O Guerra e Paz da literatura de lazer

A inspetora Rosa Figuerola, mulher muito grande, bonita, gostosa, malhava cinco vezes por semana, duas horas por dia, mas nunca perdia tempo com romances policiais ou qualquer literatura de lazer. Não que só pensasse no corpo e nunca na mente. “Concluíra o secundário com as melhores notas e aos 21 anos ingressara na Escola de Polícia, trabalhando depois por nove anos na polícia de Uppsala, enquanto em seu tempo livre estudava Direito. Só por brincadeira, prestara exame para Ciências Políticas, e também passara.”

Mas não perdia tempo com romances policiais.

“Em compensação, mergulhava com o maior interesse nos assuntos mais variados, do Direito internacional à história da Antiguidade.”

Eu diria que Rosa Figuerola é diferente de boa parte da humanidade, e de boa parte daquele pequeno pedaço da humanidade que teve o privilégio de estudar, e adquiriu o hábito, a necessidade e o prazer de ler. Tirando alguns tipos especialmente estranhos, como o meu irmão mais velho Floriano, maior colecionador de livros depois de José Mindlin de que já ouvi falar, devorador feito traça, feito gafanhoto, de quase tudo o que passar à sua frente, possivelmente o sujeito que mais leu Henri Troyat no mundo, e meu amigo Jorge, alienígena genuíno, que já leu todo Dostoiévski mais de duas vezes, releu Guerra e Paz em ridículas três semanas, traçou Pushkin em esperanto e musicou Dante Alighieri e Gil Vicente, não conheço ninguém que, como Rosa Figuerola, resista à tentação de um romance policial, de mistério ou espionagem – a literatura de lazer.

Uma vez uma amiga, moça culta, ótima jornalista, bom texto, me garantiu que, àquela altura do campeonato (tínhamos já passado do meio século de vida), tomara uma decisão: dali em diante, só leria livros policiais. Aquilo até me assustou um pouco. Achei um tanto radical, e agora, velhinho, eu, que já fui bastante radical em quase tudo, ando cada vez mais convencido de que a verdade está no centro, longe dos extremos. Depois de um Machado, nada melhor que reler um Arthur Conan Doyle – e vice-versa.

Mas, a rigor, a posição da minha amiga radicalmente pró-literatura de lazer é mais comum que a do Floriano, do Jorge e de Rosa Figuerola.

         Tantos personagens quanto em Guerra e Paz

Rosa Figuerola é um personagem de ficção, de literatura de lazer. É um dos cerca de, sei lá, 40, 60 personagens da Trilogia Millennium, do sueco Stieg Larsson. Stieg Larsson cria tantos personagens quanto Liev Tolstói em Guerra e Paz, quanto Bóris Pasternak em Doutor Jivago.

Assim como os russos, Larsson é caudaloso, prolixo. O anti-Hemingway, o anti-Dalton Trevisan, o anti-Graciliano. Do americano se diz que não gostava de adjetivos e advérbios – para ele, sujeito e verbo bastavam para descrever a ação, sem necessidade de enfeites. Do curitibano se diz que seu sonho é procurar cada vez mais a essência, que seu ideal seria chegar do conto ao hai-kai. Do velho Graça se diz que ficava dias a observar o que havia escrito, para cortar tudo o que fosse ou parecesse supérfluo, desnecessário; se houvesse mais de um que num parágrafo, recomeçava; procurava a frase seca, como as vidas que retratava.

Os russos – Dostoiévski, Tolstói, Pasternak, Soljenítsin –, esses, ao contrário, se espalham por centenas e centenas e mais centenas de páginas. Parece até, como se costuma dizer nas redações, que ganhavam por lauda.  

Larsson é igualmente caudaloso. O primeiro volume da Trilogia Millennium, Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (em inglês, foi publicado como The Girl with the Dragon Tattoo, em Portugal como Os Homens que Odeiam as Mulheres), tem pra lá de 500 páginas, na edição brasileira, da Companhia das Letras – e não é um livro em formato pequeno, próximo da edição de bolso. Não, é em formato grande.

O segundo volume, A Menina Que Brincava com Fogo, passa das 600 páginas. O terceiro, A Rainha do Castelo do Ar, em que surge Rosa Figuerola, beira as 700.

É estranho pensar que os russos possam ter algo a ver com os suecos. Mesmo que muito genericamente, Rússia e Suécia, em termos históricos, ou geopolíticos, são profundamente distantes. A Mãe Rússia parece não conseguir se livrar nunca dos monarcas absolutistas, sejam eles os czares imperiais, os czares comunistas, o czar pós-comunismo Vladimir Putin, enquanto a Suécia é a social-democracia, o Estado do bem estar social mais firmemente plantada no planeta. No entanto, se olharmos no mapa, estão bem próximos, Rússia e Suécia – só a fina Finlândia as separa.

