Sobre o Paranga, o Lira, a Benedito Calixto, e gratidão

Quase 30 anos atrás, escrevi uma resenha no Jornal da Tarde sobre um show do grupo Paranga. Hoje recebi um e-mail de Negão dos Santos, um dos membros do conjunto. Achei que era engano.

A rigor, a rigor, primeiro achei que era para mim, sim. Cheguei até a contar para Mary. Mas aí pensei um pouquinho, e percebi que era engano.

O e-mail dizia isto:

Mestre Sérgio Vaz, aqui é Negão dos Santos do Paranga, São Luís do Paraitinga. Por onde anda? Gostaria de te mandar o DVD Tributo a Elpídio dos Santos, com participação de Renato Teixeira que fizemos na minha (nossa) cidade. Me mande seu endereço por favor. Muito obrigado de coração pelo que você fez por nós.
Negão
 

Existem muitos Sérgio Vaz, conforme se pode verificar com uma busca simples no Google. Um deles é famoso – poeta, agitador cultural, costuma, ou costumava, antes de ficar muito famoso, se definir como “o poeta da periferia”, embora seja da Penha, que não chega propriamente a ser periferia.

Respondi para Negão dos Santos:

Estou achando, Negão, que talvez você esteja me confundindo com um outro Sérgio Vaz, um poeta, agitador cultural, que se diz “o poeta da periferia”.

Eu, que também me chamo Sérgio Vaz, sou jornalista. Muitos e muitos anos atrás, quando o Paranga lançou seu primeiro disco, escrevi uma crítica no Jornal da Tarde, cheia de elogios. Mas não acredito que você se lembre disso…

Fernanda veio me visitar, e contei a história para ela. Em 1983, quando Fernanda tinha sete, quase oito anos, e era uma menininha espantosamente linda, inteligente, curiosa, eu costumava levá-la a shows, em diversos lugares, mas em especial no Lira Paulistana. Levei-a ao show do Paranga, sobre o qual escrevi a resenha para o JT (o jornal chamava aquilo de “crítica”, designação que detesto), assim como a levei para ver shows do Rumo, tanto no Lira quanto no Centro Cultural São Paulo, assim como a levei a shows de Tetê Espíndola, no Lira e no Teatro Municipal, uma maravilha de show não me lembro mais em que ano – só lembro que foi poucos dias antes de um Natal, e era Tetê à capella, só ela, sem microfone, com aquele vozeirão absurdo, fininho que nem fio de nylon, e nos sentamos à terceira ou quarta fila do Municipal.

Mas aí tergiversei. É que queria dizer que contei hoje mesmo a história do e-mail de Negão dos Santos para Fernanda, uma jovem senhora espantosamente linda, inteligente, curiosa, agora, quase 30 anos depois, dotada de uma sabedoria que não tinha na época em que era uma criança e eu a arrastava para ver shows no Lira Paulistana, bem pertinho da casa dela, uma quadra e meia de distância da casa dela, na João Moura, o Lira na Teodoro, diante da Praça Benedito Calixto, a praça onde levava Fernanda quase todo dia para brincar desde que tinha pouco mais de um ano de idade e era espantosamente linda, inteligente, curiosa e tinha cachinhos claros e uma paixão inenarrável por caixas de areia.

Mas aí tergiversei mais ainda, como se fosse um Jorge Semprum, e não muito menos que um tostão, um sujeito que não consegue ter sequer o melhor texto de sua própria casa, porque Mary escreve melhor que  eu, e, anônimo, consegue ser confundido com um homônimo famoso.

Depois que Fernanda foi embora para casa, vi que Negão tinha respondido à minha resposta:

Oi, Sérgio, sim, é você mesmo, lembro muito bem dessa crítica e agradeço a força que você nos deu, também para a obra do meu pai.

Tenho satisfação em mandar o DVD pra você amanhã mesmo. Hoje foi o dia do reencontro, pois falei com Tiago Araripe que fez parte da turma do Lira Paulistano e está no Recife.

Fiquei muito contente de te encontrar, virtualmente.

Forte abraço.

Negão

E aí me lembrei da inesquecível frase de Caetano no Pasquim: “O Rei esteve na minha casa e eu chorei”.

Quase chorei, pensando em Fernanda, no Paranga, nas coincidências, nos caminhos da vida.

“Tudo pra você agora vira texto, né, paiê?”, ela me disse um dia.

A rigor, eu deveria escrever, logo abaixo da reprodução da minha resenha sobre o show do Paranga no Lira Paulistana em 1983, um breve e informativa nota sob o título de “A historinha por trás do texto” – e pronto.  Mas agora tudo para mim vira texto, e resolvi escrever esta bobagem aqui, como um post independente, e não como uma nota de rodapé abaixo da resenha sobre o show do Paranga.

Quando reproduzi neste site minha resenha (o jornal usava a execrável palavra “crítica”) sobre os dois primeiros discos do Rumo, de 1981, fiz uma nota de rodapé A historinha por trás do texto em que dizia:

Há um aspecto absolutamente gratificante no ofício de “crítico”. Ser “crítico” – de cinema, de música, do que for – é um ofício que muita gente gostaria de ter, e que eu, pessoalmente, acho muito duro. Quando o sujeito vira “crítico”, transforma em obrigação o que antes era prazer. Em vez de dar-se ao prazer de ver um filme, ou ouvir um disco, ele passa a ter a obrigação de ver filmes, ouvir discos – e escrever sobre aquilo. Se vira obrigação, deixa de ser prazer.

