 1990, a gravadora Copacabana lançou nos disquinhos digitais essas maravilhas.

Algumas delas começam a ser relançadas agora. Onze Sambas e Uma Capoeira está chegando às lojas pela Microservice, a empresa que durante uns 20 anos foi apenas a fabricante de CDs e DVDs para as gravadoras e distribuidoras de filmes. A Microservice licenciou o catálogo da antiga Copacabana, que inclui os discos lançados pela Marcus Pereira; teve a esperteza e a sorte de chamar como consultor na escolha do que será relançado o jornalista Eduardo Magossi, amante de música, conhecedor de discos.

12 belas canções com arranjos de um iniciante, um tal de Toquinho

O disco que volta agora às lojas tem arranjos – ótimos – de um músico então iniciante, Antonio Pecci Filho, entre parênteses Toquinho. A produção é assinada por Luiz Carlos Paraná, e a direção de gravação é de Manoel Barenbein – um gênio, o cara que foi responsável por alguns dos melhores discos brasileiros dos anos 1960.

São 12 belas canções do cientista-boêmio – inclusive, como já foi dito, regravações das já então (em 1967, ano do lançamento original) muito famosas “Ronda” e “Volta por cima”.

Todas são ótimas. Mas, na minha opinião, as melhores faixas são “Chorava no meio da rua”, “Cravo Branco”, “Samba Erudito” e “Praça Clóvis”.

“Chorava no meio da rua” é cantada pela então iniciante Cristina, depois Cristina Buarque. No ano seguinte, 1968, Cristina faria um dueto com o irmão no terceiro disco dele, na maravilhosa (mas o que esse cara faz, na música, que não é maravilhoso?) canção “Sem Fantasia” – uma das criadas para a peça Roda Viva, aquela que foi vítima do vandalismo dos garotões bem nutridos do CCC, comando de caça aos comunistas. Creio que esta faixa foi a primeira gravada por Cristina. É uma beleza.

Cristina era uma jovem, uma novata, inexperiente, com uma vozinha ainda não treinada – porém bela. Adauto Santos, muito ao contrário, era um veterano cantor da noite, um timbre forte, pessoal, uma interpretação segura. “Cravo Branco”, se não fosse uma canção, se fosse apenas texto, seria um conto de aplaudir de pé como na ópera. Dalton Trevisan, o vampiro curitibano que passa a vida tentando diminuir o número de palavras de seus contos já originalmente enxutos, que gostaria mesmo era de escrever hai-kais, deve se contorcer de inveja ao ouvir “Cravo Branco” – se é que o vampiro de Curitiba faz outra coisa na vida a não ser tentar reescrever enxugando seus próprios textos.

Minha idéia era falar da “Praça Clóvis”, mas não dá para resistir. Aí vai a letra de “Cravo Branco” – um conto perfeito, hemingwayiano, trevisaniano, um curta-metragem de gênio, se não fosse um perfeito samba sincopado vanzoliniano:

Saiu de casa de terno tropical,

Camisa creme, lenço e gravata igual,

Jantou e saiu satisfeito,

Pra antes da meia-noite,

Morrer com um tiro no peito.

 

Ela lhe deu o cravo,

O outro se ofendeu,

Ele olhou no revólver,

Dava tempo e não correu,

Dobrou o joelho, desabou no chão,

Os olhos redondos,

E o cravo branco na mão,

Ai, o pobre, caído no chão,

De bruços no sangue,

Com o cravo branco na mão,

Com o cravo branco na mão.

***

Ah, ma puta que o pariu, é genial demais. Martin Scorsese adoraria filmar aquela imagem: dobrou o joelho, desabou no chão, os olhos redondos e o cravo branco na mão.

***

Mas a água corre pro mar, jamais para o sertão, e as duas canções mais excepcionais foram reservadas para a voz de Chico Buarque, o único de todos aqueles artistas que já era famoso.

No LP, cada lado abria com Chico Buarque. O lado A abria com “Samba Erudito”.