Mas isso não tem nada a ver, embora tudo tenha a ver com tudo. Vamos em frente.

         Literatura de lazer feita com uma competência danada

Muito ao contrário dos quatro russos citados acima, que fazem a Grande Literatura, muito ao contrário de seus conterrâneos Ingmar Bergman e Victor Sjöström, que fazem o cinema mais cabeça que se possa imaginar, o sueco Stieg Larsson faz “romance policial”, “literatura de lazer”. A Trilogia Millennium é aquele tipo de coisa que Rosa Figuerola não perderia tempo lendo – e que a imensa maior parte das pessoas que lêem adoram, tenham ou não vergonha de admitir.

O diabo é que Larsson faz “literatura de lazer” com uma competência danada, fantástica, extraordinária, sensacional.

Uma competência divina – ou seria diabólica?

         Ao contrário de Rosa Figuerola, adoro ler por puro prazer

Não tenho qualquer vergonha em admitir: gosto demais de uma “literatura de lazer” – assim como gosto demais, por exemplo, de comedinhas românticas, essa coisa tão mal vista pelas pessoas sisudas quanto os romances policiais.

Sou fascinado pelas histórias criadas por Sir Arthur Conan Doyle. Pelas criadas por sua quase colega mais jovem, Agatha Christie. Sei que esta se baseou naquele, bateu no liquidificador as idéias do antecessor e fez um bando de limonadas, mas isso não me impede de curtir as histórias dela, porque, afinal, são limonadas bem gostosas.

Gosto demais do que os americanos fizeram reagindo contra aquilo criado no antigo império – os detetives muito pouco cerebrais, durões, amargurados, os hard-boiled do grande Dashiell Hammett, de Raymond Chandler. Me fascinam os personagens de James M. Cain – e meu lado que gostaria de ser mais intelectual, mais acadêmico, fica bastante satisfeito em saber que as histórias e os personagens de James M. Cain também fascinaram os europeus Billy Wilder, Luchino Visconti.

Babo, embora sem capacidade para compreender completamente, com o pai de todos eles, Edgar Allan Poe – que fascinou Fellini, Malle, Vadim.

Sou leitor tão fiel quanto possível dos americanos mais jovens, que aprenderam com todos os que vieram antes, desde o mais direto e reto John Grisham, brilhante criador de tramas, porém literato mais raso, até o muitísimo mais sofisticado Scott Turow. Do garoto Dennis Lahane, li contos bem bobos, mas também uma beleza de livro que é Sobre Meninos e Lobos – belo texto, ousada tentativa de diminuir a distância que separa as duas literaturas, a Grande da “de lazer”.

Gosto muito também, é claro, dos romances de espionagem de John le Carré e Frederick Forsyth. Eles também tentam diminuir a distância entre as duas literaturas, e produzem obras densas, sérias, abordando temas importantes, indo fundo na política, na economia, na superestrutura. Só para dar um exemplo: quem, em juízo são, poderia classificar O Jardineiro Fiel, de le Carré, que o brasileiro Fernando Meirelles transformou num belíssimo filme, como “literatura de lazer”?

         Uma só grande história com muitas subtramas

A sensação que tive, no entanto, ao ler os livros da Trilogia Millennium, foi de que Stieg Larsson é gênio, é mestre. Não gostaria de usar a expressão “melhor” – mas é mais absolutamente apaixonante do que todos os demais.

Não se trata de competição, olimpíada, milésimos de segundo que um chegou antes do outro. Estou apenas tentando expressar o que senti ao ler Larsson, em comparação com os outros livros, os outros autores.

A ver se consigo exprimir.

Há os personagens, e há as tramas. Há as tramas, e há os personagens.

Embora a frase pareça a do filósofo greco-cearense José Genoíno (“uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”) e com a da filósofa greco-acreana Marina Silva (“se for para perder, que seja perdendo, se for para ganhar, que seja ganhando”), a verdade é que há as tramas, e há os personagens.

Autores como Dorothy L. Sayers, Conan Doyle, Agatha Christie,  Rex Stout, criaram personagens fantásticos, sensacionais, que participam de várias histórias, vários casos. Sherlock Holmes e o dr. John Watson, por exemplo, aparecem em 56 contos e quatro novelas – 60 histórias no total. A rigor, poderíamos dizer que aqueles dois personagens investigaram 60 casos, entre os mais complexos e os um pouco mais simples. Um caso às vezes é até citado numa outra história, mas cada história é uma só, começa e acaba.

