Joan Baez Volume 2: a ditadura põe o Brasil em seletíssima companhia

Três países impediram que a voz de Joan Baez fosse ouvida, durante sua carreira que já tem 23 anos e diversas viagens por vários continentes: a União Soviética, a Argentina e o Brasil.

Essa informação, a própria Joan Baez transmitiu ontem (dia 22 de maio de 1981, já nos estertores da ditadura militar), aos policiais que a abordaram no hall do hotel Comodoro, no centro da cidade, onde ela se hospedou em São Paulo. Ela mesma contou isso às dezenas de jornalistas e curiosos que lotavam uma sala próxima ao palco do Tuca, enquanto cerca de 1.800 pessoas na platéia do teatro gritavam, ritmadamente, “Baez, Baez, Baez”.

Eram cerca de 20h40. A platéia lotava inteiramente as 1.200 cadeiras e todos os espaços dos corredores internos do Tuca desde as 18h30, horário marcado para o início do que teria sido a primeira apresentação de Joan Baez no Brasil. Uma platéia formada, na maioria, por jovens, mas uma platéia calma, que reagiu com expectativa e ansiedade, mas civilizadamente, aos avisos que foram sendo dados, a partir das 19h15, de que estava havendo problemas para a realização do show.

Essa platéia ficou de pé, e aplaudiu demoradamente, quando Joan Baez finalmente entrou no palco, pouco antes das 9 da noite – não para cantar, mas para avisar que estava proibida de exercer seu ofício.

Ela tentou explicar o que havia acontecido em espanhol – mas, depois de três ou quatro frases, passou para o inglês, e falou pausada e claramente, quase dispensando a tradução feita pelo deputado Eduardo Matarazzo Suplicy, que havia chegado com ela pouco antes.

A explicação para a proibição do show havia sido dada em um ofício assinado por Dráuzio Selmann Dornellas Coelho, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal em São Paulo. “A cantora alienígena Joan Baez” – dizia o ofício – não poderia apresentar-se por não terem os organizadores do espetáculo cumprido tais e tais obrigações constantes do decreto tal, parágrafo tal, inciso tal, de 1946.

– Eu não entendi bem o português, mas entendi a idéia geral, que me proibia de cantar – diria Joan Baez aos jornalistas e depois à platéia.

Os tais artigos do Decreto nº 20.493 de 1946 exigem que seja submetida previamente à apreciação do Serviço de Censura de Diversões Públicas a programação do espetáculo. Tal exigência, de fato, não foi cumprida pelos organizadores do show (o Secretariado Nacional da Não Violência, a Pastoral Operária, a Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e o Instituto de Estudos Especiais). Acontece que os tais agentes que foram ao Hotel Comodoro avisar à cantora que ela não poderia apresentar-se estavam lá desde as 3 da tarde – e somente às 18h05, quando ela se preparava para ir ao Tuca, eles entregaram uma cópia do ofício que proibia o show. Joan Baez chegou a lhes perguntar por que não havia explicado o problema antes – e eles responderam que estavam cumprindo ordens.

Enquanto a platéia do Tuca esperava a entrada da cantora no palco, ela e alguns organizadores foram à Polícia Federal, na Rua Antônio de Godoy, e apresentaram o requerimento exigido pelo tal decreto, com a programação do espetáculo. Mas aí os policiais explicaram que a seção encarregada de protocolar tal requerimento havia fechado às 6 da tarde.

– Se as conseqüências fossem só para mim – disse ela à platéia –, eu cantaria. Mas elas podem atingir outras pessoas no Brasil, e por isso não vou cantar.

Na realidade, ela acabaria cantando duas músicas – sem qualquer acompanhamento, sem microfone, sem alto-falante, de uma janela – para umas 50 pessoas que conseguiram chegar perto da saleta da secretaria do Tuca. Cantou “Gracias a la Vida” e “Cálice”.

As pessoas que lotavam o teatro tiveram de se contentar em aplaudir a relação das músicas que constava do requerimento apresentado à Polícia Federal: “Bachianas Brasileiras nº 5”, “Imagine”, “Blowin’ in the Wind”, “Gracias a la Vida”, “Don’t cry for me, Argentina”, “Até amanhã”, “Swing low, Sweet Charriot” e “No Woman, no Cry”.