Não sei se Paulo Vanzolini, entre uma ida à Amazônia para observar bichos, entre um estudo e outro de ciência, de zootecnia, e as noitadas no Jogral com muita cachaça, tinha tempo para ouvir as letras da Grande Música Americana, aquelas letras cheias de belas, rebuscadas imagens, de gente do porte de Ira Gershwin e Cole Porter, que brincavam com as palavras do Webster Dictionary, que falavam que Gibraltar poderia virar pó, que tal coisa reunia mais drama do que qualquer peça teatral russa. Não sei, não dá pra saber. Mas tanto Ira quanto Cole seguramente gostariam de ter assinado uma letra que diz o seguinte:

Andei sobre as águas

Como São Pedro

Como Santos Dumont

Fui aos ares sem medo

Fui ao fundo do mar

Como o velho Picard

Só pra me exibir

Só pra te impressionar

 

Fiz uma poesia

Como Olavo Bilac

Soltei filipeta

Pra te dar um Cadillac

Mas você nem ligou

Para tanta proeza

Põe um preço tão alto

Na sua beleza

 

E então, como Churchill

Eu tentei outra vez

Você foi demais

Pra paciência do inglês

Aí, me curvei

Ante a força dos fatos

Lavei minhas mãos

Como Pôncio Pilatos

***

Desculpem a repetição, mas, ah, puta que pariu, é genial demais. “Então como Churchill eu tentei outra vez, mas você foi demais pra paciência do inglês…” Ahhh, vai tomar…

Milton Nascimento ficou bravo porque Paul McCartney compôs “Ebony and Ivory”. Mirtão expôs sua braveza em “Certas Canções”, confessando, candidamente, maravilhosamente, sua inveja por não ter feito antes aqueles versos que Paul criou.

Não há ninguém que tenha na vida o ofício de mexer com palavras que possa não ter inveja de quem faz um texto como esse de Paulo Vanzolini.

***

Mas, para mim, a maior obra-prima, a maior expressão da genialidade de mestre Vanzolini é “Praça Clóvis”.

E aí me permito mais uma pequena digressãozinha.

A Praça Clóvis não existe mais. Minha filha, o melhor texto que eu jamais poderia ter escrito, trabalha hoje na João Mendes, logo atrás do que antes era a Praça Clóvis. Entre o Fórum João Mendes e o que antes era a Praça Clóvis fica o Tribunal de Justiça, onde a vi fazer a prova oral no concurso para a magistratura e depois, no mais nobre dos salões, assumir o cargo de juíza. Quando minha filha nasceu, paulistaníssima, a Praça Clóvis já não existia. Eu era um jornalista pouco mais que iniciante quando o Mendes Caldeira, predião de uns 20 andares, foi implodido, para que a Sé se unisse à Clóvis, formando a Praça da Sé tal qual ela é hoje, em cima da mais central estação de metrô de São Paulo. Fernanda nunca viu a Praça Clóvis, mas eu, imigrante pobre, a conheci, tal qual ela era – um grande terminal de ônibus, nervoso, agitado – na época em que Vanzolini a usou para compor esta maravilha:

Na Praça Clóvis

Minha carteira foi batida

Tinha vinte e cinco cruzeiros

E o teu retrato

Vinte e cinco

Francamente achei barato

Prá me livrarem

Do meu atraso de vida

Eu já devia ter rasgado e não podia

Esse retrato cujo olhar me maltratava e perseguia

Um dia veio o lanceiro

Naquele aperto de praça

Vinte e cinco, francamente, foi de graça

Na minha opinião, Paulo Vanzolini não precisaria ter feito mais nada na vida: só “Praça Clóvis” já teria assegurado para ele um lugar de honra na música brasileira. Na arte feita no Brasil. Na arte.

Depois de Onze Sambas e uma Capoeira

Embora o parágrafo acima tenha sido escrito para encerrar o texto, é preciso registrar que o segundo disco só com composições de Paulo Vanzolini também foi uma produção da Discos Marcus Pereira. Chamou-se A Música de Paulo Vanzolini, foi produzido em 1974, com as vozes de Carmen Costa e Paulo Marquez. É também uma maravilha, uma preciosidade. A Copacabana lançou o disco em CD no início dos anos 90, como fez com Onze Sambas e uma Capoeira.