O mesmo acontece com o personagem Lord Peter Wimsey de Dorothy L. Sayers, com Hercule Poirot e Jane Marple de Agatha Christie, com Nero Wolf de Rex Stout.

Larsson criou dois personagens fascinantes, marcantes, sensacionais, que vivem diversos casos, mas todos esses casos são entrelaçados; é praticamente uma única história, que atravessa três grossos volumes, quase 2 mil páginas no total.

Não estou certo se deixei clara a diferença, mas ela me pareça fantástica. A história de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist é diferente de tudo o que já havia sido feito na “literatura de lazer”: uma única, longuíssima história, ao longo de três grandes volumes.

         Os protagonistas não são detetives, sequer amadores – mas investigam

Uma segunda diferença é que os dois personagens criados por Larsson não são policiais ou detetives particulares – nem mesmo detetives amadores, como Lord Peter Wimsey e Jane Marple.

Uma terceira diferença é que, ao contrário do que acontece nas narrativas da maior parte das histórias policiais, ou de mistério, ou “de lazer”, centradas em um ou dois protagonistas, na Trilogia Millennium há uma grande galeria de personagens. Sim, os principais são os dois, Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist, mas há pelo menos uma dezena de personagens importantes, cujas ações o autor acompanha, detalhadamente.

Isso, por um lado, torna a trama, as tramas, mais ricas, mais complexas. Ao mesmo tempo, aumenta o suspense, o mistério, a curiosidade do pobre leitor. Larsson é um mestre da ação paralela – vários eventos acontecem ao mesmo tempo, com cada um desses 12, 15 personagens, de tal maneira que ele pode interromper o que está acontecendo com o personagem A, voltar ao ponto em que havia interrompido a narrativa sobre B, avançar um pouco até um ponto que nos deixa morrendo de vontade de saber o que vai acontecer em seguida, e interromper de novo para prosseguir contando o que está havendo com C, e assim por diante.

É mais ou menos, penso agora, enquanto faço esta anotação, como as novelas da TV – com a diferença de que todos os personagens são interessantes, importantes. Com todos eles estão acontecendo fatos significativos, fundamentais para a trama geral, para a história como um todo. Nas novelas de TV, há personagens que são secundários mesmo, alguns para dar um pouco de humor, outros para dar um descanso aos demais.

Nos livros de Larsson, não. Todos são importantes.

O resultado é louco: é aquela coisa que a língua inglesa expressa melhor que o português, o page turner, a história que faz com que o leitor simplesmente não consiga deixar de virar a página seguinte.

Fui checar com minha amiga e ex-professora de inglês Regina Berlim se page turner é correto, e ela disse que agora andam usando a expressão unputdownable – que não se pode put down, que não se pode deixar de lado. Regina explicou que a expressão tem sido usada para definir a Trilogia Millennium. E me perguntou: “Você leu os livros? Unputdownable.”

Segundo a Companhia das Letras, o jornal inglês The Guardian escreveu: “Atenção: Esta trilogia é altamente viciante”.

Viciante, page turner, unpudownable.

Perfeitas definições. Perfeitas.

         E é tudo absolutamente atual

Outra característica importante da trilogia é sua atualidade.

Nada contra as histórias de Sherlock Holmes e o dr. Watson, passadas no final do século XIX. São adoráveis, e quando ele descreve as ruas de Londres, fala dos trens, dos táxis da época – as carruagens –, é uma absoluta delícia imaginarmos como deveria ser a então capital do mundo.

Mas a trilogia é uma coisa absolutamente atual, é tudo hoje, século XXI, terceiro milênio, o mundo do telefone celular, do computador, da internet, dos chats. É uma maravilha.

E Larson enlaça seus personagens fictícios com fatos da realidade, com personalidades reais da história recente. A trama passa por redação de revista independente, redação de jornal grande, imensas corporações, bancos e operações financeiras off shore, o assassinato do primeiro-ministro Olof Palme, o desmantelamento do império comunista, volta ao tempo do nazismo mas retorna rapidinho ao presente, ao tempo atual, as delegacias de polícia informatizadas, o serviço secreto sueco… James Bond, Woodward e Bernstein, Nero Wolfe, uma pitada de Dexter, escravas brancas, pornografia, política, economia, desavenças e intrigas em família rica, mais diversos outros elementos tenebrosos que não dá para citar sem que isso seja revelação indevida para quem ainda não leu – tudo junto, tudo misturado, intrincado… De novo: é uma maravilha.