Não se sabia, até o final da noite, se Joan Baez poderá cantar ainda no Rio de Janeiro.

A história por trás do texto

Materinha danada de ruim, essa que fiz, e foi publicada no Jornal da Tarde em 23 de maio de 1981, um sábado, com o título “Joan Baez – O teatro lotado aplaude – mas ela não pode cantar”.

Eu poderia tentar me justificar usando como desculpa a pressão do horário de fechamento. Eram tempos pré-telefone celular, pré-internet; tive que sair correndo do Tuca (o Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Rua Monte Alegre, Perdizes) na sexta-feira, para chegar à redação e escrever às pressas; não me lembro qual era o horário do fechamento das páginas da Variedades, mas devia ser em torno da meia-noite. O espaço aberto na página era pequeno – esperava-se, afinal, uma resenha de um show.

Mas não adianta – a matéria está ruim é porque sou um repórter danado de ruim. Sempre fui um bom copydesk, redator, editor – mas repórter, sou ruim mesmo.

Tinha sido escalado pelo pauteiro da Variedades, o César Giobbi, para cobrir a apresentação de Joan Baez. Naquela época, eu era sub-editor de Reportagem Geral e fazia free-lancers para a Variedades, escrevendo o que o jornal chamava de críticas, e eu prefiro chamar de resenhas, de discos e eventualmente também de shows. Então tinha ido ao Tuca, pertinho da minha casa, para cobrir o show de um dos meus maiores ídolos. Devia estar emocionado, fui pego no contrapé. Mas isso de novo é desculpa.

Zanzei pelo Tuca, fui até a sala onde Joan Baez falava com os jornalistas, falei com as pessoas, consegui as informações básicas – mas o resultado foi isso que está aí em cima. Um texto pífio, e, pior ainda, incompleto, porque saí de lá e voltei para a redação antes que ela resolvesse ir até a platéia, sentar-se numa das poltronas e cantar duas músicas, “Imagine” e “Blowin’ in the Wind” – sem microfone, à capella, como já cantou tantas vezes na vida.

***

Vejo no site do New York Times o telegrama que eles publicaram, da AP, na edição do dia 24, sábado:

“Joan Baez canta para multidões apesar de proibição no Brasil

AP

São Paulo, Brasil, 23 de maio

A polícia impediu que a cantora de folk e ativista americana Joan Baez desse um show aqui na noite de ontem. Mas, para o encantamento das platéias brasileiras, ela conseguiu cantar fora do palco.

A Srta. Baez, que tinha sido convidada a se apresentar em benefício de comitês de direitos humanos da Igreja Católica e de trabalhadores e do Secretariado Nacional da Não Violência, disse que a polícia federal a informou 25 minutos antes do show que ela não teria permissão de cantar.

A Srta. Baez foi até uma janela atrás do teatro e cantou duas canções para uma multidão na rua embaixo: ‘Gracias a la Vida’, em espanhol, e uma canção de protesto brasileira, ‘Cálice’, que significa escolha em português. (Epa!)

Alguns minutos depois ela entrou no auditório da Universidade Católica e, sentada junto da platéia de 1.500 pessoas, cantou ‘Imagine’, de John Lennon, e ‘Blowin’ in the Wind’, de Bob Dylan. A multidão a aplaudiu de pé, e as autoridades não fizeram qualquer movimento para intervir.”

***

O site oficial de Joan Baez traz o seguinte, sobre o ano de 1981:

“Durante uma turnê para concertos e manifestações pelos direitos humanos na América Latina, Joan é impedida de se apresentar publicamente na Argentina, Chile e Brasil. Durante sua estadia lá, é submetida a vigilância policial e ameaças de morte. A Nicarágua, no entanto, permite que ela se apresente.”

Esta informação do site é estranha, porque ela pôde, sim, cantar durante sua estada no Chile, em 1981. Em 2011, eu encontrei em Santiago um CD não oficial, Joan Baez en Chile, com a gravação do show dela no Auditório Santa Gemita, na capital chilena.

