Como não gostar de Harry Hole?

Em Boneco de Neve, de 2007, o escritor norueguês Jo Nesbø volta a mexer na cronologia, como já havia feito em O Redentor, de 2005. Volta também a usar, com maestria, o que parece ser uma característica de suas obras: as ações paralelas.

Com as ações paralelas, essa coisa tão absolutamente cinematográfica, ele interrompe, na nota alta, o que estava relatando, para passar a relatar o que está se passando com outros dos seus muitos personagens.

Está lá contando o que está acontecendo com o protagonista, o inspetor de homicídios da Polícia de Oslo Harry Hole. Chega à nota alta, a um ponto em que o leitor está desesperado para saber o que acontece em seguida com Hole – e aí corta, e passa a relatar o que está acontecendo naquele momento com um dos outros, sei lá, 20 personagens da história.

E aí não tem jeito, não tem alternativa: mesmo que o leitor tenha que fazer outras coisas na vida, lerá o que se passa com aquele um dos 20 personagens, para tentar chegar o mais depressa possível à continuação da narrativa sobre Harry Hole.

zznesbo2Se a gente pensar bem, se a gente pudesse parar para pensar, diria que é irritante. Que é uma baita de uma sacanagem.

Mas quando você está lendo Jo Nesbø, você não pára para pensar que o autor está sendo safado, irritante, sacana: você lê a página seguinte, e a seguinte, e a seguinte, e a seguinte.

Jo Nesbø faz aquele tipo de literatura que não dá para parar de ler.

É duro, o Ancelmo Gois ficaria bravo, diria é o cacete, mas a verdade dos fatos é que o inglês tem umas palavras, umas expressões que são muito mais expressivas do qualquer tentativa de tradução para o português.

Os livros de Jo Nesbø são page turners. Viradores de página. Unputdownables – que não dá para deixar de lado.

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Nesbø gosta de dar, como antetítulos dos capítulos de seus livros, a data em que ocorre a ação.

O capítulo 1 de Boneco de Neve chama-se “O Boneco de Neve”. O antetítulo é “Quarta-feira, 5 de novembro de 1980”.

O capítulo 2 tem o título de “Olhos de Pedrinhas”. E o antetítulo especifica que a ação se dá nos dias de hoje, bem perto de quando o livro foi escrito e lançado – “2 de novembro de 2004. Dia 1”.

A partir daí, os antetítulos dos capítulos irão dizendo dizendo dia 2, dia 3, dia 4…

Então tudo bem – tivemos um intróito, com a ação se passando em 1980, e depois estamos nos dias de hoje, e ação vai se dando a partir daí cronologicamente…

Se fosse assim, tudo bem. Mas acontece que, na página 44 (da edição brasileira, da Editora Record, de 2013), essa aparente ordem se desfaz. O capítulo 5, “O totem”, avisa no antetítulo: “4 de novembro de 1992”.

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É um excesso de fatos, de personagens, de datas.

Tá: tem um fato acontecido em 1980. Aí vamos para os dias de hoje, no caso 2004. E de repente, no meio de tantos fatos e personagens, surge 1992.

Jo Nesbø deixa o leitor doidinho da silva.

Mas a narrativa é tão fascinante, tão brilhante, e o filho da mãe usa tão bem o truque de subir a nota para, quando a nota está lá em cima, interromper a melodia, e passar para outro tema, que Boneco de Neve, assim como os dois outros livros que já li de Jo Nesbø, é absolutamente turn pager, unputdownable. Não dá para parar de ler a droga do livro.

Boneco de Neve tem 418 páginas. Parece ser um padrão. O Redentor tem 417. É muita página, para a gente não parar de virar nunca, até a última.

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O Redentor trazia personagens, situações, dramas, estrangeiros, não noruegueses – assim como a trilogia Millennium, do vizinho sueco Stieg Larrson. Já este Boneco de Neve, ao contrário, dispensa as tragédias estrangeiras. Tudo é norueguês.

Não há grandes complôs internacionais. É tudo feito em casa. É tudo a loucura de que o ser humano é capaz – seja ele norueguês, do país do maior IDH do mundo, seja latino, anglo-saxão, asiático, o que for.

Talvez dizer isso seja um spoiler, mas o fato é que a trama de Boneco de Neve tem a ver com conceitos morais. Aliás, moralistas.

No capítulo 1, em que a ação se passa em 1980, acontece uma trepada de uma mulher infiel ao marido – uma adúltera.

A partir daí se dá uma imensa seqüência de crimes apavorantes. Absolutamente apavorantes.

Todos os crimes cometidos nos filmes de terror das últimas décadas são suaves, diante dos crimes que Jo Nesbø cria e narra.