         Um jornalista investigativo e uma jovem prodigiosa

Acho que é imprescindível falar, ainda que um pouco, dos dois personagens principais. Quando a ação do primeiro volume começa, conhecemos Mikael Blomkvist. Tem 40 e tantos anos, é um dos donos da revista independente Millennium – daí o nome da trilogia; repórter investigativo, publicou uma série de reportagens acusando um empresário poderoso e biliardário de fraudes financeiras e ligações com tráfico de drogas. O empresário foi à Justiça pedindo a condenação de Blomkvist por injúria; o jornalista não consegue provar suas acusações, e é condenado a três meses de prisão e ao pagamento de uma alta indenização. Blomkvist – que só deverá se apresentar para cumprir sua sentença de prisão daí a alguns meses – decide se afastar da revista, como forma de proteger a reputação da publicação.

Mas o personagem central da trilogia é de fato Lisbeth Salander. É uma das figuras mais marcantes que já conheci na literatura – a séria e a de lazer. É uma jovem pequenina, mignon; mede um metro e meio, pesa menos de 50 quilos. Tem a aparência de um punk andrógino – um monte de piercings, de argolas, um monte de tatuagens na pele, cabelo curto, franja caindo no meio dos olhos, calças compridas negras, casaco de couro negro. Uma figura bastante assustadora – quase asquerosa. Com pouca educação formal, com problemas psicológicos seriíssimos – tem um histórico conturbadíssimo, o mais traumático que se possa imaginar –, parece para diversas pessoas quase uma débil mental. No entanto, é uma superdotada, um gênio absoluto; aprende tudo rapidamente, tem memória prodigiosa e uma determinação assustadora. E é uma das melhores hackers do mundo.   

Apesar da aparência frágil, reage a quem a ataca com uma agressividade absoluta. Desde a escola primária reagiu com extrema violência a quem a atacava. É extremamente fechada, jamais fala de sua vida pessoal, é anti-social, tem pouquíssimos amigos – quase nenhum. Um porco-espinho.

Uma figura complexa, fascinante.

As histórias dos dois – e de vários outros personagens que os cercam – vão sendo contadas paralelamente, ao longo de mais da metade do volume 1 da trilogia. Mikail Blomkvist só vai se encontrar com Lisbeth Salandar na página 300. 

         Um jornalista comunista que nos romances só defende o que é bom

Figura muito doida, no melhor sentido da palavra, esse Stieg Larsson (foto). Nasceu em 1954; foi um jornalista militante; pertenceu à Liga dos Trabalhadores Comunistas da Suécia, editou um jornal trotskista, criou uma fundação, a Expo Sueca, para “contra-atacar o crescimento da extrema direita e a cultura do poder branco nas escolas e entre os jovens”. Sua militância fez com que recebesse diversas ameaças de morte.

Devorador, ao contrário de sua personagem Rosa Figuerola, de livros de ficção científica e novelas policiais, passou a escrever – aparentemente mais por diversão do que a sério – suas próprias histórias; consta que escrevia à noite, em casa, depois da jornada normal de trabalho como jornalista. Só procurou editores para seus romances pouco antes de morrer, de ataque cardíaco, aos 50 anos, em 2004. Os três romances foram todos publicados postumamente. No Brasil, chegaram em 2009.

Até março de 2010, os três livros já haviam vendido 27 milhões de cópias em 40 países.

Ao contrário do que se poderia esperar, Larsson não faz proselitismo do comunismo na trilogia. Sim, ataca o poder das grandes corporações, as sacanagens que as grandes corporações são capazes de fazer, a especulação desenfreada nas bolsas de valores – mas isso acho que até o Reinaldo Azevedo atacaria. Critica a parte da grande imprensa que se alia aos interesses conservadores, faz a defesa veemente da mais absoluta liberdade de imprensa, condena o poder excessivo do Estado e seus agentes, esculhamba com a direita, faz a apologia dos direitos fundamentais de cada cidadão – tudo sem fazer panfleto, no meio da ação, da trama apaixonante.

Posições que qualquer social-democrata defenderia.

Em seus romances “de lazer”, o jornalista comunista se sai politicamente um belo social-democrata, e, em termos de comportamento, um progressista comme il faut.

Imagino que a imensa maioria das leitoras mulheres vá ficar com uma pontinha de inveja da alegre vida sexual de Erika Berger, a redatora-chefe da Millennnium. Algumas, talvez, da liberdade de Lisbeth Salander. E todos os homens com uma imensa inveja de Mikael Blomkvist. Eu, de minha parte, de vez em quando me lembrava dos agitados tempos de solteiro.

