Caem barreiras, mas não aquelas que isolam e dividem as pessoas, as dos preconceitos e das intolerâncias. Caem barreiras de barro, de terra, que matam pessoas felizes a festejar um novo ano. O que une o que se passa na Ilha Grande e outros lugares do Brasil e o livro/disco primoroso que ouço e leio no primeiro dia de 2010?A tristeza que a chuva traz contrasta com a beleza que invade meu esconderijo no momento em que os sons e as vozes organizadas por Jordi Savall e Montserrat Figueras me entram pelos ouvidos e arrepiam minha alma. Jerusalém, a cidade das duas pazes: a paz celeste e a paz terrestre. Esse o nome da obra-prima que tenho em minhas mãos.
Urbano II, em novembro de 1095, conclamou os seguidores: “Deus vult”, Deus quer. E saíram os cristão da Europa no rumo da Terra Santa, com armas e ambições numa aventura que nos custa desgraça até hoje. Não quero discutir a história das religiões e das idéias, mas o que os dois Bush fizeram ao governar os Estados Unidos não ajudou em nada ao desejo de paz da maioria. Invocaram, os insensatos, a mesma guerra santa proclamada há quase mil anos. Colocaram fogo em cinza que adormecia mas não morrera.
Tentar descobrir pela música e pelo canto dos povos o que possibilitou que uma cidade fosse berço das três religiões monoteístas – a judia, a cristã e a muçulmana – e ao mesmo tempo fosse palco de tanta violência e destruição, é uma viagem sonora e histórica fascinante.
Aprendi muito com o ouvido e lido no primeiro de janeiro. Mas o barro descendo sobre as casas e as pessoas me pôs em choque. A cultura me ilumina e a realidade me traz de volta à nossa insignificância.
Não quero e nem tenho condições de discutir a paz celeste, o que nos seria destinado após o desfecho da vida de cada um. Minha condição humana, e minhas possibilidades, só me permitem especular sobre o que tenho ao meu alcance.
A paz terrestre é o meu território possível, mesmo que minha ação seja particular, pequena, restrita ao meu quintal e aos meus quintaleiros.
Mas se eu cuido do meu e meus vizinhos dos seus, há uma aritmética boa aí. É razoável, então, pensar em realizar, não apenas sonhar, lugar e tempo mais respiráveis, em que as muralhas e barreiras que dividem as pessoas sejam destruídas como vermes. Religiões, dogmas, preconceitos sociais e econômicos, de cor e sexo, tudo o que busca segregar e desligar o que é ligado, esses sim deveriam vir abaixo pela constante chuva da tolerância, da música e da poesia que estão em “Jerusalém”, e da solidariedade que brota em nós diante da tragédia que doeu em tantas famílias.
O Brasil é terra da tolerância e da convivência. Não deixemos que essa nossa boa cultura se desfaça pela ação de estúpidos e insensatos.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas
Um comentário para “As barreiras”