Os livros de Jo Nesbø são aterrorizantes – mas não há nada neles que sequer levemente toque o sobrenatural. É tudo pão pão, queijo queijo. Não há fantasmas. É tudo feito de matéria que se pega, se toca.

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zznesbo1Confesso que fiquei ao mesmo tempo tão mesmerizado, apaixonado por Boneco de Neve, quanto um tanto enojado por ele.

Penso em Agatha Christie, a deliciosa, fantástica velhinha inglesa doida que parecia escrever um romance policial a cada três meses. Comparados aos crimes que Jo Nesbø descreve minuciosamente, os crimes dos livros da simpática velhinha inglesa doida são limpos, asseados, assépticos, desinfetados, higiênicos.

É um sinal dos tempos, certamente. O mundo é hoje mais sujo, emporcalhado, encardido, poluído, sebento do que nos anos 1920, quando Dame Agatha começou a escrever suas histórias de crimes. A violência tornou-se muitíssimo mais violenta, ao longo dos 80 e tantos que separam The Mysterious Affair at Styles de Boneco de Neve. A explicitude dos detalhes sórdidos, escabrosos, nunca foi tamanha – seja nos livros, nos filmes, na televisão, nos jornais.

O cinema, a literatura, a televisão, os jornais refletem a vida real. Tentar estabelecer se o que “a mídia” (eta termo hediondo!) mostra faz aumentar a sujeira, a violência, na minha opinião é conversa pra boi dormir. Me parece óbvio que a realidade influencia a forma com que a realidade é exposta nos meios de comunicação e nas artes. Muito provavelmente a exposição de tanta sujeira, de tanta violência, leva mais sujeira e violência. É um círculo viciado do princípio ao fim, é a bola de neve rolando montanha abaixo, virando avalanche.

Nesse sentido, talvez pudéssemos considerar nefasta a existência de livros como os de Jo Nesbø. Mas porém todavia contudo o que livros como os de Jo Nesbø mostram é exatamente o que acontece na vida real. E só loucos varridos, ou petistas (o que talvez dê no mesmo), acreditam de fato que a culpa da má notícia é do carteiro.

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Xi… Viajandei longe…

Baixando o facho.

Há alguns detalhes nos romances policiais que me incomodam um pouco. Por exemplo: a quantidade de porrada que os protagonistas levam – e a capacidade deles de continuarem vivendo, e trabalhando, e fazendo tudo o que têm que fazer apesar de tanta dor física.

Harry Hole está muito mais próximo dos hard-boiled detetives americanos criados por Dashiell Hammett e Raymond Chandler do que do almofadinha Hercule Poirot de Agatha Christie.

O que Harry Hole leva de porrada é uma grandeza.

zznesbo#Passa dias sem dormir. Tem recaída na bebida – Harry Hole é alcoólatra brabo, profundo; tem estado sóbrio na época em que se passa a ação de Boneco de Neve, mas tem uma recaída –, e no entanto consegue sair do fundo do poço. Aí leva porrada – meu Deus do céu e também da terra, como leva porrada –, e no entanto consegue seguir em frente.

Uns dias depois que terminei de ler Boneco de Neve, dei uma topada  com o dedinho do pé direito dentro de casa. (Estava sóbrio; foi uma topada dessas que podem acontecer a qualquer um que anda pela casa de sandálias Havaianas.) Doeu uma enormidade. Uns quatro dias depois da topada ainda sentia dor no dedinho quando o enxugava depois do banho.

Como é possível que Harry Hole leve tanta porrada e fique numa boa? OK, ele não fica numa boa, propriamente, mas continua tocando a vida, investigando os crimes, fazendo tudo normalmente.

Lá pelas tantas, Harry Hole perde um dedo!

A topadinha boba dentro de casa me deixou com uma dor enorme. Já Harry Hole perde um dedo e continua trabalhando!

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Jo Nesbø é dez anos mais novo que eu, apenas um ano mais novo que Mary. Praticamente somos da mesma geração. Nesbø adora cinema e música exatamente como eu. Num dos seus livros, ele conta que Harry Hole queria emprestar o DVD de A Malvada/All About Eve para seu chefe, Bjarne Møller. Bem no início deste Boneco de Neve, Nesbø conta que Harry tem em sua sala as fotos de colegas que já haviam passado desta para melhor, vários deles mortos no trabalho, e ele chama aquela pequena galeria de A Sociedade dos Policiais Mortos, óbvia referência ao belo filme de Peter Weir com Robin Williams. Harry gosta de A Conversação, diz que é o melhor filme de Coppola. Um personagem secundário tem paixão por Julie Christie.

Tanto quanto de cinema, Nesbø gosta de música. É compositor, o filho da mãe. Foi um dos fundadores do Di Derre, uma das bandas de rock de maior sucesso da Noruega.