Mas esse duro e nada prazeroso ofício tem um aspecto gratificante. É quando você fala bem de um artista novo, ainda não consagrado.

Que Negão dos Santos se lembre ainda hoje, quase 30 anos passados, de um sujeito que falou bem do grupo Paranga quando ele estava lançando seu primeiro disco é algo completamente louco, doido de pedra. E ao mesmo tempo lógico, compreensível.

Uma vez eu disse para Mary que vou me lembrar sempre de todas as pessoas que foram ao velório de minha mãe, e mais ainda das que não foram.

É mais uma frase bonitinha do que uma verdade literal – mas expressa um conceito real.

Há coisas de que a gente não se esquece nunca, jamais, em tempo algum. A solidariedade em momento duro – ou a falta dela. O apoio quando precisava demais de um apoio.

Negão comprova isso, inequivocamente.

É uma coisa tão louca que cheguei a duvidar que fosse verdade. Fiquei achando que era alguém mangando de mim.

E aí me lembro de uma outra historinha daquela época – início dos anos 80 – em que eu, subeditor de Reportagem Geral do velho e ótimo Jornal da Tarde, fazia frilas como “crítico” de MPB para o próprio jornal.

Recebia aquele monte de discos enviados pelas gravadoras. Porque era jovem – estava no início dos meus 30 anos –, ou talvez porque fosse um profissional sério, quase tão sério quanto Fernanda é hoje, ouvia tudo com atenção, respeito. Um dia me chegou um disco de uma cantora desconhecida, que assinava várias ou todas as músicas. Propus ao pessoal da Variedades fazer uma “crítica” do disco. O disco tinha saído pela há muito extinta RGE, que na época só lançava porcaria. Nenhum dos grandes jornais elogiava disco algum da gravadora, porque era tudo muito ruim mesmo. O divulgador da RGE só faltou se ajoelhar a meus pés por causa do meu texto. Só depois que o texto foi publicado fiquei sabendo que a moça que eu havia elogiado – Denise Emmer – era filha de dois monstros sagrados, Janete Clair e Dias Gomes. Denise Emmer fazia questão de tentar carreira por si própria, sem ajuda do pai e da mãe famosérrimos. Não virou uma cantora/compositora muito conhecida ou respeitada. Mas falei bem dela porque gostei do disco – nada a ver com seus pais. E ganhei um eterno agradecido, o divulgador da gravadora, bom sujeito, honesto, bom caráter.

Estas mal traçadas não têm interesse para ninguém a não ser para mim mesmo. Sei disso. Mas tive vontade de escrevê-las, porque Negão dos Santos mostrou que existe gratidão neste mundo, e, se existe gratidão, então talvez a humanidade não seja assim exatamente uma invenção que não deu certo. E também porque Fernanda, espantosamente linda, inteligente, curiosa, sábia, cheia de dúvidas e tristezas, esteve na minha casa, e então eu quase chorei.

E, já que falei em gratidão, te agradeço, Suely Rossanez, pela filha que você me deu. E te agradeço, Mary Zaidan, por enfim ter me dado a dádiva maior do amor em paz.

       9 e 10/2/2011

“Quem puxa aos seus não degenera, não”, citado no olhinho deste texto, é de autoria de Walter Franco. Suely e eu vimos um belíssimo show de Walter Franco na Geografia e História da USP, lá por 1972, antes de Fernanda nascer.

Ah,  sim. E eu fico me devendo um texto sobre o Lira Paulistana.

Sem contar com o fato de que me devo um texto sobre Walter Franco.

4 Comentários para “Sobre o Paranga, o Lira, a Benedito Calixto, e gratidão”

  1. Sérgio,reli a crítica(elogio)e fiquei sem palavras e cheio de lágrimas ouvindo os acordes daquele show. Obrigado novamente.
    Só quem tem história sente saudade.

  2. Ontem vi o DVD “Tributo a Elpídio dos Santos” e fiquei com sensação de que ele, além de bem feito e bonito,tem a capacidade de nos conectar a algo que não consegui identificar. Hoje, logo ao abrir meus e-mails, encontrei uma mensagem do Negão com a crônica do Sergio sobre a conversa dos dois. Era isso, alem de uma justa homenagem a Elpídio dos Santos, esse DVD tem a capacidade de nos conectar a essa humanidade que ainda se encanta com a gratidão, com as relações construidas ao longo da vida através da arte. Essa, que as vezes, dá o ar da graça, mas quando faz isso nos ilumina e nos enche de esperança.

  3. eu estava neste e em TODOS os shows do paranga no Lira … me deu uma saudade ..
    obrigado por me levar novamente a este mundo tao musical e bom que foi a epoca do paranga
    no Lira

  4. Mestre Sergio.
    Hoje revendo nosso encontro, mais me encontro com voce e obrigado pelas palavras.
    estou sem seu endereço, e desta vez, gostaria de mandar o cd de Lia Marques, minha filha.e tambem do João Gaspar, meu filho musical.
    pretendo ainda encontrar com voce ao vivo e a cores.
    grande abraço
    Negão dos Santos

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