A tradução é boa, há poucos erros. Mas a contracapa tem um crime

A Companhia das Letras, uma das mais importantes editoras do país, costuma ser absolutamente cuidadosa nas traduções, na preparação de texto, na revisão. Quanto a mim, costumo ler sempre com uma caneta ao alcance da mão, para marcar os pequenos (ou grandes) erros, enganos, falhas – uma vez copydesk na vida, sempre copydesk. Marquei pouca coisa, nos três volumes que somam perto de 1.800 páginas. Há algumas poucas opções sem lógica, como, por exemplo, manter a grafia Göteborg, em vez da muito comum Gotemburgo, já que Estocolmo está grafado dessa maneira, aportuguesada, e não Stockholm. Mas são pequenos detalhes.

No volume 1 há uma bobagem que se repete algumas vezes, e todo mundo da editora deixou passar: emprega-se o verbo emprestar em versão paulistês, longe do português correto – no sentido de emprestar e de tomar emprestado, e esse erro aparece duas ou três vezes.

Mas, tirando essas pequenas coisas, achei o texto da tradução gostoso, atual, sem frescuras. Os tradutores (Paulo Neves no volume 1, Dorothée de Bruchard nos volumes 2 e 3) procuraram adaptar os diálogos para uma linguagem mais próximo da falada – sem exageros, mas também sem grandes pruridos. Misturam, por exemplo, os pronomes de segunda pessoa com o você, como nós, brasileiros, fazemos. Tipo: “Quero te ver amanhã; você vai estar em casa?” Ninguém fala, por exemplo, “Vou contar a você”, e sim “Vou te contar” – e é assim que os tradutores fizeram. Os portugueses não gostariam da tradução – mas, para nós, é o usual, o jeito como falamos.

A mim, pessoalmente, não incomoda nada saber (e isso não é escondido pela editora) que o texto em português foi traduzido da tradução francesa, e não do original sueco.

Mas me incomoda profundamente ver que a primeira linha sinopse da contracapa do volume 2 revela algo que o leitor só vai saber na metade do livro de 600 páginas. Um absurdo inominável, um crime, que infelizmente tem sido cada vez mais comum, nas contracapas de livros, nas capas de DVDs. Eu só fui ler o maldito texto depois que terminei o volume, é claro – mas quantas vítimas inocentes esse estraga-prazer pode causar?

A trilogia já chegou ao cinema. E os americanos estão refazendo

Sim, o cinema.

Todos os três livros já foram transformados em filmes, pela mesma equipe, com os mesmos atores, em cuidadosas produções feitas na própria Suécia. O primeiro, Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, já foi lançado no Brasil em DVD e em Blu-Ray. É magnífico. (Comentei sobre ele no 50 Anos de Filmes.) Naturalmente, é uma simplificação da trama do livro; muita coisa foi cortada – seria impossível contar num filme todos os detalhes do livro. Mas achei que funciona muito bem.

Minha amiga Regina Berlim não gostou tanto. Comparou com o livro e achou que a versão cinematográfica perdeu demais.

Já Fernanda, minha filha, que leu tudo antes de mim (hoje em dia ela lê tudo antesd de mim) e me sugeriu que lesse, viu todos os três filmes, o segundo e terceiro – que ainda não chegaram aqui nem nos cinemas nem em DVD – baixados pela internet, e gostou de todos. Só achou que o terceiro volume, que tem várias tramas intrincadíssimas, ficou um pouco mais difícil de ser acompanhado por quem não conhece o livro.

A trilogia sueca ainda nem chegou inteira aos cinemas e os americanos já estão refazendo, preparando a sua própria versão da história, seguindo aquele axioma que funciona lá segundo o qual, se alguma coisa foi feita fora das fronteiras do Império, não foi feita.

Bem, para finalizar, duas pequenas confissões. Quando comprei os volumes 2 e 3 da trilogia, no dia 6 de setembro, me achei louco, fiquei me culpando, achando que só deveria ter comprado um, porque é aquele tijolaço imenso e leio muito devagar. No dia 30, terminei de ler o volume 3. E, ao concluir a leitura do 3, não resisti, e fui ler o 1, cuja trama básica já conhecia por ter visto o filme.

Li o 1 menos sofregamente que os volumes 2 e 3, mas também devorei rapidinho. Claro, deveria ter lido o 1 primeiro. Errei em achar que, porque já tinha visto o filme, poderia começar a leitura pelo 2.

Ao terminar, dá uma fortíssima vontade de que houvesse os volumes 4, 5, 6.

Dá um certo vazio não ter mais histórias de Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist para ler.   

Setembro e outubro de 2010