E então Nesbø não pára de citar cantores, compositores, bandas, canções, em seus livros. Em Boneco de Neve, cita Neil Young, Johnny Cash, Dolly Parton. Harry Hole, como Nesbø e eu, tem um extraordinário bom gosto musical.

Como não adorar Harry Hole, um policial competentíssimo, alcoólatra, que gosta dos mesmos filmes e músicas que eu?

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Além de gostar dos mesmos filmes e músicas que eu, Harry Hole tem uma Regina na vida.

Chama-se Rakel.

Rakel me faz lembrar demais de Regina, que foi minha paixão até a época em que conheci Mary.

Regina e eu nos separamos – depois de, sei lá, uns oito anos de casamento conturbado – devido a divergências profundas sobre quase tudo, mas, depois de separados, namoramos por mais uns dois anos. Talvez tenha sido uma das épocas mais felizes de nossas vidas.

Uma vez, durante esse período de namoro pós-fim do casamento, me apaixonei por uma moça mais nova, uma moça de beleza extasiante. Numa das muitíssimas noites que passou na minha casa de solteiro, Regina encontrou um livro que a nova namorada havia me dado de presente; leu a dedicatória, e me deixou um bilhete ironizando as pessoas que não sabem escrever. Depois de ter pedido e feito a separação, tinha ainda ciúmes, a sacripanta!

A relação de Harry e Rakel me faz lembrar demais esses tempos de namoro com Regina.

Harry é absolutamente apaixonado por Rakel. Eles haviam namorado durante muito tempo, mas nunca viveram juntos na mesma casa. Oleg, o filho de Rakel de um relacionamento anterior, criou imensa afeição por Harry. Harry, que nunca se casou, gosta demais de Oleg.

Quando a ação de Boneco de Neve começa, em 2004, Harry e Rakel já não estavam juntos – ela havia pedido para que o caso terminasse –, mas ainda se viam, de tempos em tempos; Rakel pedia a Harry que fizesse alguns programas com Oleg – e Harry estava sempre disponível para o garoto.

Mais ainda: Rakel estava começando um relacionamento com um médico, Mathias, e estava achando que havia encontrado finalmente um homem calmo, plácido, estável, para ser seu companheiro. Pensava mesmo em passar a morar com Mathias.

Mas ex-mulher por quem você é profundamente apaixonado não sai da sua vida facilmente – e Rakel não saía da vida de Harry Hole, tadinho.

Digo “tadinho” porque sei muito bem o que é isso.

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Alguns dias depois que terminei de ler Boneco de Neve, vimos, Mary e eu, um filme norueguês muitíssimo interessante, Babycall. Anotei sobre o filme:

“A Escandinávia tem se mostrado pródiga em belos livros e filmes de suspense, mistério, histórias policiais, thrillers. O sueco Stieg Larsson (1954-2004) foi e é um fenômeno mundial, com um monte de milhões de livros vendidos. O norueguês Jo Nesbø, nascido em 1960, seis anos, portanto, depois de Larsson, segue pelo mesmo caminho (seu livro lançado mais recentemente no Brasil, Boneco de Neve, fala em 20 milhões de exemplares vendidos no mundo), com a vantagem de que não morreu tão jovem quanto o colega sueco, e continua produzindo abundantemente.”

E, bem mais adiante, escrevi:

“Quando terminou, ficamos por uns momentos atordoados, atônitos. Passado algum tempo, Mary fez um daqueles comentários certeiros dela. Mais ou menos assim: “São muito loucos, esses escandinavos. IDH alto demais, problemas materiais de menos. Conforto material demais, sol de menos. Aí criam histórias apavorantes assim.”

É exatamente isso.

Dezembro de 2013

7 Comentários para “Como não gostar de Harry Hole?”

  1. Harry Hole gostava de Dylan?
    Porque Rakel deu-lhe um chute?
    Frequentava o AA?
    Interessante este Hole!
    Necessitado de vitamina D !

  2. Tenho todos os livros de Hole publicados no Brasil. Estou lendo agora a casa da dor.li recentemente garganta vermelha. São o começo da vida de Hole, do ele conheceu rakel. Vc disse tudo sobre o ensebo. Assino embaixo. Pena que os 2 primeiros livros da série hoje não saíram no Brasil. Quem sabe um dia.

  3. ATENÇAO SPOILER!!!!!!!!!!

    Eu AMEI esse livro! Me envolvi na trama e fiquei vidrada durante a leitura. Uma UNICA coisa que eu realmente nao compreendi foi a presença do homem do mofo no começo e no final. O QUE ELE TEM A VER COM TUDO ISSO??? alguem pode me explicar por favorr? Obrigada. Ps: FIQUEI COM MEDO DO PRIMEIRO CAPITULO

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