Vozes sensatas no meio da barulheira

No meio da algaravia, do burburinho, dessa barulheira ensurdecedora pré-eleitoral, com tanta gente, dos dois lados, dando uma importância absurda ao que Dilma e Serra já falaram ou fizeram sobre o aborto, em vez de se discutir o que realmente importa, há, felizmente, vozes sensatas.

Me senti estupidamente solitário quando, dois dias atrás, escrevi aqui que, epa, desculpem, está tudo errado – não se trata de discutir a opinião de Dilma sobre o aborto, mas de discutir o País que queremos.

Felizmente, no entanto, não estou sozinho.

Em editorial na edição desta sexta, dia 10, O Globo coloca as coisas no lugar. Dora Kramer também, em sua coluna de hoje no Estadão. Marli Gonçalves, Maria Helena Rubinato Rodrigues de Souza e Carlos Brickman também, em artigos desta sexta-feira. Leitores fizeram pertinentes observações no Globo de ontem.

Ufa!

“Dilma Rousseff recomeçou a campanha com citações do nome de Deus e negação da tese da descriminalização do aborto, já defendida por ela publicamente, assim como por seu partido, o PT. Resvala-se para o perigoso terreno da hipocrisia e, pior, deixa-se que um condenável fundamentalismo religioso defina o tom do segundo turno”, diz o editorial do Globo. Para depois concluir: “Melhor os dois candidatos estimularem uma discussão séria e sincera – até para além da eleição – sobre assunto tão grave para as mulheres, principalmente as de baixa renda e instrução, a grande maioria delas. Curvar-se a este fundamentalismo é trair o princípio da laicidade do Estado, uma das conquistas do Ilumismo, em um lance de esperteza eleitoreira.”

Brilho!

         “Não há forças em choque querendo mudar a lei atual”

Dora Kramer crava: “Com tanto assunto para ser discutido, a curta campanha para o segundo turno da eleição presidencial começa dominada por uma agenda de caráter religioso e irrelevante do ponto de vista das preocupações nacionais.”

E crava mais: “Não há forças em choque querendo mudar a lei atual e, portanto, trava-se uma discussão sobre teses. Muito justo como parte do debate, mas é totalmente fora do contexto ocupação do espaço todo com a discussão sobre filosofias de vida e concepções religiosas.”

E aí Dora Kramer lembra que, com tanta discussão sobre o tema aborto, quase não se falou sobre a conclusão da Polícia Federal de que o acesso aos dados de Eduardo Jorge foi ilegal e feito por um petista, ou sobre o silêncio dos filhos de Erenice Guerra ao serem interrogados pela mesma PF.

         “A postura de Dilma varia de acordo com os interesses eleitorais”

Nas cartas dos leitores do Globo, Geraldo Siffert Júnior escreveu: “Partir para criticar a frouxidão moral do PT é que me parece fundamental e aí, sim, usar a postura de Dilma, que varia de acordo com os interesses eleitorais – era a favor e agora é contra – seguindo seu chefe. Dilma mostra por esse motivo e por vários outros que não é uma pessoa confiável.”

Outra leitora, Marisa Cruz, também atinge o alvo: “È necessário lembrar às pessoas que, caso fosse aprovada, a lei do aborto não o tornaria obrigatório – seria facultativo, isto é, faria o aborto quem quisesse. Gostaria, também, de sugerir que essas famílias tão religiosas criassem uma associação para recolher e cuidar de bebês cujas mães não pudessem sustentá-los e que não tenham podido abortar porque não é permitido, tal a pressão desses grupos.”

Carlinhos Brickman diz: “O que importa é a opinião de Deus sobre Serra e Dilma. A opinião de Serra e Dilma sobre Deus, desculpem-me ambos, desculpem-me seus mais fanáticos seguidores, não tem para este colunista a mais remota importância. (…) Aborto? Dilma já disse que é favorável a que deixe de ser crime, Serra já criou normas para realizá-lo em hospitais públicos. Já têm posição. Por que mentir?

         Marli Gonçalves e Maria Helena Rubinato, bravas mulheres

Marli Gonçalves bate o pé e as botas no lugar certo: “Queremos sinceridade nesta reta final de campanha. Ninguém vai votar para padre de missa ou freira de convento, muito menos para pastor de rebanhos. Está muito chato e ridículo esse debate – estéril – sobre aborto, casamento gay, quem reza mais compenetrado o pai-nosso-de-cada-dia.”

Conheço MarliGo há muitas primaveras – ela é brava. Mulher risonha, alegre, mas muita brava quando é preciso. E agora é preciso: “Agora é a hora de saber qual dos dois vai nos deixar permanecer livres para pensar, falar e agir de acordo com o nosso foro íntimo, nas nossas coisas. Vai me dizer que vocês já não têm muitos assuntos realmente fundamentais para rever? Deixa que a gente cuida de para qual santo vai rezar, ou para o que servem nossos órgãos genitais. Queremos liberdade. Esse é o ponto. Chega de hipocrisia.”

Maria Helena Rubinato, que conheço há pouco tempo, e só pela internet, é mulher de texto suave, calmo, ponderado, elegante. Mas, ao mesmo tempo, quando necessário, seu texto é incisivo, fino como navalha. Transcrevo dois trechos de seu belo texto publicado no Blog do Noblat:

“E o que poderia ser, finalmente, um debate proveitoso sobre tema tão importante para o Brasil, está nesse nível de comadres.

“Pior: estamos vendo um festival de denominação ecumênica que é um espanto! De repente, a grande maioria dos brasileiros, que nunca foi fiel a uma só religião, está se comportando com a mais fanática intolerância. (…)

“Agora, para escolher em quem vão votar para Presidente da República do Brasil, os brasileiros estão se dando ao luxo de dizer que seguem fielmente o que lhes diz o seu vigário, ou pastor, ou rabino, ou guru, ou pajé, a respeito de aborto. Pelo menos é no que acreditam os marqueteiros, que estão fazendo a cabeça dos candidatos.”

E em seguida:

“Pena que o medo de perder votos os faça apelar para papelões como dona Dilma pregando contra o aborto numa capela em Belo Horizonte, e José Serra, o católico praticante, anunciando que irá peregrinar em Aparecida no dia de nossa padroeira.

“Em bom português: estão preferindo fingir o que não são a confirmar suas antigas posições sensatas – o aborto é o último passo em situações tenebrosas para uma mulher. O último, o mais dolorido, o mais cruel, mas às vezes, necessário.

“Será que ainda os veremos com um terço nas mãos?”

         Uma discussão necessária – não agora, e sem fundamentalismo

Para que fique bem clara a minha opinião: não é que eu ache que o país não deva discutir o aborto. É preciso discutir, sim – e a sério, como questão de saúde pública, de livre arbítrio, de direitos humanos, e não sob o tacão fundamentalista das religiões. Mas não tem que ser no afogadilho, às vésperas de uma eleição que definirá muito do futuro do país, mas não definirá nada com relação ao aborto.

8 de outubro de 2010

3 Comentários para “Vozes sensatas no meio da barulheira”

  1. Que delicia navegar em um site com tanto conteudo, informacao, inspiracao, assuntos diversos. Ja li varios textos aqui e amei.
    Obrigada por dividirem tanto talento

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