José Ferreira da Silva era um fotógrafo magro como um palito; não sei como carregava aquele equipamento pesado da época. Foi ao lado dele que eu, repórter da revista inTerValo, bati à porta do apartamento de Elis Regina no dia 20 de junho de 1967, logo após saber que o programa O Fino da Bossa havia acabado na véspera, havia sido tirado do ar, havia deixado de existir.
O apartamento era um pequenino “já vi tudo” (a gente entrava, já via tudo), acreditem se quiserem, na Avenida Rio Branco, num andar bem alto de um prédio enorme do centro de São Paulo. É preciso dizer, para os mais jovens, que o Centro da cidade, naquela época, era transitável e ainda bem simpático. E – importantíssimo – em geral não havia porteiros e muito menos interfones. A gente chegava em qualquer prédio, subia e tocava a campainha. Mesmo dando aquela bandeira de repórter e fotógrafo, que andavam sempre em dupla feito Cosme e Damião, um com aquela carga de máquinas, lentes e flashes e filmes, e outro com aquele indefectível gravador do tamanho de um tijolo (e o meu era chique, considerado pequeno para o padrão da época).
Quando a porta se abria, entrava-se num corredor de um metro que tinha, à esquerda, a porta da minicozinha, à frente a sala e, ao lado dela o quarto e o minibanheiro. Ali vivia, entre escondida e anônima, a maior cantora do país. Pois a porta se abriu pelas mãos de Elis Regina, com um sorriso meio maroto, meio amarelo, a cabeça virada de lado, gesto que repetia muitas vezes:
– Podemos conversar?
Posso dizer, não sem uma ponta de vaidade, que Elis Regina confiava na repórter. Eu nunca tinha dado um fora com ela, e nem jogado mentiras em suas palavras para ganhar manchetes sensacionalistas. Trabalhava honestamente.
– Entra aí – ela disse, e foi para o pequeno sofá.
A maior cantora do país fazia tricô em seu apartamento mínimo
Agora vocês vão achar que estou mentindo, mas tomara que o Ferreira esteja vivo, pois só ele poderia atestar o que digo. Elis Regina se sentou, botou uns óculos “de perto” e retomou o tricô que fazia antes de chegarmos. Fiquei envergonhada porque estava vendo ali uma quase menina – embora eu tivesse ainda um ano a menos; ela estava com 21 anos, e eu, 20 – fazendo seu tricô em paz, e nós havíamos chegado para perturbá-la. Talvez fosse uma paz aparente, pois o programa que ela apresentava tinha acabado de morrer e ela precisava se distrair. Talvez fosse um hobby… eu era muito menina também para discernir. Não sei o que ela tricotava e nem posso dizer a cor do trabalho. Isso o tempo apagou.
– Vamos falar sobre o fim do Fino?
Elis era ardida mesmo:
– Acabou, o que você quer que eu fale? Tiraram do ar o melhor programa da TV brasileira. Mas é assim mesmo, as pessoas querem que apenas as bobagens sobrevivam. Eu não vou sair gritando. Acabou e está acabado. Morto, enterrado.
(Elis, naquele momento, foi profética: de lá para cá a TV piorou muuuuuito).
– Mas porque acabou?
– Vocês têm que ir perguntar pro Paulinho Machado de Carvalho, que é o dono da TV Record. E também para aquele bando de babacas que tinha um ciúme danado de mim e ficou assoprando na cabeça dele para acabar com tudo. O cara até que é legal, mas é mal cercado. E os meus colegas, então? Cada um queria um programa só seu. Bem, os musicais foram se multiplicando e a audiência foi se esgarçando, já que tinha que se dividir entre vários programas iguais, um apresentador, uma fala, uma música, um apresentador, uma fala, um música, nenhuma imaginação. (Ela se referia à Jovem Guarda e aos programas de Ronnie Von, Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro). E depois essas letrinhas terríveis, falando “quero buzinar meu calhambeque”, que horror… Mas é isso que os militares querem, não é?
– Você acha que a ditadura acabou com O Fino?
– Além dela, os ciúmes…
Posso dizer hoje, sem medo de errar, que ficamos naquele pequeno apartamento mais de três horas, aparando as arestas do que poderíamos publicar, para que não houvesse nenhum problema posterior nem para ela, nem para nós e nem para a revista. Gravei e regravei aquele depoimento três vezes. Ao final, publicamos isso mesmo que acabei de descrever, mas com palavrinhas adocicadas e leves.
Hoje, o que mais me impressiona é a paciência da grande Elis – e a minha burrice de ter gravado outras entrevistas sobre aquela (e várias outras) fitas do meu gravador. As fotos, com certeza também se perderam no Dedoc (Departamento de Documentação) da Editora Abril, pois eram, como se dizia, slides.