Em 2002, uma gravadora independente lançou uma caixa de quadro CDs, preciosíssima – Acerto de Contas de Paulo Vanzolini. Tem provavelmente toda, ou quase toda a obra desse mestre da canção brasileira, que infelizmente é muito menos conhecido do que qualquer dupla sertaneja surgida ano passado.

Essa que em 2002 era uma gravadora independente quase iniciante tem hoje, entre os artistas de seu cast, como se dizia antigamente, Chico Buarque, Maria Bethânia, Milton Nascimento, Adriana Calcanhoto, Mônica Salmaso, Ná Ozzetti. É a Biscoito Fino – a prova viva de que lançar discos e imbecilidade não precisam necessariamente andar juntas. É também, acho eu, a prova viva de que uma empresa brasileira bem gerida pode dar de dez a zero em multinacionais – e não é preciso de ajudinha do BNDES, nem ser amigo do rei de plantão. Mas isso é outra história.

Dezembro de 2011

Confissões, coisas bem pessoais

Não tem interesse para ninguém, a não ser para mim mesmo, mas gostaria de anotar duas ou três coisinhas.

Não conheci O Jogral da Galeria Metrópole. Quando cheguei a São Paulo, no início de 1968, O Jogral já estava na Avanhandava. Caipira, interiorano, pobre, fui levado ao Jogral algumas vezes pela namorada de um amigo; me apaixonei por ela. Como poderia um caipira, interiorano, pobre, não se apaixonar por uma moça descolada, inteligente, bela, gostosa e rica da Grande Cidade?

Uns anos depois, no início dos anos 1970, fiz uns frilas para a Marcus Pereira Publicidade. Um ou dois, não me lembro exatamente o que – coisa menor, entrevistas para servir de base para os trabalhos deles. Só me lembro, vagamente, que a sede da empresa era, naquela época, numa casa de uma das ruazinhas cheias de curva do Pacaembu. Não me lembro quem me indicou, mas me lembro que quem falou comigo, me passou as pautas, foi Aluízio Falcão.

Voltei a me encontrar com ele no início dos anos 1980, quando ele era o diretor artístico do Estúdio Eldorado, uma aventura da Rádio Eldorado – e do Grupo Estado – na área fonográfica que produziu uma série de grandes, importantes discos. Naquela época, eu tinha dez anos de Jornal da Tarde, e começava a escrever resenhas de discos. Uma vez ouvi Aluízio Falcão dizer que gostava do que eu escrevia, porque, segundo ele, eu escrevia com amor à música. Foi um dos maiores elogios que tive na minha breve carreira como resenhista de discos.

 

8 Comentários para “De volta, o primeiro disco do mestre Vanzolini”

  1. Sérgio Vaz, acompanho aqui o site e andei lendo seus textos…Você oscila bastante entre ser um defensor de idéias atrasadas e radicais e ao mesmo tempo tenta dar uma de crítico cultural. Seus artigos sobre a Dilma revelam uma profunda desesperança, porque na verdade você queria que ela governasse como guerrilheira…e racialistas são aqueles que defendem as cotas raciais, sejam argumentos baseados na cor da pele ou na classe social, já que dizem que os pobres são negros…por favor, assuma sua posição radical de comunista roxo (?!) e pare de nos ofender com sua defesa – indireta – da malandragem petista

  2. Sérgio! Falando de Natureza, em comentário anterior, disse da minha admiração pelos “professores” com quem convivi. Naquele tempo, eu trabalhava na FBCN-Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza. Não conheci Paulo Vanzolini pessoalmente, mas ele era muito ligado aos “professores”, grande colaborador, partilhava com eles sua sabedoria…

  3. Caríssima Maria, obrigado por seu comentário. Ter você como leitora é razão de orgulho para mim.
    Sim, o Paulo Vanzolini é mestre nas duas coisas, não é? Na música e na ciência.
    Violeta Parra fez uma bela homenagem aos estudantes – “Me gustan los estudiantes”. Os professores merecem toda homenagem que pudermos fazer…
    Um abraço.
    Sérgio

  4. Belo comentário sobre o disco Onze Sambas e Uma Capoeira. Ao meu ver, faltou um dado importante: os nomes dos músicos que acompanham os cantores! Mas a culpa não é sau, pois, nem mesmo o disco traz os nomes deles, a não ser o de Toquinho como arranjador.

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