Os ouvidos que preferem repetição e a redundância (ouvidos que se chocaram com as guitarras elétricas e a colagem de imagens de “Alegria, Alegria”, ou com a justaposição concretista de vozes de ou não, o primeiro LP de Walter Franco, por exemplo), esses ficariam igualmente chocados ao ouvir o grupo Rumo interpretar músicas como “Canção Bonita”.
O próprio título da música é sugestivo, provocante. A letra parece um manifesto, uma declaração de intenções: “Ele fez uma canção bonita pra amiga dele, e disse tudo que você pode dizer pra uma amiga na hora do desespero. Só que não pôde gravar, e era um recado urgente, e ele não conseguiu sensibilizar o homem da gravadora”. (E atenção: a cantora pronuncia ômi.) “E uma canção dessa não se pode mandar por carta pois fica faltando a melodia. E ele explicou isso pro homem: Olha, fica faltando à melodia”.
Canção bonita? Melodia?, perguntariam certamente os que preferem a redundância. Como pode ser bonita uma “música” dessas, que justamente quase não tem melodia, e cuja letra é praticamente recitada, falada, em vez de ser cantada?
Com uma atitude assim, os que preferem a redundância vão perder a oportunidade de conhecer uma das mais ricas e interessantes experiências da música popular brasileira nos últimos anos. Porque o trabalho do grupo Rumo – que está em dois discos independentes lançados ao mesmo tempo, há poucas semanas, Rumo e Rumo aos Antigos – é forte, inovador, criativo. Como é novo, assusta os que têm medo do novo. Mas, justamente porque é novo, alarga os horizontes, amplia os limites, dá uma sacudida no panorama musical.
Mas, sobretudo, além de novo, o trabalho do Rumo é inteligente, bem-humorado, divertido. E competente, de grande qualidade.
Os dois discos simultâneos do Rumo já foram saudados como uma nova revolução, depois da revolução da bossa nova e da revolução do tropicalismo. Talvez não seja tanto, nem o próprio grupo pretenda tanto. Mas, sem dúvida, é um saudável exemplo da “desafinação” de que falava Caetano Veloso: “A realidade é que aprendemos com João pra sempre ser desafinado” (“Saudosismo”, 1968). O Rumo desafina do padrão estabelecido para a música pelo rádio e pela TV. E essa “Canção Bonita” é de fato uma espécie de “Desafinado”, versão 1981 – um manifesto.
A música que fala
O que o grupo – formado por oito rapazes e duas moças, de idade entre 22 e 29 anos, juntos há oito, embora só agora cheguem ao disco – pretende é, teoricamente, simples. Pretende buscar uma forma de canção em que letra e melodia estejam absolutamente integrados, indissociáveis. E descobriu que existe uma canção em que letra e melodia são assim: carne e osso de um mesmo ser. A fala possui uma música, e uma música riquíssima, tão rica que os instrumentos musicais sequer podem reproduzi-la integralmente.
E é da melodia, da musicalidade da fala, que trata “Canção Bonita”. Essa melodia não se pode mandar por carta – a linguagem escrita é absolutamente incapaz de traduzir as entonações, a expressividade, a riqueza, a melodia da fala. “E ele explicou isso pro ômi. Olha, fica faltando à melodia.” Essa frase, lida, tem pouco a ver com a frase cantada (quer dizer, falada) pela cantora Ná. Cantada (quer dizer, falada), ela tem graça, humor, uma entonação de súplica, temperada por uma pitada de deboche, de desdém pela insensibilidade do ômi da gravadora.
A essa altura, pode-se ter a impressão de que o grupo Rumo é uma espécie de Jograis, que recitam poemas. Não, não é nada disso. É música, evidentemente – embora os que preferem a redundância certamente discordem. E boa música. Os dez integrantes do conjunto são, sobretudo, ótimos instrumentistas (em geral, cada um toca dois instrumentos, ou mais). Os instrumentos são simples, populares: violões, bateria, flautas, xilofone, baixo, agogô, pandeiro, sax, reco-reco. Mas eles são tocados não numa exibição de virtuosismo, e sim de forma a se integrar em um todo, ao lado das vozes.
O disco Rumo tem nada menos de 18 músicas, 17 delas da autoria dos integrantes do conjunto. A maior parte é de Luiz Tatit, o mais prolixo dos integrantes do grupo. Uma ou outra – como “Encontro”, por exemplo – revelam-se cansativas, depois da terceira ou quarta audição, depois que se perde o impacto da situação apresentada. A grande maioria, no entanto, é agradável de se ouvir, interessante, bem-humorada, bem executada. Algumas são excelentes, como, por exemplo (além de “Canção Bonita”), “Época de sonho” e “Carnaval do Geraldo”, todas de Luiz Tatit. Carnaval do Geraldo é um bom exemplo do Rumo. Um cantor diz: “Olha o Geraldo, está chegando, está morrendo de vontade de entrar no carnaval.” E o Geraldo diz que não entra – mas diz com a voz bem grave, ritmada, marcada, funcionando como o surdo da escola de samba: “Não vou, não quero, eu fico envergonhado, fica todo mundo olhando, todo mundo reparando…” (ou seja: bum, bum, bum, bum, como o surdo).
Velhas obras-primas
Apenas a última música do disco não é de autoria dos membros do conjunto. É “Chequerê”, composição hoje pouco conhecida, do ano de 1924. Seu autor chama-se José Barbosa da Silva, o Sinhô.
