O disco em que Caetano inventou outras palavras

Em entrevistas que deu entre a gravação (dezembro de 1980) e o lançamento (março de 1981) de Outras Palavras, seu 12º LP solo, Caetano Veloso fez algumas constatações sobre este seu mais recente trabalho. Constatações que mostram, em suma, que o autor não ficou completamente contente com a sua obra – ou, pelo menos, que o autor não executou a sua obra da maneira como gostaria de a ter executado.

Ele afirmou, por exemplo: “O disco é muito do jeito que deu para fazer na hora (…). E aí a gente tinha que fazer o disco da gente porque tem o ritmo de lançamento da gravadora, tudo, a vida normal, aí eu fiz meio sem um critério”. E ele mesmo explicou: entre a composição da maioria das músicas que estão em Outras Palavras (várias delas durante sua turnê pelo interior paulista) e a gravação do disco, no Rio, houve a experiência, fortíssima, de gravar um LP (ainda para ser lançado) ao lado de João Gilberto e Gilberto Gil. “O fato de ter feito o trabalho com João entrou minha cabeça numa trip diferente e tomou um tempo enorme e fez, inclusive, adiar a gravação do meu disco”, disse ele.

E mais: “Ele (o disco) deveria ter sido feito lá em São Paulo, eu queria um disco paulista como as canções são paulistas, elas foram saindo na estrada. Mas depois foram tantas coisas… tanto trabalho… o disco Gil e João Gilberto e Bethânia… eu estava sobrecarregado… Perdi um pouco o controle sobre o disco. Os meninos (minha banda é toda carioca) escreveram uns arranjos, ficaram bonitos, mas eu não tive muito controle”.

Esta é a visão do autor. E qual é a sensação que a obra pronta transmite?

Um Caetano menor

A impressão que se tem, ao ouvir pelas primeiras vezes Outras Palavras, é de que este é um disco menor, dentro da obra deste que é (e haveria ainda alguém disposto a discutir?) um dos maiores criadores da música popular brasileira, um dos mais sensíveis, mais lúcidos, mais corajosos de nossos compositores. Um disco sem grandes, importantes, momentos. Exemplos? Não há em Outras Palavras, por exemplo, a riqueza e a genialidade de uma música como “Trilhos Urbanos”, do LP Cinema Transcendental, de 1979. Ou de um “Sampa”, do LP de 78. Ou de “Tigresa”, de 1977. Ou, indo mais atrás, Outras Palavras não revela a mesma garra e o mesmo virtuosismo do LP Transa, de 1972. Ou a mesma trágica (e belíssima) expressão de tristeza e amargura do LP Caetano Veloso, gravado no exílio londrino em 1971. Muito menos a explosão crítica, cheia de lucidez, do LP Tropicália, de 1968.

Nada disso significa, é claro, que Outras Palavras seja um disco ruim. Caetano Veloso simplesmente não tem talento para fazer um disco feio. Está lá o cantor cada vez mais brilhante, cada vez mais capaz de fazer o que bem entender com sua voz pequena, doce, sutil, emocionante. Estão lá os competentes músicos que o acompanham há anos – o piano de Tomas Improta, a bateria de Vinicius Cantuária, o baixo de Arnaldo Brandão, a percussão de Bolão, e ainda os violões de Perinho Santana e do próprio Caetano. Estão lá os corretos, oportunos, às vezes francamente bonitos arranjos de sopros e metais compostos por Perinho Santana.

Mas é preciso se ouvir o disco por várias vezes, e com atenção, para se perceber, entre a planície que parece ser Outras Palavras, os pontos mais altos onde aparece com toda a clareza o grande compositor Caetano Veloso. Como, por exemplo, “Nu com a minha música”, canção que Caetano escreveu em um hotel em Presidente Prudente, durante sua turnê pelo interior de São Paulo. Emoldurados pela melodia lânguida, tranqüila, quase preguiçosa, os versos vão mostrando quem é e o que pensa hoje o artista de quase 40 anos de idade: “Deixo fluir tranqüilo naquilo tudo que não tem fim eu que existindo tudo comigo depende só de mim. Vaca, manacá, nuvem, saudade, cana, café, capim. Coragem grande é poder dizer sim”.

O artista que, aos 26 anos de idade em 1968, enfrentava a estúpida e uivante platéia do Tuca em São Paulo, cantando “Derrubar as prateleiras, as estantes, louças, livros, sim, e eu digo sim, eu digo não ao não, eu digo é proibido proibir”, hoje, próximo dos 39 anos, acha que a coragem grande é poder dizer sim, afirmar sua vida; não quer carregar bandeiras, e faz questão de avisar que não é preciso ninguém seguir atrás dele: “Cara, careta, dedão; isso não é legal em fase da transição. Sou celacanto do mar, adolescendo solar. Não pensem que é um papo torto; é só um jeito de corpo, não precisa ninguém me acompanhar”, como diz em “Jeito de Corpo”, outro dos momentos mais altos que se vão descobrindo aos poucos no disco.

Esta “Jeito de Corpo”, autêntica proclamação de intenções (“Eu tô fazendo saber, vou saber fazer tudo de que eu sou afins. Logo eu que cri que não crer era o vero crer hoje oro sobre patins.”), é, assim como a citada “Nu com a Minha Música”, um exemplo daquilo que Caetano diz ser paulista no disco. É um experimentalismo com as palavras, que desde o início da carreira ele cultivou, e que o aproximou dos poetas concretos, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos. Diz Caetano: “No disco, inclusive, tem muita gíria paulista, muita sintaxe errada e charmosa de São Paulo. Paulista é uma loucura. Em São Paulo a língua pirou, pirou total”. (E, na letra de “Jeito de Corpo”, ele se permite absurdos como “Tudo de que eu sou afins”, ou até “perigas perder você”, para ilustrar isso de que fala).

Mas é na faixa título, “Outras Palavras”, que Caetano vai mais longe em seu experimentalismo: “Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz/ Ouraxé palávora driz okê Cris expacial/ Projetinho imanso ciumortevida vidavid. Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logum. / Homenina nel parais de felicidadania: Outras Palavras”.

Maior que as críticas que possa receber 

Em algumas de suas muitas entrevistas recentes. Caetano Veloso deu duas definições significativas sobre as diferentes fases de sua obra, e que ajudam a compreender o seu trabalho hoje. Ele disse, por exemplo, que, antes de tropicalismo, ele sentia uma “obrigação moral” de interferir no processo, de mexer na música brasileira de então (1966-1967), que estava, ainda segundo ele, muito devagar, cansada, entregue, enfraquecida. Hoje a coisa mudou: “Não sinto mais necessidade de interferir, criticamente, com o meu trabalho, na música brasileira. Sou crítico, continuo sendo, mas realmente não há mais necessidade de interferência alguma. A música hoje é uma coisa muito complexa e muito rica, muito maior que a minha visão, e isso não é modéstia nenhuma, é a verdade”.

Mais ainda: ele admite que talvez esteja ficando mesmo displicente. Mas a impressão com que se fica, ao ir ouvindo mais e mais este Outras Palavras, é a de que o disco – mesmo sendo um disco menor, dentro de sua obra – é maior do que as críticas que possa receber.

 Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde em 11 de abril de 1981

5 Comentários para “O disco em que Caetano inventou outras palavras”

  1. Sérgio,

    assim, depois de tanto tempo, a leitura me faz pensar que somos todos sobreviventes.

    Beijos

    Vivina.

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