Mas posso dizer, com muito orgulho, que tive essa exclusiva, sim, e que deu uma capa linda: uma foto de Elis Regina tristonha e um título falando do fim do Fino da Bossa. Mas a inTerValo era apenas uma revistinha de TV; o grande sucesso do jornalismo na época era a Realidade, uma revista de grandes reportagens, também muito visada pela censura. Virou, mexeu, era recolhida das bancas. (Na foto ao lado, Elis com o Zimbo Trio, presença constante no programa Fino da Bossa.)
Eu tinha feito um estágio de três meses na Realidade e sabia bem como lá também se sofria com a censura. Perto deles, o sofrimento em inTerValo era pequeno.
Naquele tempo a velha e saudosa revista inTerValo tinha três repórteres e dois fotógrafos contratados.Como precisávamos trabalhar à noite e também aos sábados e domingos, era feita uma escala. Os repórteres ficavam de plantão a cada três semanas e os fotógrafos a cada duas. Nossa tarefa era ficar de segunda a domingo no Teatro Record, na Rua da Consolação, que pegou fogo depois, levando, também, boa parte dos preciosos arquivos em vídeo da música popular brasileira.
A cada dia da semana, um programa de música ao vivo
Ali cobríamos – tenho que me lembrar:
segundas-feiras – O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina;
terças-feiras – Corte Rayol Show, de Renato Corte Real e Agnaldo Rayol;
quartas-feiras – Hebe Camargo e suas entrevistas;
quintas-feiras – Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro (velha guarda);
sextas-feiras – Família Trapo, com Zeloni, Golias, Jô Soares, Cidinha Campos e Renata Fronzi;
sábados à tarde – Ronnie Von;
domingos à tarde – Jovem Guarda.
Por enquanto, vamos ficar na segunda-feira, foco no Fino da Bossa – que depois ganhou o apelido mais curto de O Fino – close naquela menina que, com apenas 21 anos, comandava o programa. Com personalidade, ela passou de uma cantora desconhecida a unanimidade nacional, a maior e mais querida cantora do Brasil. Seu estranho nome, Elis, acompanhado de Regina, porque, segundo a família, nascera para ser rainha mesmo. E foi. Como foi.
O Brasil, por sua vez, vivia tempos negros e difíceis: uma ditadura militar, entre as várias ditaduras deste pobre continente latino-americano. Cada gesto ou palavra dos escritores, jornalistas, compositores, professores universitários e outros criadores (também de opinião) eram vigiados de perto. Caso houvesse escorregões “comunistas”, eram castigados. Os censores sentavam-se ao nosso lado para assistir a cada programa daqueles que falei e, depois, “editavam” tudo o que era dito, antes de ir ao ar.
O Fino da Bossa era um dos mais visados, pois recebia Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda, Edu Lobo, Gilberto Gil, Vinícius e a própria Elis, todos engajados numa empreitada silenciosa de enganar os danados dos censores. Ninguém dizia nada, mas tacitamente nós, que estávamos lá, sabíamos o que acontecia. Só para dar exemplos rápidos, Vandré fez “Disparada”, Vinicius tinha feito a “Canção do Subdesenvolvido”, Elis gravou “Terra de Ninguém” (de Marcos e Paulo Sergio Vale), que dizia “Quem trabalha é que tem/ Direito de viver/Pois a terra é de ninguém”, Edu Lobo fez “Zambi” (“Chega de viver na escravidão/ é o mesmo céu/ é o mesmo chão” e outras que todos conhecem.
Não sei dizer por que O Fino da Bossa acabou. Elis também não soube dizer o motivo, naquela tarde maravilhosa que passei ao lado dela. O que publicamos, afinal, foi uma série de hipóteses. Bem plantadas, mas hipóteses. A melhor cantora do país sobreviveu ao fim do Fino e cresceu, como acontece com as coisas de qualidade. Elas não morrem diante de conjunturas adversas. Ao contrário: ganham maior impulso para crescer!
Naquele dia, ela se despediu dos dois jornalistas e, com certeza, voltou ao tricô. Grande Elis.
Grande Elis – Grande Laïs!!!!
Laisinha,
que delicia “ouvir” essas histórias.
Eu era um aprendiz de punheteiro de 13 anos nessa época e mal me lembro do Fino.
Mas você me leva de volta pra lá com seu texto. Uma delícia mesmo.
um beijão.
Décio
ps. mande meu beijo à Ester.
Muita, muita saudad’Elis, abç