É uma chamada para o outro disco, o Rumo aos Antigos, em que o conjunto interpreta 15 músicas dos mestres Sinhô, Noel Rosa e Lamartine Babo, e de Luiz Vassalo. Nada, porém, de “Jura”, regravadíssima obra de Sinhô, ou “O Teu Cabelo não Nega”, de Lamartine, presente em cada baile de carnaval deste país, de 1931 para cá. O Rumo preferiu escolher obras dos grandes mestres que não têm sido regravadas nos últimos anos e que por isso são desconhecidas por boa parte do público.
Há um punhado de obras-primas neste disco maravilhoso, como “Pierrô apaixonado” (Noel e Heitor dos Prazeres, 1936), “Aí, hein!” (Lamartine e Paulo Valença, 1933), “Quantos beijos” (Noel e Vadico, 1936), “Não quero saber mais dela” (Sinhô, 1927). E as interpretações são ótimas, impecáveis – seja nos casos em que o grupo procurou seguir o arranjo original, seja naqueles em que eles vestiram a melodia com uma roupagem de hoje. O diálogo entre a moça e o português, em “Não quero saber mais dela”, está calcado na gravação de Chico Alves e Rosa Negra de 1927 – e tão engraçado e divertido quanto na versão original. “Pierrô apaixonado” teve o andamento modificado, tornado mais lento – mas continuou belíssimo. O maior (ou único) senão seria a interpretação de “Deus nos livre dos castigos das mulheres”, de Sinhô, em 1928; nessa faixa, o solista Geraldo Leite enche de grandes pausas a letra, à maneira do genial Mário Reis, mas com um evidente exagero que acaba tornando a audição cansativa.
Há, ainda, em Rumo aos Antigos, uma 16ª e última música, a única composta depois de 1937 – “Pro bem da cidade”, de Luiz Tatit, que fecha o ciclo chamando para o disco com canções do grupo, o Rumo.
À primeira vista, a mistura de obras dos grandes mestres com a inovadora proposta do grupo poderia parecer absurda. Mas só à primeira e rápida vista. Os integrantes do conjunto dizem que na música dos antigos existia isso que eles procuram obter com suas obras, hoje: a perfeita integração entre melodia e letra. E é bem verdade. Mas há outros pontos de contato. Os mestres “antigos” também usavam uma linguagem limpa coloquial, simples: também sabiam ser bem-humorados, irreverentes, brincalhões. E a música que faziam era de boa qualidade. Assim como a dos rapazes e das moças do Rumo.
Os que preferem a redundância talvez reconheçam isso, daqui uns 40 anos.
A historinha por trás do texto
Há um aspecto absolutamente gratificante no ofício de “crítico”. Ser “crítico” – de cinema, de música, do que for – é um ofício que muita gente gostaria de ter, e que eu, pessoalmente, acho muito duro. Quando o sujeito vira “crítico”, transforma em obrigação o que antes era prazer. Em vez de dar-se ao prazer de ver um filme, ou ouvir um disco, ele passa a ter a obrigação de ver filmes, ouvir discos – e escrever sobre aquilo. Se vira obrigação, deixa de ser prazer.
Mas esse duro e nada prazeroso ofício tem um aspecto gratificante. É quando você fala bem de um artista novo, ainda não consagrado.
“Crítico”, em geral, adora falar mal, meter o pau, esculachar. E parece que os leitores também gostam de ler textos que falam mal, metem o pau, esculacham. No período em que escrevi sobre música no Jornal da Tarde, entre 1981 e 1984, esculachei poucos discos. Preferia dar informações, relatar o que o artista pretendeu dizer, com base no que ele falou, contextualizar o disco dentro da obra da pessoa. Uma vez ouvi um elogio de um cara importante, Aluízio Falcão, ótimo produtor de discos – trabalhou na Discos Marcus Pereira e no Estúdio Eldorado; foi também diretor artístico da Rádio Eldorado; Aluízio uma vez disse que gostava de ler o que eu escrevia, porque eu me preocupava mais em informar do que simplesmente dar minhas opiniões.
Em 1981, quando o Rumo estava lançando seus primeiros discos, o Jornal da Tarde era um jornal muito importante, influente – foi perdendo a importância e a influência ao longo dos anos, mas naquela época era o jornal lido pelos estudantes universitários, pela gente safa, as pessoas mais informadas. Então acho que foi legal esse texto que o JT publicou; pode ter feito alguns neguinhos comprarem os discos do Rumo.
Muitos anos depois, em 1993, encontrei Geraldo Leite, um dos membros do grupo, na Editora Globo; Regina Lemos tinha me botado como redator-chefe da revista Marie Claire, e Geraldo, que, além de músico, é radialista e publicitário, era, se não me engano, diretor de marketing. Ele ainda se lembrava de mim como o cara que tinha sido “crítico de música” do JT e tinha elogiado o Rumo quando o grupo lançou seus dois primeiros discos.
Mais tarde ainda, acho que lá por 2000, ou 2001, o Rumo já havia acabado, seus integrantes tinham suas carreiras solo, mas todos se reuniram para uma pequena série de shows no Sesc Pompéia; na entrada do teatro, havia uma exposição de fotos, cartazes, capas de discos, uma memoráblia do conjunto – e lá estava a página do JT com o meu texto. Fiquei contente pacas.
Ah, sim, e um detalhinho. Por que será que, ao fazer o texto, não botei o nome inteiro da Ná Ozzetti? Vai saber… Em 1981, será que alguém, além do pessoal do Rumo, já sabia que Ná iria ser uma das melhores cantoras do Brasil?
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