Joan Baez volume 1

No mesmo dia em que saiu essa reportagenzinha chinfrim sobre o não-show de Joan Baez no Tuca, 23 de maio de 1981, o Jornal da Tarde publicou duas páginas com o texto que escrevi sobre Bob Dylan, que estava fazendo então 40 anos. Uma tremenda coincidência – ou não. Joan e Dylan andam juntos até quando saem textos sobre eles do mesmo sujeito num jornal de São Paulo.

O texto sobre Dylan era bem melhor que a reportagem ruim sobre o não-show de Joan. Sempre fui melhor redator que repórter.

Nunca tive a oportunidade de escrever, para publicação em jornal ou revista em que trabalhei, um grande texto sobre Joan Baez. Não calhou, não coincidiu.

Quando ouvi pela primeira vez, chapado, bestificado diante de tanta beleza, agora em 2010, The Day After Tomorrow, o disco dela de 2008, vi que não tinha jeito: preciso escrever sobre Joan Baez. Tudo bem que não é para publicar em um jornal ou uma revista importante. Preciso escrever no mínimo para mim mesmo.

Trabalhei um bom tempo no texto, e publiquei. Acho que ainda não estava pronto, que precisava ainda de muitos acertos, mas publiquei, num impulso, porque queria ele saísse logo. Acho, pelo menos, que está melhor que a reportagem chinfrim.

São Paulo, abril de 2010 (com pequeno complemento em julho de 2011.)

14 Comentários para “Joan Baez Volume 2: a ditadura põe o Brasil em seletíssima companhia”

  1. Prezado Sergio:
    Pretendo escrever alguma coisa sobre os meus anos 80. No segundo ano da Facudade de Direito da São Francisco, houve um evento “artístico-musical-qualquer-coisa” que se chamou “proe pra fora” e durou três dias. Foi sensacional e muito divertido.
    A Joan Baez foi até o nosso evento no largo São Francisco e cantou numa fria noite de maio de 1981 duas ou três músicas. Quem viveu, viu. O mais divertido foi a “corrente de segurança” feita pelos alunos para a passagem da grande cantora e defensora dos direitos humanos. Ao mesmo tempo em que havia uma tensão no ar, com a possibilidade de intervenção militar no evento, tudo aconteceu em clima de paz e alegria. Gostaria de obter alguma informação complementar sobre esta apresentação, mas, como eu disse, o mini-show só foi assistido por cerca de cento e cincoenta ou duzentas pessoas que estavam no pátio da São Francisco.

  2. Caro Antonio Celso,
    Muito obrigado pela mensagem – que tem essas informações fascinantes. Nunca soube dessa passagem da Joan Baez pelas Arcadas, e, assim, infelizmente não vou poder ajudá-lo a reconstituir os fatos.
    Mas de fato agradeço por você ter feito o comentário, que melhora bastante este meu post.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Meu caro Sérgio.
    A propósito dp “não show ” de Joan Baez, em 81, no TUCA, o que aconteceu fora do teatro, eu não sei. Porém, o desenrolar dentro dele se deu da seguinte forma: Joan Baez cantou, à capela, somente Imagine, de John Lennon. Blowin’ in te Wind ficou devendo. Ainda assim, ela o fez de pé e não sentada como o texto afirma.
    Digo isso, pois guardo comigo essa maravilhosa lembrança de tê-la visto e, principalmente, a ouvido cantar exatamente ao meu lado. Ela em pé, no corredor central do auditório ( do meio para trás) e eu sentado na poltrona contígua ao corredor.
    Emoção que jamais esquecerei.
    E, egoísmo ã parte, obrigado Erasmo Dias!

  4. Complementando a informação desse dia, no Palácio das Convenções Anhembi acontecia show de lançamento do Terceira Lâmina do Zé Ramalho, ela apareceu no palco e contou o ocorrido.

  5. Olá, Álvaro.
    Muito obrigado por enviar o comentário com essa informação interessantíssima. Eu não sabia disso.
    Um abraço.
    Sérgio

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